2 de set. de 2007

A história é um profeta com os olhos voltados para trás

O perigo do negacionismo

Luís Carlos Lopes

As dificuldades dos povos em manter a memória de seus passados têm sido habilmente usadas pelos negacionistas. O presentismo midiático de hoje significa um corte profundo com as gerações anteriores, o que implica imaginar que o passado nada tem a ver com a atualidade. Este problema trata-se de um artefato ideológico criado a partir a dificuldade real das novas gerações compreenderem o que se passou com as que lhes antecederam. Na mesma senda, é possível de se constatar a existência de novos usos negacionistas, construídos com o mesmo padrão anterior.

O negacionismo ‘clássico’ é um procedimento usual da extrema direita européia. Seus partidários em vários países negam que tenha existido a solução final na Alemanha nazista. O extermínio massivo de milhões de seres humanos é negado. Não teria havido um plano ou não teriam existido os instrumentos criados para provocar a morte de pessoas recolhidas aos campos de concentração. Negam, igualmente, a escravidão recriada no mesmo país, para sustentar a indústria de guerra. Negam fatos que os colocam na posição de partidários dos maiores genocidas na história humana. Dizem que nada disto existiu nos termos conhecidos, e que tudo o que é dito não passa de propaganda. As imagens dos fornos crematórios seriam montagens fotográficas ou filmográficas. Os depoimentos registrados em inúmeras mídias seriam mentiras orquestradas pelos judeus e pelo comunismo.

Paradoxalmente, os membros do núcleo duro destes movimentos mantêm os mesmos preconceitos que geraram o extermínio massivo de judeus, homossexuais, ciganos, opositores políticos, deficientes físicos, dentre outros. Negam o massacre, mas mantêm os argumentos usados para executá-lo. Continuam dividindo o mundo entre os mais aptos e os inferiores, renovando as teses arianas, relativas à existência de super-homens altos, brancos, inteligentes e disciplinados destinados a reinar sobre a Terra. Estas teses, de algum modo, ainda orientam muitos dos preconceitos e práticas sociais existentes no mundo atual. Muita gente ainda acredita que ser ‘ariano’ é pertencer a um contingente humano superior. Os ideais de beleza ocidentais, por exemplo, têm ainda forte influência do mesmo mito, por decorrência disto, a moda e a publicidade se apropriam destes signos hoje negados e reafirmados em vários contextos. O mesmo acontece com várias emissões e visões das mídias de massa.

O negacionismo atual tem múltiplas faces e não é mais monopólio da extrema direita. Ela continua a praticá-lo sistematicamente por toda parte, mas as outras direitas - existem múltiplas direitas - também fazem uso do mesmo procedimento. Tornou-se fácil no mundo do espetáculo midiático proceder assim. Os meios disponíveis para a propaganda política e a manipulação social devem ser invejados, se vistos do inferno. Goebels, ministro da propaganda de Hitler, deve lamentar ter vivido em uma época onde as mídias eram de alcance tão limitado. Na época do nazismo não havia televisão, Internet etc. O Mein Kampf, livro de base do hitlerismo, alcançou, na época, uma edição de cerca de um milhão de exemplares. Hoje, qualquer besteira livresca que venda no mundo, consegue tiragens de milhões e milhões nas mais diversas línguas.

Os inimigos de hoje não são exatamente os mesmos. O que se precisa negar também não é necessariamente a mesma coisa. Negam-se, por exemplo, a guerra do Vietnã e seus horrores, as tragédias perpetradas pelo fascismo vermelho de Stalin, os genocídios e limpezas étnicas dos Bálcãs e da África etc. Nega-se a truculência das ditaduras militares latino-americanas, representadas pela tortura, morte, exílio e censura. Negam-se todas as ignomínias perpetradas contra o gênero humano, em vários casos dizendo-se que era necessário, que não havia outro jeito etc. Elas são inúmeras, fazendo pensar se realmente existe a necessidade de um inferno no pós-morte, porque os tormentos sofridos por muitos são inimagináveis, por quem jamais os sofreu.

Continua-se, outrossim, a se negar que houve e continua a existir violências, discriminações, racismos, exclusões e preconceitos. Os seres humanos, pertencentes à grande família do homo sapiens sapiens, persistem sendo vistos por alguns, como se fossem de diferentes espécies. Isto ocorre, com maior força, se tiverem culturas diversas. Acredita-se na existência de civilizações, corpos e mentes superiores e inferiores, mesmo com todas as evidências científicas atuais de que isto seja um dos mitos do racismo contemporâneo. Confunde-se, deliberadamente, diferenças com oposições fratricidas, tais como as expostas no integrismo puritano e racista e nos fundamentalismos religiosos em voga.

Uma nova mania negacionista, que beira a paranóia, é a de acreditar na teoria conspirativa que imagina a manipulação midiática como algo infinitamente mais forte do que os episódios reais. É verdade que as mídias, sobretudo as empresariais e mais estruturados, manipulam, mentem e tentam, de modo fascista, controlar a opinião comum. Mas, também é verdadeiro que elas têm limites e precisam se basear, vez por outra, em fatos concretos, como, por exemplo, a crise aérea e os episódios recentes da longa história brasileira da corrupção de Estado.

Uma das vertentes políticas contemporâneas da chamada cultura das mídias é o negacionismo clássico. Outra consiste no negacionismo que foi refundado no mundo atual. A construção das ‘verdades’ midiáticas baseia-se na verossimilhança, isto é, em algo plausível e possível de ser concreto e, por isso, consistindo em fácil objeto de manipulação. Os grandes veículos precisam se apropriar da realidade e dar a ela um sentido que lhe interesse, fugindo da objetividade que, paradoxalmente, dizem perseguir. Entretanto, é mais raro, no contexto da democracia formal, dizer algo absolutamente impossível, tal como se fazia na época da ditadura.

O convencimento, quando fruto da manipulação, almejado pelas grandes mídias, precisa se ancorar em algo visível e que não possa ser facilmente desmascarado. A notícia e a opinião são construídas de modo cauteloso. Os fatos reais são narrados a partir de uma ótica de preconceitos e interesses que ressaltam ou escondem, tal como é necessário para se construir os artefatos e a opinião do público receptor. Por isso tudo, também é caracterizável como negacionismo dizer que as grandes mídias falam absolutas inverdades, em todos os casos e em qualquer situação. Nem o ministério da propaganda da Alemanha nazista agia assim. É preciso cautela com o exagero da simplificação.

É importante denunciar como negacionismo todas as imposturas históricas e reconstruções manipuladas que servem à formação da opinião comum. Talvez, assim, os negacionistas tenham maior cuidado, por medo de serem desmascarados e mostrados à luz do sol. Eles são seres das sombras. Detestam que se faça a exposição de suas mazelas. Abominam que se fale sobre o que não podem responder, e sobre o que querem esconder. Temem o debate, em especial, com quem não tem o rabo preso em algum lugar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Prezado Kautscher,
estamos tentando organizar aqui no Rio uma manifestação contra a mídia golpista nos mesmos moldes do Eduardo Guimarães em São Paulo. Gostaria de saber se você tem interesse em juntar-se a nós?
Abraço, Eduardo