28 de dez. de 2011

Gramsci e a luta interna no PCUS (1923-1926)

Irina V. Grigoreva - Junho 2010
Tradução: Josimar Teixeira

Este ensaio faz parte de Gramsci e il Novecento, obra publicada em 1999 na Itália e não traduzida entre nós. Trata-se da compilação dos anais do seminário de mesmo nome realizado em Cagliari em 1997, por ocasião do sexagésimo aniversário da morte do pensador italiano. Para uma visão global dos ensaios apresentados naquele seminário, recolhidos no livro mencionado e aqui traduzidos, o leitor deve partir da introdução escrita por Renato Zangheri.

Nos seminários gramscianos da última década, o tema da relação Gramsci-Rússia sempre despertou interesse. Pretendo tratar de um aspecto deste tema, que, embora particular, não é de modo algum secundário, dada a importância das lutas internas no PCUS dos anos vinte em relação ao advento do stalinismo. 

A atitude de Gramsci diante dos acontecimentos do período 1923-1926, se se exclui o episódio da carta de outubro de 1926, é ainda pouco conhecida. Os arquivos do Komintern, que agora podem ser consultados, permitem ampliar a base de tal investigação (por ora, pelo menos é o que sei), mesmo sem revelar nada sensacional ou inesperado. Isso provavelmente porque a posição gramsciana emerge de modo bastante claro do material há tempos acessível, material que, no entanto, ainda não foi suficientemente elaborado. 

O embate no PCUS, que tem como protagonistas Stalin e Trotski, estava amadurecendo através de todo o ano de 1923 (Lenin já estava ausente por causa da doença) e eclodiu justamente no momento da partida de Gramsci de Moscou para Viena. Stalin, então, era apoiado por Zinoviev, Kamenev e Bukharin como redator do Pravda

Em Viena, Gramsci pôde seguir a discussão em curso no PCUS através das publicações do Inprekorr. Além disso, podia recorrer à experiência direta feita em Moscou com as personalidades políticas envolvidas no conflito. 

Antes dos outros e mais de perto, Gramsci conheceu Trotski. À parte o fato conhecido da troca de cartas relativas ao futurismo italiano, eles se encontraram diversas vezes nas várias reuniões do Komintern a partir da segunda reunião ampliada da Executiva (no IV Congresso e na terceira reunião ampliada da Executiva Trotski fez parte da comissão italiana). Certamente, Gramsci ficou impressionado com Trotski como orador, personalidade de ampla cultura e múltiplos interesses (dão prova disso algumas notas dos Cadernos) [1]. 

Através do Komintern, Gramsci se aproximou também de Zinoviev e Bukharin, envolvidos, também eles, em todas as discussões de 1922-1923 em torno da “questão italiana”. De Bukharin não deixou juízos que nos fornecessem o caráter das suas relações pessoais. Ao contrário, Zinoviev lhe devia ser vivamente antipático. Na terceira reunião da Executiva ampliada, este desfechou contra Gramsci um ataque duríssimo, acusando-o de duplicidade política [2]. Gramsci não quis lhe responder publicamente, mas replicou com uma carta indignada (o rascunho da carta foi encontrado e publicado por Giovanni Somai) [3]. 

Quanto a Stalin, parece que Gramsci, durante a primeira estada em Moscou, não o viu nunca nem o ouviu falar. No entanto, houve um episódio que podia influenciar a atitude de Gramsci em relação a Stalin no início da discussão no PCUS.
Na primavera de 1923, foi acertada entre o Komintern e o PCI a formação junto ao PCUS de uma seção dos emigrados comunistas italianos. Também o CC do PCUS parecia ter aceitado a ideia. Apesar disso, no último momento, tudo evaporou: aos comunistas italianos se impôs que se inscrevessem a título pessoal nas células do PCUS no posto de trabalho. A hipótese mais verossímil é que o responsável por isso foi Stalin. Precisamente a ele, com efeito, está endereçada a carta assinada por Gramsci e Armando Cocchi (com cópia no arquivo do Komintern), na qual se contesta o modo equívoco de formular o problema e o fato de se proceder sem consultar Gramsci na qualidade de representante oficial do PCI em Moscou [4]. Para Gramsci, esta poderia ser a primeira oportunidade de conhecer o verdadeiro papel de Stalin dentro da direção do PCUS, além dos seus métodos autoritários de resolver problemas políticos. 

Na aparência, a discussão no PCUS tinha como foco os problemas de democracia no partido, problemas que se destacavam nas publicações provenientes de ambas as partes. De tal modo permanecia oculta a substância real do conflito, isto é, o fato de que alinhamentos opostos disputavam, no âmbito do partido, posições exclusivas de comando. 

Em Viena, Gramsci não podia conhecer este pano de fundo. Ele só dispunha da informação pública. Daquilo que emerge da sua correspondência vienense com os companheiros na Itália, no início da discussão no PCUS, ele simpatizava antes com a oposição liderada por Trotski. O grupo de Stalin-Zinoviev censurava aos opositores erros “de direita”, atribuía-lhes uma orientação pequeno-burguesa e social-democrata. Ao contrário, Gramsci considerava-os expoentes da esquerda preocupados em salvaguardar o espírito autêntico da Revolução: “Requerendo uma maior intervenção do elemento operário na vida do partido e uma diminuição dos poderes da burocracia, eles querem, no fundo, assegurar à revolução o seu caráter socialista e operário e impedir que lentamente se chegue àquela ditadura democrática, invólucro de um capitalismo em desenvolvimento, que era o programa de Zinoviev e cia. ainda em novembro de 1917” [5]. Além disso, Gramsci, então envolvido no combate ao bordiguismo no PCI, era muito sensível ao problema da democracia dentro do partido e podia considerar convergente com o próprio pensamento a formulação de Trotski, sobretudo aquela relativa ao documento intitulado Novo curso. Com base na própria experiência de não formação da seção italiana em Moscou, Gramsci poderia concordar com Trotski em relação à crítica deste último acerca dos métodos burocráticos utilizados no PCUS sob a direção staliniana. O PCUS e o Komintern estavam amplamente empenhados na preparação da tentativa revolucionária na Alemanha (outubro de 1923). A responsabilidade pelo fracasso desta tentativa foi lançada sobre Trotski e Radek, líderes da oposição. Em janeiro de 1924, a XIII Conferência do PCUS e o Komintern (o presidium da Executiva) intimaram a oposição a reconhecer os erros que ela teria cometido, sob pena da aplicação de medidas disciplinares graves, inclusive expulsão. Gramsci, preocupado, escreve em 27 de março a Terracini, que o substituíra em Moscou junto ao Komintern: “Ficaria agradecido se me informasse sobre o estado atual da questão Trotski-Zinoviev. Ela, parece-me, terá reflexos no V Congresso, e talvez seja preciso assumir uma atitude em relação a ela. [...] A questão me parece sumamente interessante e plena de imprevistos” [6]. 

Há pouco de volta à Itália, Gramsci está à frente do PCI no auge da crise Matteotti. A situação política italiana o impede de ir a Moscou para o V Congresso do Komintern. Enquanto isso, no PCUS, depois da morte de Lenin, a luta entre Stalin e a oposição se torna cada vez mais encarniçada. Coadjuvado por Zinoviev, presidente do Komintern, Stalin tenta envolver outros partidos comunistas. O V Congresso condena a oposição no tocante à “questão russa”. A partir deste congresso Stalin intensifica a própria atividade no âmbito do Komintern. 

A linha do V Congresso acerca da situação do PCUS é adotada por Gramsci. A imprensa comunista italiana abre suas colunas para as publicações de proveniência russa voltadas para atingir Trotski. Em 19 de novembro de 1924, L’Unità começou a republicar o artigo do Pravda intitulado “Como não se deve escrever a história da revolução bolchevique” (que saiu também no Inprekorr) e publicado em resposta ao ensaio de Trotski Lições de Outubro (prefácio ao volume dos escritos de Trotski de 1917) [7]. L’Ordine Nuovo, ressurgido por iniciativa de Gramsci, publica escritos de Stalin [8]. No início de janeiro de 1925, a Executiva do PCI declara sua adesão à orientação da maioria do CC russo em relação a Trotski [9]. A Livraria Editora do PCUS anuncia a publicação do opúsculo de Stalin, O leninismo, além de uma coletânea, Leninismo ou trotskismo, que contém seja as Lições de Outubro, de Trotski, seja as reações polêmicas a este escrito por parte de vários expoentes do PCUS e do Komintern [10]. Por fim, às vésperas da quinta reunião ampliada da Executiva do Komintern (21 de março-6 de abril de 1925), o CC do PCI, mediante proposta de Gramsci (prestes a partir para Moscou), desaprova o juízo de Trotski sobre a situação internacional, bem como sobre as perspectivas da URSS e do movimento comunista [11]. 

Portanto, em relação ao período inicial da discussão no PCUS a orientação de Gramsci mostra-se substancialmente alterada. Na base desta mudança existem razões de princípio. Por volta da metade dos anos vinte já se revelam os problemas que estariam no centro da sua teoria política elaborada nos Cadernos (hegemonia, sociedade civil, guerra de posição e guerra de movimento, etc.). Tomando este caminho, afasta-se necessariamente cada vez mais de Trotski até chegar enfim a defini-lo “o teórico político do ataque frontal num período em que este é apenas causa de derrotas” [12]. Naturalmente, isso não comporta afinidade no plano da teoria política com a parte oposta, isto é, com Stalin. Mas, posto diante de uma escolha política, Gramsci escolheu em favor da maioria do CC russo contra Trotski. Esta escolha é confirmada também nos Cadernos (deve-se lembrar a célebre nota sobre “a divergência fundamental entre Leão Davidovitch e Bessarione como intérprete do movimento majoritário”) [13]. 

Durante a V Executiva ampliada, Gramsci não tomou parte na discussão sobre a “questão russa” explicada por Bukharin. No entanto, teve a oportunidade de encontrar Stalin eleito para a presidência e para várias comissões. Sem dúvida estava presente por ocasião do discurso de Stalin na comissão iugoslava (sendo ele mesmo membro desta comissão, falou na mesma sessão) [14]. Ao que parece, um contato pessoal entre Gramsci e Stalin não aconteceu. Todavia, a impressão imediata poderia contribuir para modificar em alguma coisa (em sentido positivo) aquela imagem de Stalin que Gramsci havia formado durante a primeira estada em Moscou. 

Enquanto isso, na comissão italiana da Executiva ampliada, o PCI foi censurado (por parte de Manuilski e Humbert-Droz) por um certo atraso na tomada de posição sobre o problema ideológico do trotskismo [15]. A mesma coisa aconteceria na fase seguinte, caracterizada por um alinhamento já diverso das forças em luta no PCUS (Zinoviev, que passara à oposição, forma um bloco com Trotski contra Stalin). 

Desde o início de 1926 a direção do PCI está sob pressão crescente exercida por Moscou, que pretende do partido a condenação das oposições não só por causa do fracionismo, mas também da substância do conflito (todos estes episódios foram amplamente comentados por Aldo Natoli) [16]. Nesta fase, parte muito ativa teve Togliatti, representante do PCI junto à Executiva do Komintern. Gramsci insiste em que o PCI não se pronuncie antes de ter todas as informações necessárias. De resto, esta era sua atitude mesmo antes da quinta reunião ampliada da Executiva (é o que se entrevê nos argumentos de Grieco e Scoccimarro aduzidos para explicar o “atraso” censurado ao PCI) [17].

Parece que, pouco antes da prisão de Gramsci, o PCI recebeu através do Komintern algumas informações mais detalhadas sobre a situação do PCUS. De fato, em setembro de 1926, foi enviada à Itália a primeira parte do sumário (em francês) da sessão de julho do CC russo que procedeu a medidas disciplinares contra os oposicionistas, excluindo Zinoviev do birô político. Desde logo, atribuía-se a Gramsci a obrigação de providenciar que os membros do CC italiano tomassem conhecimento dos fatos com todas as cautelas conspirativas [18]. 

São estes os antecedentes da famosa carta de Gramsci ao CC do PCUS. Portanto, esta carta deve ser relacionada a todo o percurso ideal por ele feito entre 1923-1926 acerca da “questão russa”. Gramsci finalmente tomou posição quanto ao mérito do conflito, declarando “fundamentalmente justa” a linha política da maioria e criticando as oposições. É uma atitude amadurecida longamente através, entre outras coisas, do reexame crítico das concepções de Trotski. Por outro lado, é inteiramente lógica e coerente a preocupação de Gramsci acerca da vontade da maioria de “vencer de modo esmagador esta luta” e recorrer a medidas excessivas. De fato, ele não estava nunca disposto a concordar com certas escolhas apressadamente e às cegas: sua adesão era sempre crítica. 

Notas
 
[1] Cf., por exemplo, A. Gramsci. Quaderni del carcere. Org. V. Gerratana. Turim: Einaudi, 1975 (daqui por diante Q), p. 893, 1.507, 2.164.
[2] Rossjskij Centr Chranenija i Izu?enija Dokumentov Novej?ej Istorii (RCChIDNI), f. 495, op. 161, d. 76.
[3] G. Somai. “Gramsci al Terzo Esecutivo Allargato (1923): i contrasti con l’Internazionale e una relazione inedita sul fascismo”. Storia contemporanea, out. 1989, p. 809.
[4] RCChIDNI, f. 508, op. 1, d. 99-a, ll. 2-4. A carta está escrita em russo, aliás titubeante e incorreto. A título de explicação também está anexada a carta precedente enviada ao CC do PCUS.
[5] P. Togliatti. La formazione del gruppo dirigente del Pci. Roma: Riuniti, 1962, p. 187-8 ([Gramsci] a Palmi, Urbani e C., Viena, 9 de fevereiro de 1924).
[6] Ib., p. 263.
[7] Cf. a “introdução” à tradução do artigo em A. Gramsci. La costruzione del Partito comunista (1923-1926) . Turim: Einaudi, 1971, p. 211-2. No entanto, o texto atribuído a Gramsci é dele somente em parte, a saber, a que contesta certas afirmações do Avanti! (o que vem antes é reproduzido do Inprekorr). Deve-se observar que o tom usado no tocante a Trotski pelo próprio Gramsci é inteiramente diferente daquele violentíssimo do Inprekorr:
[8] Cf. L’Ordine Nuovo, 1 nov. e 15 nov. 1924, 1 mar. 1925.
[9] Boletim do Partido Comunista da Itália (Seção da Internacional Comunista), jan. 1925, RCChIDNI, f. 495, op. 25, d. 629, l. 8 (verso).
[10] Ib., l. 11 (verso); L’Ordine Nuovo, 1 mar. 1925.
[11] Cf. Gramsci. La costruzione del Partito comunista, cit., p. 473.
[12] Q, p. 801-2.
[13] Q, p. 1.729.
[14] Cf. o discurso de Gramsci em RCChIDNI, f. 495, op. 163, d. 319, ll. 16-28.
[15] Ib., d. 325, ll. 2, 19.
[16] A. Natoli. “Il Pcd’I e il Komintern nel 1926. Appunti di storia e storiografia”. In: A. Natoli e S. Pons (Orgs.). L’età dello stalinismo. Roma: Riuniti, 1991.
[17] RCChIDNI, f. 495, op. 163, d. 319, ll. 7-8, 10-11.
[18] Ib., f. 495, op. 18, d. 465-b, l. 10.




24 de dez. de 2011

O ciclo do tempo e o tempo do ciclo

Por Mauro Iasi.

Coluna escrita no Rio de Janeiro (debaixo do Cristo que vai cair).
Tempo, tempo, tempo… cantava Caetano há algum tempo. Achava ele que era um dos deuses mais lindos por ser tão inventivo e parecer contínuo. Criamos o tempo para escapar de uma sensação por demais angustiante, a de viver um fluxo sem sentido, que não sabemos de onde veio e para onde vai. No mundo da objetividade as coisas simplesmente são, no seu movimento próprio, apagando e acendendo segundo a necessidade, dizia o velho Heráclito que acreditava que nada é permanente a não ser a mudança, o movimento.

O ser humano inventou o tempo, dividiu esse fluxo contínuo em ciclos, em aberturas e fechamentos. Para isso precisava intervir nos ciclos das coisas, controlá-los, por assim dizer. O dia é engolido pela noite de onde brota um novo dia, as estações se sucedem numa ordem, os seres e plantas nascem, crescem e morrem, em uma palavra: ciclos. Através do trabalho os seres humanos se apropriam das coisas e lhes dão outra forma e utilidade. As plantas seguiram nascendo de acordo com seus ciclos naturais, em determinadas estações, por exemplo, mas nós escolheremos sementes, armazenaremos para que durem até quando sejam necessárias, cuidaremos de seu plantio, de seu desenvolvimento, intervindo em seu ritmo natural e colocando-o a nosso serviço. Domesticaremos e cuidaremos de animais para que suas criar estejam disponíveis e não tenhamos que buscá-las na natureza. O tempo está, como vemos, diretamente ligado ao controle, aquilo que Lukács chamava de “superação das barreiras naturais”.

O ser humano se distancia da natureza sem que jamais possa deixar de ser um ser natural, nesse sentido o tempo e seus ciclos são mais uma expressão desta síntese própria de um ser natural que se torna um ser social. Estamos convencidos que no corpo dessa síntese, o tempo é um elemento próprio do ser social, isto é, ele não é uma substância que exista fora da apreensão social do gênero humano que leva a percepção de “sequências temporais integradas num fluxo regular, uniforme e contínuo”, como definia Norbert Elias em seu livro Sobre o Tempo. Tal concepção nos trás implicações filosóficas e científicas importantes.

No campo filosófico a humanidade compreendeu o tempo como uma dimensão que se apresentaria “a priori”,  como em Descartes e Kant, como um elemento invariável e próprio da consciência humana, ou seja, independente de seu momento histórico e bagagem cultural. Da mesma maneira para Newton e sua famosa segunda lei, o tempo é uma grandeza absoluta, isto é, não varia segundo o instrumento e medida utilizados para dele se apropriar. Hoje sabemos que as coisas não são bem assim. Seja pelo fato comprovável que a própria noção de tempo varia muito de acordo com a história e a cultura de cada agrupamento humano, seja pela comprovação que a lei de Newton só se sustenta considerando invariáveis a situação medida em corpos que se movem em velocidades abaixo da velocidade da luz, o que leva a famosa relatividade de Einstein.

Dois exemplos. Um caminhante entra em contato com uma nação indígena que está realizando uma espécie de encontro e abre-se a discussão se ele poderia ou não participar por não ser parte do povo. Depois de semanas apresentando argumentos se decide que ele não pode ficar e que será acompanhado, na primeira oportunidade que se apresentar para fora do local do encontro. Esta oportunidade se apresenta alguns meses depois e durante todo este tempo ele foi ficando por ali. Outro exemplo: um grupo africano tem suas lendas e cosmogonias que segundo eles explicariam tudo desde a origem dos tempos, mas quando entra em contato com representantes de nossa sociedade acabam agregando elementos deste contato em suas cosmogonias e passam a repeti-los como se estivessem presentes desde sempre, ficando muito difícil ao observador atual saber o que já estava antes e o que se agregou pelo contato.

Estes povos pensam de forma diversa do que nós nos acostumamos a pensar o tempo. Ele não é um fluxo integrado, uniforme e regular de eventos que se encadeiam sucessivamente numa sequência. Poderíamos dizer que o tempo não é para eles linear e plano. O problema para nossa arrogante sensação de superioridade intelectual, que esta concepção está mais próxima da forma como a física contemporânea pensa o tempo. Para os físicos de hoje e a noção de “contínuo espaço-tempo”, não há dúvidas que o tempo, assim como o espaço, é curvo. 

Para além das grande implicações de tais aproximações para o conhecimento do universo, nos interessa aqui uma dimensão mais prosaica. Um ser de nossa época tende a compreender sua localização tempo-espacial como um ponto bem determinado entre um conjunto de eventos passados que culminam numa configuração de um presente e que se abre a um devir que chamamos de futuro. Mas a questão que nos interessa aqui é a que distancia estamos deste devir. Não se trata de uma distancia no espaço que possa ser medida em quilômetros ou milhas, mas uma dimensão de tempo.

Alguém no meio da época medieval que se perguntasse quando tudo isto vai mudar poderia ter como uma resposta de um ser do futuro que ainda restaria algo entorno de quinhentos anos, o que o deixaria um tanto quanto angustiado. Um diggers  na Inglaterra do século XVII, que acreditava que a revolução em curso derrotaria a monarquia e acabaria com a desigualdade entre os seres humanos com o fim da propriedade e a igualdade real de direitos teria ainda que ver a solução de compromisso entre a revolução burguesa e a monarquia sobrevir até o século XXI e a esperada igualdade adiada uma e outra vez. No conhecido poema de Brecht, no qual afirma que as eras não começam de uma vez, de forma que seu avó poderia estar vivendo em um novo tempo e seu neto, talvez, ainda vivesse no velho, nos dá uma idéia desta “curvatura” do tempo nas dimensões históricas.

Tal fenômeno que no campo da física Einstein denominou de “discrepâncias” e que levariam ao que identificou como “dilatação-contração” do tempo, no caso da história e sua percepção pelos indivíduos não tem uma explicação física, mas se sustenta em algo semelhante. O indivíduo tem ele próprio uma dimensão temporal, mas se inclui num fluxo histórico que se expressa em uma outra dimensão temporal, isto é, um ser que dura em sua existência individual algo cerca de uns setenta anos, tenta apreender um fluxo que só pode se resolver na escala de séculos, por vezes milênios.
Consideremos algumas grandezas: o sistema solar teria se formado há aproximadamente cinco bilhões de anos; a terra se formou há quatro milhões e meio de anos; a vida na terra cerca de meio bilhão de anos depois e somente há cerca de seis milhões de anos começam a surgir os chamados hominídeos e há três milhões e meio de anos é que “Lucy”, uma astrolopitecus afanasis, andava por aquilo que hoje seria a Etiópia. O nosso velho e bom homo sapiens datariam de100 a 130 mil anos.

As formas societárias que consideramos na chamada história antiga, os egípcios, por exemplo, organizavam-se por volta de três mil anos e nossa atual e medíocre sociedade capitalista emergiu da crise da forma feudal européia entre o século XVI e XVIII, portanto tem ridículos quinhentos ou seiscentos anos. Isso significa que considerando somente a história do homo sapiens o capitalismo é menos e 0,5% de nosso tempo e considerando dos hominídeos para cá, algo próximo de 0,01%.

O problema é que para nossa dimensão temporal parece ser eterno. Pensemos no seguinte exemplo. Uma formiga tenta atravessar um campo de um quilometro. Ela levaria, em sua velocidade habitual de0,20 cmpor segundo, algo como dois meses, que é o que vive certas formigas. Para ela uma distancia de dois quilômetros passa a ser inimaginável, se é que formigas perdem tempo imaginando estas coisas. O capitalismo para nossa vida media de setenta anos seria como sete campos destes, o desenvolvimento do homo sapiens cerca de mil e quatrocentos destes campos.

Nosso psiquismo não suporta esta dimensão, por isso repartimos o tempo em ciclos menores para nos dar a impressão de que encerramos algo e que iniciamos outro momento. É o significado dos ritos de passagem da vida da criança para a adulta e do fim do ano e seus festejos.  Fazemos o balanço do que fizemos, prometemos melhorar, iniciar aquele regime adiado, organizar de forma mais eficiente as contas para não estourar o cartão, comemos lentilha, guardamos uma semente de romã na carteira e assistimos o show do Roberto Carlos.

No entanto, não podemos fazer isso nos fins dos ciclos históricos. A função do ciclo é dar a impressão daquela uniformidade e regularidade que nos falava Elias, mas o fim dos ciclos históricos nos coloca diante do salto de qualidade, da ruptura, da transformação da quantidadeem qualidade. Pareceque o tempo passa mais rápido. Os acontecimentos se precipitam, a conjuntura se comprime em momentos decisivos, em dez dias que abalam todo o mundo, em meses que mudam um país, em semanas que desfazem um governo, em horas em que se produzem fusões que se mantiveram inertes por décadas e séculos. O mundo se move sob nossos pés, tão rápido que começa a causar vertigem nos mais desavisados. Tudo que é sólido se desmancha no ar.

O ano vai acabar inexorávelmenteem dezembro. Maso século XX acabou e o século XXI ainda não começou, configurando um paradoxo que nem Einstein compreenderia totalmente.  Estamos no meio de uma transição histórica. As consciências em tempos como estes recorrem a um subterfúgio: o fim do mundo. Foi assim no final do feudalismo como provam as profecias de Nostradamus e os diversos mitos que pululavam no final do período medieval. Agora neste fim de ciclo que vivemos recupera-se o calendário Maia para afirmar o fim do mundo em dezembro de 2012.

Os Maias trabalhavam com ciclos de mais ou menos cinco mil anos e acontece que para eles o mundo já acabou várias vezes e várias vezes foi reconstruído. Mas de todos os fins do mundo esse talvez seja o mais ridículo. Empresas norte americanas estão ganhando bilhões construindo abrigos e arcas, vendendo kits na internet (com lanternas e sopas prontas), seitas se mudam para a Argentina para morar em cabanas de pedra sem luz elétrica (talvez por acreditarem que se não verem o noticiário na TV escapem da hecatombe) e Hollywood faz filmes em que as arcas são construídas na China e só os que puderem pagar é que embarcarão para a salvação.

Assim é que juntamos nossas orações com os companheiros Maias para que este ciclo e este mundo realmente acabe o mais rápido possível e desejamos à todos um novo ciclo e século novo no qual continuaremos ocupados em superar a pré-história e iniciar a verdadeira história da humanidade, dando mais um passo de formiga para atravessar este enorme campo que se abre diante de nossos pés cansados… até que o sol se apague daqui há seis bilhões e meio de anos, mais ou menos quando toda a humanidade deverá ter transitado dos combustíveis fósseis para a energia solar.

***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas

14 de dez. de 2011

Por que o PCB homenageia Carlos Marighella

Ivan Pinheiro (Secretário Geral do PCB)

Neste mês, comemora-se o centenário de Carlos Marighella. Juntamente com outras instituições, a Fundação Dinarco Reis, ligada organicamente ao PCB, convoca um ato público em sua homenagem, nesta quinta-feira, na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro.

Na ocasião, sem qualquer pretensão de querer se apropriar da imagem de Marighella (que pertence a todos os brasileiros que lutam contra a opressão), o PCB quer marcar seu orgulho por ele ter militado por décadas em nosso Partido, tendo sido Deputado e Constituinte em 1946 e, principalmente, um dirigente partidário combativo, organizador e agitador, este adjetivo que soa como acusação para a direita e como elogio para os comunistas.

Por isso, no evento desta quinta-feira, entregaremos à sua família, em memória, a MEDALHA DINARCO REIS com que anualmente distinguimos personalidades que marcaram a história do PCB. Este gesto será apenas uma parte do Ato Público, cujo caráter é muito mais amplo, do ponto de vista das organizações e personalidades que o organizaram e daquelas que dele participarão. Marighella não é reivindicado apenas pelos comunistas, mas por todos aqueles que lutam por liberdade e justiça social.

É impossível falar de Marighella sem falar do PCB - a grande escola onde se formou e militou a maior parte de sua vida como revolucionário – e sem ao menos tangenciar alguns aspectos das divergências sobre a linha política pendular do partido da década de 50 à de 80 do século passado, que geraram uma verdadeira diáspora dos comunistas brasileiros.

É impossível também falar de Marighella, fundador da ALN (Ação Libertadora Nacional), sem lembrar de outros revolucionários que também divergiram da orientação política do PCB após o golpe de 1964, adotando formas de luta diferenciadas, como Luiz Carlos Prestes, Apolônio de Carvalho, Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves e tantos outros.

O PCB, em sua reconstrução revolucionária, olha com respeito para todos os que saíram do Partido àquela época e se mantiveram na esquerda. Os que tentaram liquidar o PCB e o abandonaram, pela direita, merecem o nosso desprezo.

Este respeito vem da compreensão de que as divergências com a linha política do Partido têm sua origem nos equívocos que levaram à derrota popular em 1964. Suas raízes estão na chamada Declaração de Março de 1958, que privilegiava alianças com setores da burguesia e a via institucional de transição ao socialismo. Com esta linha, o PCB desarmou a possibilidade de resistência popular diante do golpe.

No entanto, respeitar e compreender o surgimento destas dissidências do PCB após 1964 não significa concordar com a forma de luta adotada por algumas delas. Apesar de legítima e em geral inevitável para o trânsito ao socialismo, a luta armada não era adequada àquela correlação de forças e ao nível de organização e mobilização da resistência popular à ditadura.

Diante do erro cometido antes de 1964, consideramos correta, até 1979, a linha política adotada pelo VI Congresso do PCB, em 1967, de enfrentamento à ditadura pela via do movimento de massas e da frente democrática, até porque não restavam outras alternativas. Novos erros vieram depois, nos anos 80, com a manutenção da política de frente democrática que já havia perdido a atualidade. Foi a década perdida do PCB, do ponto de vista revolucionário, marcada pela conciliação de classe.


No entanto, não estamos entre aqueles que negam ou subestimam o papel da insurgência armada adotada por algumas organizações no período que, ao preço de muitas vidas que nos fazem falta, também contribuíram para a derrubada da ditadura.

Também é preciso ficar claro que a ditadura não escolhia suas vítimas apenas em função dos meios com que lutavam. Entre 1973 e 1975, foram assassinados dezenas de camaradas do PCB, cujos corpos jamais apareceram, dentre eles quase todos os membros do Comitê Central que aqui atuavam na clandestinidade.

Ao homenagearmos Marighella não queremos transformá-lo apenas em um personagem da história, mas principalmente fazer dele um exemplo de luta para as novas gerações.

(13 de dezembro de 2011)
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