30 de jan. de 2011

Caixa preta patronal do Sistema $ arrecadará R$ 11,3 bilhões em 2010

O chamado Sistema $ - $ENAI, $ESI, $ESC, $ENAC - e outras entidades foi criado ainda na década de 40 com objetivo de treinar e capacitar mão-de-obra para a indústria brasileira. Para tanto, o sistema conta com a arrecação da contribuição compulsória de 2,6% da folha de salários de todos trabalhadores brasileiros.
Pois bem, segundo matéria publicada pela Folha de São Paulo, as empresas brasileiras recolherão, somente neste ano, o valor recorde de R$ 11,3 bilhões aos cofres do Sistema $. Desse valor, teoricamente 40% seria aplicado em treinamento e capacitação e 60% em atividades culturais e assistenciais. O sistema é administrado pelo setor privado através de suas entidades de classe, especialmente ligado às confederações empresariais.
Vejam, o valor arrecado supera o destinado ao programa Bolsa Família neste ano e equivale a quase seis vezes o total estimado para a receita do Imposto Sindical. Essa verdadeira fortuna de recursos públicos é gerida praticamente sem intervenção, controle e/ou fiscalização. Ainda segundo a Folha, tanto a Controladoria Geral da União - CGU como o Tribuntal de Contas da União - TCU, teriam destacado a aplicação crescente e excessiva de recursos do sistema no mercado financeiro, em detrimento de investimento em ações de formação profissional e atividades sociais, bem como preocupações em razão das vinculações políticas entre as instituições e seus dirigentes.
Um verdadeiro paradoxo para as lideranças empresariais. Sempre tão aguerridas na cobrança da desoneração fiscal e da folha de pagamento, com contundentes discursos contra o chamado "custo Brasil", exigindo transparência e eficiência na gestão e no gasto público, as entidades empresariais simplesmente se calam quando o assunto é o Sistema $.
A resistência patronal nessa seara é sem igual. Recentemente, a proposta do governo para extinção dessa contribuição não resistiu a reação das entidades empresariais.
Enfim, como de costume, as entidades empresariais desejam reduzir custos e dar transparência aos gastos geridos pelos outros, mas manter uma verdadeira Caixa Preta em relação aos seus. Esse é mais um dos obstáculos a ser superado para modernização e democratização do Brasil. 
Fonte: O Partisan

27 de jan. de 2011

Haiti: eis o que é imperialismo e o que é subimperialismo.

por Duarte Pereira

Está se consumando a crônica anunciada e previsível da nova ocupação do Haiti pelos Estados Unidos, desta vez aproveitando o terremoto que devastou o país e sua capital. Os Estados Unidos já desembarcaram 11 mil militares no país. Ontem, com tropas armadas e uniformizadas para combate, transportadas em helicópteros de guerra, ocuparam o palácio presidencial em Porto Príncipe. O aeroporto, não esqueçamos, continua sendo controlado e operado pelos Estados Unidos, que hastearam sua bandeira no local e decidem que aviões podem pousar. Nos últimos dias, deram prioridade a suas aeronaves, principalmente militares, prejudicando o desembarque da ajuda enviada por outros países e por organizações não-governamentais. A prioridade foi a segurança, não a vida da população haitiana, principalmente pobre. O ministro francês da Cooperação, Alain Joyandet, chegou a protestar: Precisamos ajudar o Haiti, não ocupá-lo." É verdade que, tendo cumprido o cronograma inicial de desembarque de suas tropas, os Estados Unidos poderão autorizar, nos próximos dias, o pouso de um número maior de aviões de outros países, com técnicos e equipamentos para remoção de destroços, médicos e remédios para atendimento dos feridos, água e alimentos para a população desabrigada e desempregada. A essa altura, porém, a possibilidade de encontrar pessoas soterradas com vida será mínima e excepcional.

Sem que a mídia dê atenção a este aspecto, os Estados Unidos estão aumentando também o controle do porto que dá acesso à capital e de toda a área litorânea do Haiti, com um porta-aviões, um navio equipado com um hospital de campanha e vários navios da Guarda Costeira, visando a socorrer feridos, mas também a selecionar e controlar a aproximação de navios de ajuda de outros países, como o enviado pela Venezuela com combustível, e a impedir a emigração desesperada de haitianos para a costa estadunidense em pequenas embarcações

Não podendo justificar suas ações arrogantes e unilaterais com ordens das Nações Unidas, o governo de Washington tem argumentado que atua a pedido do governo haitiano. Mas que soberania pode ter um governo, como o do presidente René Préval, que não dispõe sequer de forças policiais e de equipamentos de comunicação e transporte para manter a ordem pública e organizar o salvamento de seus cidadãos? É significativo também que o plano de salvamento e reconstrução do Haiti pelos Estados Unidos tenha sido anunciado, em conjunto, pelo presidente Barack Obama e pelos ex-presidentes Clinton e Bush - o mesmo Bush que demorou tanto a agir quando o furacão Katrina destruiu uma grande área dos Estados Unidos.

 Quando os interesses estratégicos da superpotência estadunidense e de suas empresas transnacionais estão em jogo,
prevalece como sempre o consenso bipartidário entre "democratas" e "republicanos" - aliás, uma confluência bipartidária semelhante se ensaia agora no Brasil com o PSDB e o PT, apesar das acirradas disputas nas fases de eleição.

O jornalista Roberto Godoy, especializado em assuntos militares, escreve no "Estadão" de hoje: "Os Estados Unidos estão fazendo no Haiti o que sabem fazer melhor: ocupar, assumir, controlar. Decidida em Washington, a operação de suporte às vítimas da devastação, em quatro horas, tinha 2 mil militares mobilizados - e metade deles já seguia para Porto Príncipe - enquanto o resto do mundo apenas tomava conhecimento da tragédia. (...) É a Doutrina Powell, criada no fim dos anos 80 pelo então chefe do Estado-Maior Conjunto general Colin Powell, aplicada em tempo de paz. Ela prevê que os Estados Unidos não devem entrar em ação a não ser com superioridade arrasadora. (...) No sábado, oficiais americanos [seria mais correto escrever estadunidenses, porque americanos somos todos nós] estavam no comando do tráfego aéreo. Os paraquedistas da 82ª Divisão e os fuzileiros navais (...) são treinados para o combate e também para missões de resgate. Movimentam-se em helicópteros e veículos convertidos em ambulâncias leves. A retaguarda é poderosa. Um porta-aviões virou central logística e um navio-hospital de mil leitos chegou no domingo. Ontem, aviões dos Estados Unidos ocupavam 7 das 11 posições de parada remanescentes no aeroporto."

A mídia do grande capital,
exagerando os saques e os conflitos, cumpriu seu papel de preparar a opinião pública para aceitar a operação político-militar dos Estados Unidos como necessária e benevolente. Na realidade, os Estados Unidos têm contribuído para acirrar os conflitos ao atrasar a ajuda humanitária de outros países e utilizar aviões e helicópteros para despejar suprimentos aleatoriamente sobre uma população sedenta, faminta e desorganizada. Até mesmo o general brasileiro Floriano Peixoto, comandante da Minustah (Missão de Estabilização das Nações Unidas), ponderou em videoconferência que os casos mais graves de violência não são generalizados e disse que as ruas de Porto Príncipe estão desobstruídas, o que facilita a ação das forças de segurança. Na avaliação do general, a situação se mostra menos grave do que a versão difundida pela imprensa. Além disso, quem tem experiência política e já participou da resistência a regimes entreguistas e autoritários não pode deixar de receber com ceticismo a qualificação fácil e indiferenciada, difundida pela mídia, de que todos os presos que escaparam dos presídios destruídos pelo terremoto são criminosos comuns e integrantes de "gangues de bandidos". Muitos oficiais e soldados do antigo Exército haitiano formaram milícias, que declararam seu apoio ao último presidente livremente eleito Jean-Bertrand Aristide, depois que ele foi deposto em 2004. Seqüestrado por tropas estadunidenses e levado à força para a África do Sul, bem longe do Haiti, o ex-presidente Aristide continua impedido de voltar ao país e seu partido foi proibido de participar das últimas eleições realizadas sob o controle da Minustah.

Com as diferenças secundárias de motivação e de situação interna, o roteiro seguido pelos Estados Unidos no Haiti é, portanto, essencialmente, o mesmo adotado no Iraque ou no Afeganistão: primeiro, destroem-se os Estados nacionais que esbocem qualquer rebeldia, instalando a devastação econômica e social e o caos político; depois, utilizam-se essas circunstâncias deterioradas para justificar a construção de Estados satélites; por último, esses Estados satélites e corruptos se revelam incapazes de garantir a paz, resgatar a dignidade nacional e melhorar o padrão de vida da população (com as exceções de praxe das elites colaboracionistas), justificando que a ocupação estadunidense se prolongue indefinidamente. A crise aprofundada pela intervenção externa cria, enquanto isso, oportunidades de novos negócios lucrativos para os fabricantes de armas, as empresas de segurança e as grandes construtoras dos Estados Unidos e de seus aliados.

Para dissipar dúvidas sobre as reais intenções da intervenção "emergencial" e "humanitária" dos Estados Unidos no Haiti, o diplomata Greg Adams, enviado ao país caribenho como porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, declarou ao "Estadão" em Porto Príncipe: "É muito cedo para estabelecer prazos [para a retirada das tropas estadunidenses] e ficaremos aqui o tempo que for necessário [lembremo-nos de declarações semelhantes tornadas públicas no início da ocupação do Iraque]. Havia tropas estrangeiras no Haiti antes do terremoto [ah, é?]. Com a tragédia, além de todos os outros problemas, não vejo uma data-limite no futuro próximo para falarmos aos haitianos 'ok, agora é com vocês'. Ficaremos aqui por um bom tempo e acho que o Brasil também."

A referência à ação coadjuvante e subordinada do Brasil foi bem esperta. Que autoridade moral pode ter o governo brasileiro de protestar contra a ação estadunidense se tem participado da intervenção política e militar nos assuntos internos do Haiti, ainda que com a chancela formal das Nações Unidas, chancela já utilizada ao longo da historia da entidade para encobrir tantas outras intervenções? Participando das operações de segurança - ou seja, em bom português, de repressão - com o beneplácito e em benefício dos Estados Unidos, o Brasil espera ganhar o prêmio de consolação de tomar parte nos negócios de reconstrução do país. Aliás, grandes construtoras brasileiras, como a OAS e a Odebrecht, já enviaram equipes técnicas e equipamentos pesados para o Haiti, posicionando-se para a disputa que virá.

Quem afirma que não existe mais imperialismo no século XXI ou põe em dúvida o conceito de subimperialismo, utilizado para caracterizar a política externa atual do Brasil, principalmente na América Latina
e no Caribe, tem assim a oportunidade de aprender, em cores e on line, o conteúdo concreto desses conceitos e dessas práticas. Abrindo bem os olhos, os patriotas e democratas brasileiros têm o dever de exigir que o Brasil renuncie ao comando militar da Minustah, retire progressivamente suas tropas do Haiti e se limite às ações de cunho efetivamente humanitário. O Haiti não precisa só de ajuda, precisa de soberania. Que os Estados Unidos realizem seu plano de intervenção e de construção de um Estado satélite no Haiti com seus próprios recursos humanos e materiais e sob sua exclusiva responsabilidade. Assim, pelo menos, a situação ficará mais clara e se tornará mais fácil mobilizar as forças antiimperialistas e democráticas no Haiti e nos demais países da América Latina e do Caribe. Não percamos de vista que um império em declínio, na desesperada tentativa de reverter o curso histórico que o debilita, pode tornar-se mais perigoso e aventureiro do que um império em ascensão e paciente.

Estou fechando este parêntese sobre a tragédia haitiana, porque já está claro que não se trata apenas de uma tragédia natural e humanitária, mas sobretudo política e militar. Recentemente, um terremoto devastou uma grande região da China, deixando 87 mil mortos, segundo as estimativas oficiais. Porque havia e há na China, apesar de sua pobreza ainda grande, um Estado soberano e ativo, foi possível lidar com as conseqüências da tragédia sem permitir a intervenção estrangeira no comando das operações de socorro e reconstrução ou o desembarque de tropas de outros países. A grande tragédia do Haiti foi a destruição progressiva de seu Estado nas últimas décadas, com a dissolução de suas forças armadas e policiais, a precarização de seus serviços públicos e a desorganização e divisão de sua população.


21 de jan. de 2011

CARTA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS DE NOVA FRIBURGO À POPULAÇÃO

Basta de irresponsabilidades e mortes. As tragédias podem ser evitadas!

A região serrana do Estado do Rio de Janeiro assistiu, na madrugada do último dia 12, a reprise de um filme de catástrofes. Ao amanhecer é que se pôde visualizar e ter as primeiras dimensões do ocorrido. O cenário era de devastação e tragédia: ruas inundadas, encostas desbarrancadas, residências desmoronadas, pessoas desesperadas e aos prantos, pela perda de parentes, amigos e vizinhos.
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Na contramão do individualismo competitivo e ganancioso praticado pela burguesia, a população prontamente dedicou-se à solidariedade no socorro imediato às vítimas. Eram voluntários cavando com as próprias mãos, rompendo isolamentos, oferecendo teto e consolando os que tudo haviam perdido, mesmo que derramando lágrimas pelos entes queridos e pelo quadro geral de desolação.
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Após os momentos iniciais de incredulidade e pavor, as pessoas se perguntavam: não seria possível evitar tamanha perda material e de centenas de vidas? Já não se produziu conhecimento científico capaz de prever fenômenos naturais como este e evitar as conseqüências tão devastadoras? Não existem exemplos no mundo de tragédias similares para as quais foram encontradas soluções de forma a reduzir ao mínimo as perdas? A quem caberia tomar as iniciativas necessárias a impedir tamanha catástrofe? Por que as autoridades não tomaram as medidas preventivas?
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Na verdade, os trágicos acontecimentos são o reflexo direto de diversos fatores que atuam em conjunto, tais como a devastação da cobertura vegetal do planeta e o lançamento, na atmosfera, de um enorme volume dos chamados gases do efeito estufa, como o gás carbônico (CO2), o metano (CH4) e muitos outros.
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No entanto, a causa mais grave e evidente é a ocupação desordenada de encostas, margens de rios e outros espaços impróprios nas cidades, sem respeito às exigências técnicas de segurança. As áreas de risco são ocupadas por vias públicas e famílias de baixa renda que não têm para onde ir e precisam estar perto dos centros urbanos, mas também por habitações voltadas às camadas de rendas média e alta, construídas em ações de especulação imobiliária.
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De igual forma, a falta de estudos e ações preventivas, aliada ao despreparo e à precariedade dos equipamentos das entidades de Defesa Civil e à total falta de concatenação dos governos e dos diversos órgãos que têm a possibilidade de atuar em situações de emergência, denuncia a visão imediatista dos políticos burgueses, praticantes da troca fisiológica de favores por votos, deixando ao léu qualquer perspectiva de administração planejada das cidades em prol do interesse popular. Fica clara a total falta de compromisso dos governos com as camadas populares e suas necessidades.
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Neste momento de dor e sofrimento, a tarefa imediata é prestar solidariedade, arregaçar as mangas, ajudar as vítimas. Mas uma tragédia como essa é uma demonstração clara de que o uso do solo para os interesses do capital, a ocupação das cidades em benefício dos ricos, a falta de participação direta da maioria da população nas decisões políticas não podem continuar.
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Já passou a hora de a população, que paga seus impostos e produz a riqueza através do trabalho, mudar este estado de coisas. A classe trabalhadora tem o direito de receber de volta e a fundo perdido os recursos (no lugar do saque do Fundo de Garantia) para adquirir moradia digna em local seguro, com todos os equipamentos urbanos e sociais que o Estado tem a obrigação de oferecer: pavimentação, iluminação pública, saneamento básico (coleta de lixo, água potável e esgoto tratado), energia elétrica (com tarifas equivalentes às contas de luz das indústrias), telefonia, transporte público a preços justos, educação, cultura e lazer. Se há dinheiro sobrando para socorrer grandes empresas e bancos durantes as crises do capitalismo, é inaceitável não haver recursos para salvar e manter a vida dos trabalhadores. Além disso, é preciso decretar a garantia de empregos e salários.
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É urgente a união dos movimentos e organizações representativas dos trabalhadores para ações conjuntas no caminho da (re)construção das cidades sobre novas bases, visando ao atendimento dos interesses populares:
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- plano emergencial para atendimento às necessidades imediatas das populações atingidas pela tragédia, com acolhimento aos desabrigados, aluguel social, alimentação e atendimento médico;
- isenção de impostos, taxas e tarifas aos atingidos pela catátrofe;
- recurso a fundo perdido para aquisição de bens móveis extraviados;
- campanha de saúde preventiva para toda a população;
- garantia de empregos e salários;
- formação de conselhos populares para acompanhamento da aplicação das verbas federais nos municípios arrasados pelas chuvas e das políticas públicas a serem adotadas;
- construção de moradias populares em áreas seguras e com dignas condições de vida (infraestrutura, saúde, educação, transporte);
- plano permanente de preservação ambiental, na contramão da lógica capitalista destruidora;
- construção do Poder Popular com vistas à democracia direta na tomada de decisões.
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Sindicatos dos Trabalhadores Metalúrgicos, Têxteis, Vestuário, Saúde e Previdência, Professores e Profissionais da Educação no Estado do Rio de Janeiro (SEPE), Associação de Docentes da Faculdade Santa Dorotéia, PCB, PSTU e PSOL.
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14 de jan. de 2011

As chuvas, o proletariado e a responsabilidade de Lula, Cabral e Paes na tragédia do Rio de Janeiro -Republicação

No início da noite de segunda-feira, 5 de abril, várias cidades do Estado do Rio de Janeiro sofreram com as intensas chuvas. Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo e outras cidades pararam por conta dos estragos produzidos por tanta água. Os mortos confirmados já são quase duzentos, até o momento. Outras centenas ou milhares - este número é ainda mais impreciso - estão desabrigados.

Neste momento, é necessário apontar os responsáveis por tamanha tragédia. A imensa maioria dos que mais sofreram com o temporal é a parte dos mais pobres trabalhadores que moram nas favelas, mais especificamente nos locais que apresentam riscos de desabamento. O que sabemos é: moram nestes locais porque são a parte mais proletarizada da população, porque compõem o setor da classe trabalhadora mais afetado pelo desemprego e pela super-exploração do trabalho, porque seus salários não permitem mais que estabelecer a moradia em local tão arriscado! Jamais porque são “loucos, irresponsáveis e suicidas”, como afirma o governador do Estado do RJ, Sergio Cabral/PMDB, de forma absolutamente desumana e descompromissada com as condições de vida da classe trabalhadora.

O prefeito Eduardo Paes/PMDB preferiu culpar a natureza e sua tremenda força, eximindo-se de toda a responsabilidade – assim como é responsabilidade de Cabral e Lula – com a realização de políticas públicas que atendam aos interesses de moradia mais imediatos desses trabalhadores, como contenção de encostas, urbanização de favelas, sistema de drenagem etc. Fica nítido o descaso dos governantes ao revelar a contenção de investimentos públicos, que acarreta a precarização de áreas como a Defesa Civil. As autoridades solicitam à população para não telefonar para a Defesa Civil em caso de situação que não tenha "tanta emergência.

O presidente Lula/PT seguiu a linha já traçada por seus grandes aliados no Rio de Janeiro. Concordando com Cabral, disse que se analisarmos “todas as enchentes brasileiras, elas atingem sempre as pessoas pobres, que moram em locais inadequados". Confirma, portanto, a tese de culpabilização das vítimas. Diz que “o mais importante nessa história é que precisamos conscientizar a população para que deixe as áreas de risco”, ou seja, que abandonem suas casas e tudo aquilo que conseguiram conquistar com seu duro trabalho, sem qualquer garantia de que estará tudo lá quando retornarem.

Lula diz ainda que as chuvas não preocupam seus interesses nos eventos de 2014 e 2016, pois “não chove todo dia, quando acontece uma desgraça, acontece; normalmente, os meses de junho e julho são mais tranqüilos”. Portanto, contanto que em junho e julho de 2014 e 2016, a cidade esteja preparada para receber a Copa e a Olimpíada, não importa o sofrimento da população nos outros dias. Até mesmo o falso argumento do “legado dos grandes eventos esportivos” utilizado pelos governantes e pelo grande capital para justificar a importância desses eventos na vida do proletariado – que não usufruirá de seu verniz – cai por terra de vez. Tudo estará funcionando em junho e julho de 2014/2016, com todos os bilhões que serão transferidos pelo Estado (governos federal, estadual e municipal) à burguesia nacional e internacional, nessa relação íntima entre governos e capital que inclui, por exemplo, o financiamento das campanhas eleitorais de PT e PSDB, os partidos brasileiros que mantêm a força da ordem burguesa no país atualmente.


Lula, Cabral e Paes são os verdadeiros culpados pela amplitude dos desastres, assim como os governos anteriores que serviram aos interesses burgueses e corruptos. Nada fizeram para melhorar estruturalmente as condições de vida e moradia do proletariado que vive em áreas que ameaçam sua própria sobrevivência e ainda culpam os mortos pela tragédia ocorrida.

É muito importante perceber os projetos sociais que estão em luta: de um lado, o projeto dos capitalistas e dos governos burgueses, que desejam expulsar os favelados de seu local de moradia, motivados por diversos interesses, como a expansão imobiliária nessas regiões (a que se relaciona a imagem da favela criminalizada e de fato alvo da violência policial, do tráfico e de milícias); de outro lado, o projeto do proletariado, que de imediato exige a melhoria de suas condições de vida e moradia, mas tem como objetivo final aquilo que possibilitará o fim das condições sociais que generalizam todas estas tragédias: o fim das condições sociais que causam sua miséria.

Fundamentalmente, são estas condições sociais (que fazem com que o proletariado recorra à moradia nos locais de risco) que precisam ser combatidas. Este é o horizonte necessário que não pode sair de vista de todos aqueles que sentem profundamente as perdas humanas e sociais e lamentam diante das terríveis reações dos governantes burgueses. O objetivo final de nossa luta, para além da necessária melhoria imediata das condições de vida dos trabalhadores que habitam as regiões mais precárias, precisa ser o fim da sociedade de classes!

Fonte: http://coletivomarxista.blogspot.com/2010/04/as-chuvas-o-proletariado-e.html

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BBB-11: A ética pelo ralo

Artigo de Washington Araújo, publicado no sítio Carta Maior:

No dia 11/1/2011 a TV Globo levou ao ar seu programa de maior audiência no verão brasileiro: Big Brother Brasil 11. Sucesso de público, sucesso de marketing, sucesso financeiro, sempre na casa dos milhões de reais. Fracasso ético, fracasso de cidadania, fracasso de respeito aos direitos humanos fundamentais.

O prêmio será de R$ 1,5 milhão para o vencedor. O segundo e terceiro lugares levam, respectivamente, R$ 150 mil e R$ 50 mil. As inscrições para a próxima edição do BBB já estão encerradas. Ao todo, nas dez edições, foram 140 participantes. E já foram entregues mais de R$ 8,5 milhões em prêmios. Balanço raquítico, tanto numérico quanto financeiro para seus participantes, para um programa que se especializou em degradar a condição humana.

Aos 11 anos de existência, roubando sempre 25% do ano (janeiro a março) e agora entrando na puberdade como se humano fosse, o BBB começa anunciando que passará por mudanças na edição 2011. Se você pensou que as mudanças seriam para melhorar o que não tem como ser melhorado se enganou redondamente. O formato será sempre o mesmo, consagrado pelo público e pelos anunciantes: invasão de privacidade com a venda de corpos quase sempre sarados, bronzeados e bem torneados e com a exposição de mentes vazias a abrigar ideias que trafegam entre a futilidade e a galeria de preconceitos contra negros, pobres, analfabetos funcionais.

Após dez anos seguidos, sabemos que a receita do reality show inclui em sua base de sustentação as antivirtudes da mentira, da deslealdade, dos conluios e... da cafajestagem. Aos poucos, todos irão se despir de sua condição humana tão logo um deles diga que "isto aqui é um jogo". Outros ensaiarão frases pretensamente fincadas na moral: "Mas nem tudo vou fazer para ganhar esse jogo."

Como miquinhos amestrados, os participantes estarão ali para serem desrespeitados, não poucas vezes humilhados e muitas vezes objeto de escárnio e lições filosóficas extraídas de diferentes placas de caminhões e compartilhadas quase diariamente pelo jornalista Pedro Bial, ao que parece, senhor absoluto do reality show. Não faltarão "provas" grotescas, como colocar uma participante para botar ovo a cada trinta minutos; outra para latir ou miar a cada hora cheia; algum outro para passar 24 horas de sua vida fantasiado de bailarina ou para pular e coaxar como sapo sempre que for ativado determinado sinal acústico. O domador, que terá como chicote sua lábia de ocasião ou nalgumas vezes sua língua afiada, continuará sendo Pedro Bial que, a meu ver, representa um claro sinal de como as engrenagens que movem a televisão guardam estreita semelhança com aqueles velhos moedores de carne.

O último a sair da jaula

É inegável que Bial é talentoso. É inegável que passou parte de sua vida tendo páginas de livros ao alcance das mãos e dos olhos. É inegável também que parece inconsciente dos prejuízos éticos e morais que haverá de carregar vida afora. Isto porque a cada nova edição do reality mais se plasmam os nomes BBB e Pedro Bial. E será difícil ao ouvir um não lembrar imediatamente o outro. Porque lançamos aqui nosso nome, que poderá ter vida fugaz de cigarra ou ecoará pela eternidade. Imagino, daqui a uns 25 anos, em 2035, quando um descendente deste Pedro for reconhecido como bisneto daquele homem engraçado que fazia o Big Brother no Brasil. E os milhares de vídeos armazenados virtualmente no YouTube darão conta de ilustrar as gerações do porvir.

E, no entanto, essas quase duas dezenas de jovens estarão ali para ganhar fama instantânea, como se estivessem acondicionados naqueles pacotinhos de sopa da marca Miojo. Imagino cada um deles a envergar letreiro imaginário a nos dizer com a tristeza possível que "Coloco à venda meu corpo sem alma, meu coração quebrado e minha inteligência esgotada; vendo tudo isso muito barato porque vejo que há muita oferta no mercado". E teremos aquele interminável desfile de senso comum. Afinal, serão 90 dias de vida desperdiçada, ou melhor, de vida em que a principal atividade humana será jogar conversa fora. O que dá no mesmo. E não será o senso comum exatamente aquele conjunto de preconceitos adquiridos antes de completarmos 15 anos de vida?

Friederich Nietzsche (1844-1900) parecia ter o dom da premonição. É que o filósofo alemão se antecipava muito quando se tratava de projetar ideias sobre a condição humana. É dele esta percepção: "O macaco é um animal demasiado simpático para que o homem descenda dele". Isto porque Nietzsche foi poupado de atrações quase sérias e semi-circenses, como o BBB. No picadeiro, o macaco é aplaudido por sua imitação do humano: se equilibra e passeia de triciclo e de bicicleta, se veste de gente, com casaca e gravata, sabe usar vaso sanitário, descasca alimentos. No picadeiro do BBB, os seres humanos são aplaudidos por se mostrarem intolerantes uns com os outros, se vestem de papagaios, ladram, miam, coaxam, zumbem – e tudo como se animais fossem. Chegam a botar ovo em momento predeterminado. Se vestem de esponja e se encharcam de detergente a limpar pratos descomunais noite afora.

Em sua imitação de animal, o humano que se sobressai no BBB é aquele que consegue ficar engaiolado – digo, literalmente engaiolado – junto com outros bípedes não emplumados – por grande quantidade de horas. E sem poder satisfazer as necessidades humanas básicas, muitas vezes tendo que ficar em uma mesma posição, como seriemas destreinadas. E são os únicos animais que demonstram imensa felicidade em permanecer por mais tempo na gaiola. Não lhes jogam bananas nem pipocas, mas quem for o último a sair da jaula semi-humana ganha uma prenda. Pode ser um passeio de helicóptero, pode ser um carro, pode ser uma noite na Marquês de Sapucaí.

Heidegger reconheceria

O leitor atento deve ter percebido que em algum momento deste texto mencionei que o BBB 11 terá mudanças. Nem vou me dar ao trabalho de editar. Eis o que copiei do site G1:

"Boninho, diretor do BBB, falou em seu Twitter nesta quarta-feira, 24/11, sobre a nova edição do programa, a 11ª, que estreará em janeiro de 2011. E ele adianta que, desta vez, as coisas vão mudar. ‘Esse ano tudo vai ser diferente... Nada é proibido no BBB, pode fazer o que quiser’, postou Boninho em seu microblog. Questionado sobre o que estaria liberado no confinamento que não estava em edições anteriores, ele respondeu: ‘Esse ano... liberado! Vai valer tudo, até porrada’. Boninho também comentou sobre as bebidas no reality show: ‘Acabou o ice no BBB... Vai ser power... chega de bebida de criança’, escreveu."

Não terá chegado a hora de o portentoso império Globo de comunicação negociar com o governo italiano a cessão do Coliseu romano para parte das locações, ao menos aquelas em que murros e safanões, sob efeito de álcool ou não, certamente ocorrerão? E como nada compreendo de Heidegger, só me resta dizer que ao longo de toda sua vida madura Heidegger esteve obcecado pela possibilidade de haver um sentido básico do verbo "ser" que estaria por trás de sua variedade de usos. E são recorrentes suas concepções quanto ao que existe, o estudo do que é, do que existe: a questão do Ser (i.e. uma Ontologia) dependente dos filósofos antes de Sócrates, da filosofia de Platão e de Aristóteles e dos Gnósticos.

Quem sabe tivesse assistido uma única noite do BBB – caso o formato da Endemol estivesse em cena antes de 1976 –, o filósofo, por muitos cultuado, não apenas teria uma confirmação segura de que não valia mesmo a pena publicar o segundo volume de sua obra principal, O Ser e o Tempo, como também haveria de reconhecer a inexistência de algo anterior ao ser. Mas, com certeza, se fartaria com a miríade de usos dados ao verbo "ser".

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13 de jan. de 2011

NOVA FRIBURGO PRECISA DE AJUDA

Abaixo segue a lista dos principais bairros de Nova Friburgo. Vou tentar compilar o máximo possível de informações e centralizar nesse blog a condição de cada bairro. Infelizmente, como são cacos obtidos de fontes diversas, algumas podem estar desatualizadas ou insuficientes. Clicando nos bairros há o direcionamento para pesquisas da palavra no twitter, facilitando a coleta de informações.

Nova Friburgo tem as informações dos bairros mas não tem meios de divulgar. Nós temos os meios mas não temos tais informações. Divulguem as condições dos bairros caso tenham contato com a cidade.

Embora todos estejam muito preocupados, os moradores pedem que ninguém siga de impulso para Friburgo pois há racionamento de água e comida.

Dados do mapaDados cartográficos ©2011 MapLink Imagens ©2011 Cnes/Spot Image, DigitalGlobe, GeoEye - Termos de Uso

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Satélite
Híbrido
Terreno

São 19:51 do dia 13 de janeiro e o que sei é isso:

Acesso RJ-116: LIBERADO (PARA VEÍCULOS DE PASSEIO)
Acesso RJ-130: INTERDITADO
Acesso RJ-142: INTERDITADO
Acesso RJ-148: INTERDITADO
Acesso RJ-150: INTERDITADO
Acesso BR-495: INTERDITADO
Acesso BR-393: PARCIALMENTE INTERDITADO
Alto de Olaria: situação ok
Alto do Caledônia: desabamentos
Alto do Catete: sem informações
Alto do Floresta: sem informações
Alto do Schuenck: sem informações
Amparo: acesso dificultado / situação ok
Bela Vista: sem luz / sem água / sem telefone / situação ok
Boa Esperança: sem acesso
Braunes: luz ok / sem telefone / pista interditada na Monte Líbano
Caledônia: sem luz / desabamentos
Campo do Coelho: sem acesso / muitos desabamentos / casa do ex-prefeito Paulo Azevedo danificada / vítimas / hotel Vila Verde danificado
Cardinot: sem informações
Cascatinha: luz ok / sinal de celular ok (vivo) / ônibus em circulação / queda de barreiras / situação ok / comércio fechado
Catarcione: luz intermitente / sem sinal de celular
Centro: com luz / sob lama e detritos / edifício monte carlo danificado /desabamento / chuva / colégio Celso Peçanha é novo necrotério da cidade / prédios interditados
Chácara do Paraíso: sob lama e detritos / desabamentos / poucas vítimas / estrada para a Unimed reaberta
Cônego: luz ok / situação ok
Conselheiro Paulino: muitas vítimas /  sob lama e detritos / água subiu 3m no Tio Dongo
Conquista: desabamentos
Cordoeira: luz ok / desabamentos iminentes
Córrego D´Antas: sem acesso / desabamentos
Debossan: sem telefone / situação ok
Duas Pedras: sem informações
Floresta: muitos desabamentos / muitas vítimas
Furnas: pista interditada / ponte de ligação com Bom Jardim danificada
Granja do Céu: sem informações
Granja Spinelli: sem informações
Jardim Califórnia: muitas vítimas / desabamentos / vítimas também no loteamento Merilândia
Jardim Ouro Preto: sem acesso / sob lama e detritos / Motel Alpino ok / casas ruiram na Lafayette Bravo
Jardinlândia: muitos desabamentos / muitas vítimas
Lagoinha: hotel Holifas danificado
Lumiar: sem luz / sem acesso
Marechal Rondon: sem informações
Morro dos Maias: desabamentos / muitas vítimas
Morro do Dedé: desabamentos / muitas vítimas
Mury: sob lama e detritos / situação ok
Nova Suíça: sem informações
Olaria: sem luz / sem água / sem telefone / desabamentos / colégio Nossa Senhora das Graças Danificado / rua São Roque danificada /situação ok
Paissandu: alagamentos / luz ok
Parque das Flores: sem informações
Parque Maria Tereza: queda de barreira / desabamentos / situação ok
Parque Santa Eliza: sem água / sem luz
Parque São Clemente: sem informações
Perissê: luz ok / situação ok
Ponte da Saudade: queda de barreira / luz ok / alguns telefones ok
Prado: sem acesso / sob lama e detritos
Rio Bonito: sem informações
Rio Grande de Cima: sem acesso / reparos na Estação de Água
Riograndina: sob lama e detritos / açougue Principal danificado
Rui Sanglard: desabamentos / poucas vítimas
Salinas: sem informações
Sans Souci: sem informações
Santa Bernadete: muitas vítimas / desabamentos
Santo André: sem informações
Santa Cruz: sem informações
São Geraldo: sem acesso / desabamentos / muitas vítimas / situação ok
São Jorge: sem luz / sem água / sem telefone / sob lama e detritos / desabamentos / vítimas
São Lourenço: sem informações
São Pedro da Serra: sem luz / sem acesso
Solares: muitas vítimas / desabamentos
Stucky: sem informações
Suspiro: sob lama e detritos / igreja de Santo Ântonio danificada / desabamentos / sem telefone
Theodoro de Oliveira: sem informações
Tingly: sem acesso / sob lama e detritos
Três Irmãos: sem luz / sem água / sem telefone / sob lama e detritos / muitos desabamentos / muitas vítimas
Trilha do Céu: sem informações
Vale dos Pinheiros: sem luz / situação ok
Varginha: sem celular / desabamentos
Vila Amélia (Bom Pastor): luz ok / internet ok / falta água / desabamentos / sob lama e detritos / saques na Filó / situação ok
Vila Guarani: luz ok / sem água / sinal de celular ok (oi) / situação ok
Vila Nova: vítimas / desabamento / condominio Park Ville danificado
Vilage: desabamentos / luz ok / telefones apenas recebem ligações
Ypu: pista interditada

Quem puder ajudar, informe situação para @guix1978 no twitter. A cidade precisa de sangue. A cidade precisa de água. A cidade precisa de comida.

http://www.dinergia.pro.br/neolabore/

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8 de jan. de 2011

Apontamentos sobre Trotsky — O mito e a realidade

por Miguel Urbano Rodrigues 

Transcorridas quase duas décadas sobre a desagregação da União Soviética, pouco se escreve e fala sobre Gorbatchov. Os grandes media internacionais quase esqueceram o político e o homem que guindaram a herói da humanidade quando contribuía decisivamente, através da perestroika, para a reimplantação do capitalismo na Rússia.

Paradoxalmente, Trotsky continua a ser um tema que fascina muitos intelectuais da burguesia, alguns progressistas, e dezenas de organizações trotskistas na Europa e sobretudo na América Latina.

Sobre o homem e a obra não foram nas últimas décadas publicados livros importantes que acrescentem algo de significante aos produzidos pelos seus biógrafos, nomeadamente a trilogia do Historiador polaco Isaac Deutscher.

Nem um só dos partidos e movimentos trotskistas conseguiu afirmar-se como força politica com influência real no rumo de qualquer país.

Porquê então a tenaz sobrevivência, não direi do trotskismo, mas do nome e de algumas teses do seu criador no debate de ideias contemporâneo? Isso não obstante ser hoje pouco frequente a reedição dos seus livros.

A contradição encaminha para uma conclusão: uma percentagem ponderável dos modernos trotskistas desconhece a obra teórica e a trajectória politica de Trotsky.

Cabe chamar a atenção para o facto de a maioria dos intelectuais burgueses das grandes universidades do Ocidente que assumem a defesa e a apologia da intervenção de Trotsky na História serem anticomunistas. O seu objectivo precípuo é combater a URSS e o que a herança da Revolução de Outubro significa para a humanidade. Trotsky e Stáline são utilizados por esse tipo de "sovietólogos" como instrumentos na tarefa de combater e desacreditar o comunismo.

Nos movimentos trotskistas confluem jovens com motivações e comportamentos sociais muito diferentes. À maioria ajusta-se a definição que Lenine deu a certos esquerdistas: "pequeno burgueses enraivecidos". Frustrados, expressam a sua recusa do capitalismo na adesão a projectos radicais de transformação rápida da história.

Quase todos, – como aconteceu aos líderes do Maio de 68 parisiense – voltam a integrar-se no sistema após uma breve militância pseudo-revolucionária.

A mitificação de Trotsky

As campanhas anti-Trotsky promovidas pelos partidos comunistas na época de Stáline produziram globalmente um efeito contrário ao visado. Facilitaram o aparecimento em muitos países de organizações trotskistas e criaram condições favoráveis à mitificação de Trotsky.

Intelectuais burgueses e exilados russos, muitos deles ex-comunistas, deram uma importante contribuição para criar e difundir a imagem de um Trotsky imaginário. Os grandes diários do Ocidente, do The New York Times ao Guardian, abriram as suas colunas a essas iniciativas. Compreenderam que a transformação de Trotsky no herói revolucionário puro, vítima da engrenagem trituradora de um sistema monstruoso, daria maior credibilidade às campanhas contra a União Soviética.

A glorificação de Trotsky é um fenómeno tão lamentável, por falsificar a História, como a diabolização da União Soviética, inseparável da visão da época de Stáline como um tempo de horrores.

Cabe aos epígonos de Stáline – repito – uma grande responsabilidade pelo êxito no Ocidente da tentativa de utilizar a vitimização de Trotsky como arma do anticomunismo.
A historiografia soviética não se limitou a negar a Trotsky um papel minimamente importante na preparação da Revolução de Outubro e na sua defesa. Nos Processos de Moscovo Trotsky é acusado em alguns depoimentos de agente de Hitler que teria levado a sua traição ao ponto de preparar com o III Reich nazi o desmembramento da jovem república soviética.

Esse tipo de calúnias é tão absurdo, como expressão de um ódio irracional, como o esforço realizado por escritores anticomunistas e alguns governos para criminalizarem o comunismo como sistema comparável ao fascismo. A falsificação das estatísticas foi levada tão longe que alguns autores acusam Stáline de ter exterminado ou enviado para campos siberianos mais de cem milhões de pessoas [1] . A atribuição do Nobel de Literatura a um escritor reaccionário tresloucado como Solzenitzyn (que se orgulhava de odiar a Revolução Francesa) traduziu bem a necessidade que a burguesia sentia no Ocidente de satanizar a União Soviética, negando a herança progressista e humanista da Revolução de Outubro.

É nesse contexto que se insere o reverso da medalha, isto é a reinvenção de Trotsky.

Duas obras do próprio Trotsky e a trilogia de Deutscher – o Profeta Armado, o Profeta Desarmado e o Profeta Banido – funcionaram também como estímulos na fabricação do mito [2] .

Trotsky, em "A Minha Vida" [3] , a sua autobiografia, não atribui grande significado às divergências entre ele e Lenine durante os anos que precederam a Revolução de Fevereiro de 17. E na sua "História da Revolução Russa" [4] valoriza muito as convergências desde o início da Revolução de Outubro e são escassas as referencias a questões fundamentais em que assumiram posições diferentes, por vezes antagónicas. Somente nos ensaios editados sob o título de "A Revolução Permanente" [5] , ao responder a criticas de Karl Radek e Stáline, reconhece que Lenine o criticou por divergirem no tocante ao papel dos sindicatos e ao Gosplan, mas subestima a importância dessas discordâncias. Simultaneamente, ao identificar em Lenine o grande líder da Revolução e expressar profunda admiração pelo ideólogo, o estratego e o estadista, encaminha, com habilidade, o leitor para a conclusão de que, no tocante aos problemas fundamentais da construção de uma sociedade socialista na Rússia revolucionária, existiu entre ambos nos últimos anos da vida de Lenine uma confiança mútua e uma grande harmonia no trabalho.

Tal conclusão deforma a História.

Deutscher, que se assume como um admirador entusiástico de Trotsky e confessa odiar Stáline, projecta uma imagem distorcida do biografado. Não esconde as divergências dele com Lenine, mas, procurando ser objectivo no relato dos factos, esforça-se por persuadir os leitores de que, nos últimos meses da sua vida, pressentindo a proximidade da morte, Lenine via em Trotsky o membro do Politburo mais indicado para lhe suceder na chefia do Estado Soviético.

A conclusão carece de fundamento, é puramente subjectiva.

O próprio Deutscher sublinha que a velha guarda bolchevique, embora reconhecendo o talento de Trotsky como estadista, nunca viu nele um homem do Partido. O seu passado, como menchevique, não fora esquecido. O carácter de Trotsky, a sua vaidade, o estilo autoritário, a sua tendência para a crítica demolidora quando discordava de companheiros de luta inspiravam desconfiança e até rancor.

É significativo que logo após a morte de Lenine, Olminski, muito ligado a Stáline, tenha proposto a publicação de uma carta datada de 1912, encontrada nos arquivos da Policia Czarista, na qual Trotsky, dirigindo-se a Tchkeidzé, um destacado contra-revolucionário, descrevia Lenine como "um intrigante" um "desorganizador" e um "explorador do atraso russo". [6]

A sugestão não foi então atendida, mas na campanha contra Trotsky a recordação do seu passado anti-bolchevique tornou-se permanente e desempenhou um papel importante.

A carta de Lenine ao Congresso

Na fase final da sua doença, Lenine aproximou-se de Trotsky, mas não por ter reformulado a opinião que formara sobre ele. Quando Stáline na primavera de 1922 foi eleito secretário-geral do jovem Partido Comunista da União Soviética, Lenine, para lhe contrabalançar a influência, propôs a nomeação de quatro vice-presidentes para o Conselho dos Comissários do Povo, ou seja o governo. Trotsky foi um deles, Rikov, Tsurupa e Kamenev os outros.

Trotsky recusou. A simples ideia de partilhar o cargo de vice de Lenine com três camaradas – dois dos quais já o exerciam – feriu o seu desmesurado orgulho. Lenine sentiu decepção, mas por duas vezes insistiu sem êxito. Quando ele recusou novamente, Stáline levou o Politburo a aprovar, em Setembro de 22, uma resolução censurando Trotsky por indiferença perante o cumprimento do dever.

Lenine, defensor tenaz do papel dirigente do PCUS, era partidário de uma separação de tarefas entre o Partido e o Estado para evitar problemas graves que principiavam a esboçar-se.

Inválido, sentindo a proximidade da morte, ditou entre 23 e 31 de Dezembro de 1922 uma Carta ao XIII Congresso do Partido Comunista. Nessa importante mensagem transmitiu opiniões que iriam suscitar muita polémica, ao esboçar o perfil dos cinco camaradas que, com ele integravam o Politburo: Zinoviev, Kamenev, Stáline, Bukharine e Tomski (Kalinine e Piatakov eram suplentes e Molotov assessor).

Esse explosivo documento foi lido aos delegados ao Congresso, realizado em Maio de 1924, pela companheira de Lenine, Krupskaya, quatro meses após a sua morte.

Mas, por iniciativa de Stáline aprovada pelo Politburo, a Carta não foi publicada. O povo soviético somente tomou conhecimento do seu conteúdo após o XX Congresso. 
Lenine expressava muita preocupação pelo tenso relacionamento entre Stáline e Trotsky por identificar nele um perigo para a estabilidade do partido.

"O camarada Stáline – afirmava – tendo-se tornado secretário-geral, concentrou nas suas mãos um poder imenso, e não estou certo de que saiba sempre utilizar este poder com suficiente prudência. Por outro lado, o camarada Trotsky, como o demonstrou já a sua luta contra o CC a propósito da questão do Comissariado do Povo das Vias de Comunicação, não se distingue apenas pela sua destacada capacidade. Pessoalmente é talvez o homem mais capaz do actual CC, mas peca por excessiva confiança em si próprio e deixa-se arrastar excessivamente pelo aspecto puramente administrativo das coisas". [7]

Numa adenda à carta de 24 de Dezembro, datada de 4 de Janeiro de 1923, Lenine lamenta que Stáline seja demasiado rude e acrescenta: "este defeito, plenamente tolerável no nosso meio e nas relações entre nós, comunistas, torna-se intolerável no cargo de secretário-geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem na forma de transferir deste lugar e de nomear para este lugar outro homem que em todos os outros aspectos se diferencie do camarada Stáline apenas por uma vantagem, a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais cortês e mais atento para com os camaradas, menos caprichoso, etc."

Mas não sugeriu qualquer nome para a substituição de Stáline.

Quando Trotsky conversou com ele pela última vez, Lenine, cuja doença evoluiu rapidamente para o desfecho que todos temiam, pediu-lhe que colaborasse numa acção conjunta contra a burocratização do Partido e do Estado e de condenação da política repressiva que Stáline e Ordjonikidze tinham executado na Geórgia.

Mas são do domínio da fantasia as afirmações que atribuem a Lenine o desejo de ver Trotsky à frente do Partido ou do Estado.

Tal ideia – contra o que sugere Deutscher – nunca lhe terá aflorado o pensamento.

Via nele o mais dotado intelectualmente dos líderes do Partido, mas incapaz de controlar "uma autoconfiança excessiva".

O Choque humano e ideológico


Durante muitos anos, desde o início do século até à Revolução de Fevereiro, Lenine criticou Trotsky com dureza e este retribuiu sempre.

Lenine, admirando o seu talento, identificava nele um oportunista e um conciliador. A sua relação com os mencheviques, partido a que pertenceu, inspirava-lhe profunda desconfiança. Não lhe apreciava o carácter, marcado por uma impulsividade e uma arrogância que o levavam a assumir posições imprevisíveis e com frequência contraditórias em bruscas reviravoltas.

A troca de acusações exprimiu-se em determinados períodos por uma veemência verbal pouco comum.

Após a expulsão de Trotsky do Partido, essas opiniões de Lenine, emitidas em reuniões do Partido Bolchevique, em documentos, e cartas pessoais, foram tornadas publicas na URSS e amplamente divulgadas em países estrangeiros.

Trotsky, como já recordei, tenta nos livros publicados no exílio ocultar ou desvalorizar o significado das suas divergências com Lenine, pondo toda a ênfase na colaboração entre ambos a partir da Revolução de Fevereiro de 1917.

Os seus biógrafos afirmam que após a Conferência de Zimmerwald, que condenou a guerra imperialista, as suas posições quase coincidiram com as assumidas pela fracção bolchevique do Partido Operário Social-Democrata da Rússia-POSDR. Não é essa a opinião de Lenine. Numa carta a Boris Souvarine, datada de Dezembro de 1916, Lenine lembra que Trotsky acusara os bolcheviques de "divisionistas". "Em Zimmerwald – sublinha – recusou incorporar-se na esquerda local e juntamente com a camarada Roland Horst (uma holandesa) representou o "centro" [8]

Trotsky, vindo do Canadá, regressou à Rússia antes de Lenine. Numa carta à sua intima amiga Ines Armand, datada de 19 de Fevereiro de 1917, Vladimir Ilitch incluiu o seguinte desabafo: "Chegou Trotsky e este canalha entendeu-se imediatamente com a ala direita do “Novi Mir” contra os zimmerwaldistas de esquerda. Tal como lhe digo! Assim é Trotsky! Sempre fiel a si mesmo, revolve-se, trafulha, finge de esquerdista e ajuda a direita quando pode." [9]

Escritores trotskistas como Alfred Rosmer e Rosenthal omitem que meses depois da sua adesão ao Partido Bolchevique, quando já exercia funções de grande responsabilidade, como dirigente, Trotsky divergiu de Lenine em questões de grande importância em momentos cruciais.

A participação de Trotsky em Brest Litowski continua a ser tema polémico. Então Comissário do Povo para as Relações Exteriores, chefiou a delegação russa nas negociações de paz com os alemães.

Sobre o tema, dirigindo-se ao VII Congresso Extraordinário do Partido Bolchevique da Rússia, Lenine declarou:
"Devo referir-me agora à posição do camarada Trotsky. Na sua actuação devemos distinguir duas fases: quando iniciou as negociações de Brest, utilizando-as excelentemente para a agitação, todos estivemos de acordo com ele. Trotsky citou parte de uma conversa comigo, mas devo acrescentar que concordamos manter-nos firmes até ao ultimato dos alemães, mas cederíamos após ele. Os alemães intrujaram-nos porque de sete dias roubaram-nos cinco. A táctica de Trotsky foi correcta enquanto se destinou a ganhar tempo; tornou-se equívoca quando se declarou o fim do estado de guerra, mas não se assinou a paz. Eu tinha proposto com toda a clareza que se assinasse a paz de Brest". [10]

A transcrição (parte de uma intervenção extensa) é esclarecedora porque a posição assumida por Trotsky ("nem paz nem guerra"), ignorando as instruções de Lenine, levou os alemães a romper a trégua e desencadear uma ofensiva de consequências desastrosas, ocupando enormes extensões do país. Quando o Tratado de Paz foi finalmente assinado, as condições impostas foram muito mais severas do que as inicialmente apresentadas pelo Império Alemão.

Lenine criticou então duramente Trotsky. Mas não era rancoroso.

Transferiu-o do Comissariado das Relações Exteriores para o das Questões Militares. Conhecia as qualidades de organizador de Trotsky e este na sua nova tarefa teve um papel fundamental na organização do Exército Vermelho, na condução vitoriosa da Guerra Civil e na derrota da intervenção militar das potências da Entente.

Mas logo em 1920, Trotsky e Lenine divergiram profundamente durante o debate sobre os Sindicatos e a sua função na Rússia soviética, e no tocante ao monopólio do Comércio.

Trotsky publicara um folheto intitulado "O papel e as tarefas dos sindicatos". Lenine submeteu as teses por ele defendidas e a posição que sobre o assunto assumira no Comité Central a uma critica duríssima [9] . Manifestou espanto perante "quantidade de erros teóricos e de evidentes inexactidões", estranhando que no âmbito de uma discussão tão importante no partido Trotsky tivesse produzido "algo tão lamentável em vez de uma exposição cuidadosamente meditada". Nessa critica alertou para divergências de fundo de ambos quanto aos "métodos de abordar as massas, de ganhar as massas, de nos vincularmos às massas".

Concluindo, Lenine, que criticou simultaneamente, com idêntica veemência as posições assumidas por Bukharine, afirmou: "As teses do camarada Trotsky são politicamente prejudiciais. A base da sua politica é a pressão burocrática sobre os sindicatos. Estou certo de que o Congresso do nosso Partido a condenará e repudiará" [11] .

Assim aconteceu.
Julgo útil chamar a atenção para o facto de que Lenine manteve a sua confiança em Trotsky como principal responsável pelas operações em que o Exército Vermelho estava então envolvido em múltiplas frentes.

A contradição aparente facilita a compreensão do carácter profundamente democrático da ditadura do proletariado na Rússia soviética nos anos posteriores à Revolução de Outubro.

As Revoluções Russas, a partir de 1905, forjaram gerações de revolucionários profissionais com um talento, uma criatividade, uma coragem e uma tenacidade que assombraram os Historiadores. Dificilmente se encontra um precedente para essas gerações que, aliás, tiveram continuidade na que se bateu contra o Reich nazi e o destruiu, salvando a humanidade de uma tragédia.

O estabelecimento de consensos na época revolucionária foi sempre difícil. Sem o imenso prestigio e o génio de Lenine – é a palavra adequada para o definir – eles não teriam sido possíveis, como ficou transparente nas jornadas de Brest Litowski.

Deutscher, um trotskista assumido, recorda que a estabilidade no Politburo e no CC nascia da "autoridade incontestável de Lenine e da sua capacidade de persuasão e habilidade táctica que, em geral, lhe permitiam conseguir a maioria de votos para as propostas que apresentava à medida que surgiam os problemas". [12]

Tinha o dom raríssimo, quando transmitia um projecto polémico a camaradas, de os levar a admitir que haviam sido eles e não ele, Lenine, que o haviam concebido.

Nos cinco anos gloriosos posteriores à vitória da Revolução, Lenine foi colocado algumas vezes em minoria, perdendo na discussão de questões importantes. Submeteu-se nessas ocasiões à maioria. Assim funcionava então o centralismo democrático. Mas quase sempre os seus camaradas acabavam por reconhecer que ele estava certo.

Chamo a atenção para a importância da excepcionalidade de Lenine porque ela lhe permitiu uma colaboração harmoniosa com um feixe de revolucionários tão heterogéneo como o da sua época. Ele conseguiu que formassem uma equipa – não os poupando a severas criticas quando necessário – dirigentes como Stáline, Trotsky, Bukharine, Kamenev, Zinoviev, Preobrazhensky, Alexandra Kolontai, Dzerzhinski, Rikov, Piatakov, Tomski, Sverdlov, Lunacharski, Molotov, Kalinine, Vorochilov, Budiony, Kirov, Rakovski, Rabkrin, etc.

Essa unidade na acção e no pensamento, mesmo entre os membros da velha guarda bolchevique, desapareceu quando Lenine morreu. Sem ele, era impossível.



---///---

Não se pode escrever algo sobre Trotsky sem citar Stáline. Incluo-me entre os comunistas, poucos, que recusam simultaneamente a glorificação ou a satanizarão de ambos.

A burguesia persiste em projectar de Stáline somente a imagem negativa, porque ao apresentá-lo como um ditador satânico facilita a criminalização da União Soviética e do comunismo como ideologia monstruosa.

Terei sido dos primeiros comunistas portugueses a criticar o dogmatismo subjectivista de Stáline num livro apreendido pela ditadura brasileira em 1968 [13] . Mas a minha discordância da sua postura perante o marxismo e a condenação dos seus métodos e crimes não me impedem de reconhecer que Stáline foi um revolucionário cuja contribuição para a transição do capitalismo para o socialismo na União Soviética foi decisiva. Sem a sua acção à frente do Partido e do Estado, a URSS não teria sobrevivido à agressão bárbara do Reich nazi, sem ela a pátria de Lenine não se teria transformado em poucas décadas na segunda potencia mundial, impulsionando um internacionalismo que apressou a descolonização, incentivou e defendeu revoluções no Terceiro Mundo e estimulou poderosamente a luta dos trabalhadores nos países desenvolvidos do Ocidente.

No lado oposto do quadrante, recuso também a mitificação de Trotsky.

A sua transformação em herói revolucionário, tal como a sua satanizarão como contra-revolucionário, deformam a História.

São caluniosas as acusações (nomeadamente nos Processos de Moscovo) que o apresentam como cúmplice dos projectos de Hitler para destruição da URSS.

Dotado de um talento incomum, brilhante escritor e polemista, distinguiu-se desde a juventude por uma oratória que empolgava as massas e o levou aos 25 anos à presidência do Soviete de Petrogrado durante a Revolução de 1905.

A sua adesão ao Partido Bolchevique, pouco antes da Revolução de Outubro, assinalou o início de uma viragem na sua trajectória politica e humana. Foi com o pleno apoio de Lenine que nas jornadas que precederam a insurreição de Outubro voltou a presidir ao Soviete de Petrogrado e posteriormente cumpriu tarefas da maior responsabilidade como Comissário para as Relações Exteriores e Comissário para as Questões Militares, missão que na prática fez dele o chefe do Exército Vermelho.

Mas a tentativa dos seus epígonos e de Historiadores burgueses de o guindar a "companheiro de Lenine", colocando-o ao nível do líder da Revolução, falseia grosseiramente a História.

Trotsky não foi nem o revolucionário puro que os trotskistas veneram como herói da humanidade, nem o traidor fabricado por Stáline.

Mas com o rodar dos anos o mito nascido da sua vitimização tomou forma, resistiu e sobrevive.

Enquanto Gorbatchov, que abriu caminho como secretário-geral do PCUS à destruição da URRS, tende – repito – a ser esquecido, o mito Trotsky permanece. Poucos lêem hoje os livros em que condensou o seu pensamento e escreve sobre a sua participação na História. Mas a atitude dos milhares de pessoas que anualmente visitam a casa de Coyoacan, na capital do México, onde viveu e foi assassinado, ilumina bem o enraizamento desse mito.

Não é fácil compreender o fenómeno, porque o trotskismo, como ideologia e instrumento de acção revolucionária, fracassou, não correspondendo minimamente às aspirações do seu criador. [14]

Admito que Trotsky não se reveria em qualquer das dezenas de partidos trotskistas que hoje em muitos países o tomam por inspirador e guia.

Serpa e Vila Nova de Gaia, Novembro de 2008 

NOTAS:
1. Jean Salem, Lenine e a Revoluçao, Ed. Avante, Lisboa, 2007
2. Isaac Deutscher, Trotsky, Ed. Civlizaçao Brasileira,1968, São Paulo. 3. Leon Trotsky, Histoire de la Revolution Russe, Ed Seuil, Paris, 1950. 4. Leon Trotsky, My Life, Ed. Penguin, London, 1988 5. Leon Trotsky, La Revolución Permanente, Ed Yunque, 2ª edición, Buenos Aires, 1977 6. Isaac Deutscher, O Profeta Desarmado, Obra citada, pág 44 7. Existem traduções em diferentes línguas da Carta de Lenine ao XIII Congresso do PCUS. As diferenças entre os textos que conheço são formais, mínimas. Utilizei nas citações feitas, a tradução de Edições Avante, 1979. 8. V.I.Lenine, Textos extraídos das Obras Completas de Lenine, Ed. Estampa, Lisboa 1977, pág 260 9. Obra citada, pág 269 10. Obra citada, pág 270/271 11. Obra citada, pág 300 12. Isaac Deutscher, Obra citada, pág 88 13. Miguel Urbano Rodrigues, Opções da Revolução na América Latina, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968 14. Ver Leon Trotsky, Revolução e Contra-revolução, Ed. Laemmert, Rio de Janeiro, 1968. Neste livro, que enfeixa ensaios redigidos em 1930 e1931, em Prinkipo, na Turquia, onde estava exilado, Trotsky, numa atitude de esquerdismo profético, identifica na crise iniciada em 1929 o prólogo de uma era de revoluções cujo desfecho seria o socialismo. Transcrevo dessa obra algumas passagens expressivas de uma teimosa fidelidade à sua concepção da "revolução permanente": a) "É muito provável que o desenvolvimento progressivo da revolução espanhola dure por um período de tempo mais ou menos longo. E, por aí, o processo histórico abre, de algum modo, um novo crédito ao comunismo espanhol". (pág.20) b) "A situação na Inglaterra pode também não, e não sem justas razões, ser considerada como pré-revolucionária, se se admitir com rigor, que entre uma situação pré-revolucionária e uma situação imediatamente revolucionária pode mediar um prazo de vários anos, período em que se produzirão fluxos e refluxos". (pág 20) c) "É inevitável e relativamente próxima uma mudança na consciência revolucionária do proletariado americano, a qual já não será mais “um fogo de palha” que se apaga facilmente, mas o inicio de um verdadeiro e grande incêndio revolucionário. (pág 24) d) A aventura iniciada pelo czar na Manchúria provocou a guerra russo-japonesa; a guerra provocou a Revolução de 1905. A aventura japonesa actual na Manchúria pode acarretar uma revolução no Japão. (pág 24) A evolução da História nesses quatro países desmentiu quase imediatamente as previsões de Trotsky.
O original encontra-se em http://www.alentejopopular.pt/pagina.asp?id=685
e em http://www.odiario.info/articulo.php?p=973&more=1&c=1

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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12/Dez/08