30 de ago. de 2010

O Império contra-ataca (e perde)

James Petra

Introdução

A política estadunidense com relação à Venezuela tem adotado muitos desvios táticos, mas o objetivo tem sido sempre o mesmo: derrotar o Presidente Hugo Chávez, inverter o processo de nacionalização das grandes empresas, abolir os conselhos comunitários e sindicais de base e devolver ao país a situação de estado cliente.

Washington financiou e respaldou politicamente um golpe militar no ano de 2002, um boicote patronal nos anos 2002-2003, um referendo e uma infinidade de tentativas de desestabilizar o regime por intermédio dos meios de comunicação, organizações políticas e ONGs. Até o momento, todos os esforços da casa Branca fracassaram; Chávez ganhou uma e outra vez em eleições livres, conservou a lealdade do exército e o respaldo da imensa maioria da população urbana e rural mais pobre, das avultadas es trabalhadoras e das es médias empregadas no setor público.

Washington não se resignou em aceitar o governo eleito do Presidente Chávez. Ao contrário, com cada derrota de seus colaboradores no interior do país, a Casa Branca foi adotando cada vez mais uma estratégia externa, erguendo um cordão militar poderoso ao redor da Venezuela com uma presença militar de grande escala que abarca toda a América Central, o norte da América do sul e o Caribe. A Casa Branca de Obama respaldou um golpe militar em Honduras que derrubou o governo eleito democraticamente do Presidente Zelaya (em junho de 2009), aliado de Chávez, e o substituiu por um regime títere que apóia as políticas militares de Washington contra Chávez. O Pentágono conseguiu estabelecer sete bases militares no leste da Colômbia (em 2009), que visam à fronteira venezuelana, graças a seu governante cliente, Álvaro Uribe, o célebre presidente narcoparamilitar. Em meados de 2010, Washington subscreveu um acordo sem precedentes com a aquiescência da Presidência direitista da Costa Rica, Laura Chinchilla, para destacar 7.000 soldados de combate estadunidenses, 200 helicópteros e dezenas de buques apontando para a Venezuela, com o pretexto da perseguição ao narcotráfico. Na atualidade, os EUA estão negociando com o regime direitista do presidente do Panamá, Ricardo Martinelli, a possibilidade de reabrir uma base militar na antiga zona do canal. Juntamente com a Quarta Frota que patrulha as costas, 20.000 soldados no Haiti e uma base aérea em Aruba, Washington cercou a Venezuela pelo oeste e pelo norte, estabelecendo zonas de lançamento de tropas para uma intervenção direta, caso as circunstâncias internas se mostrem favoráveis.

A militarização da política da casa Branca para a América Latina, e para Venezuela em particular, forma parte de sua política global de confronto e intervenção armada. Sobretudo, o regime de Obama aumentou os alvos e o alcance das operações dos esquadrões da morte clandestinos que hoje em dia operam em 70 países de quatro continentes, aumentou a presença bélica no Afeganistão em mais de 30.000 soldados, mais outros 100.000 mercenários que atuam atravessando as fronteiras para penetrar no Paquistão e Irã, subministrando material e proporcionando apoio logístico a terroristas armados iranianos. Obama intensificou a provocação com manobras militares nas costas da Coréia do Norte e no Mar da China, o que suscitou protestos em Pequim. Igualmente revelador é o fato de que o regime de Obama aumentou o pressuposto militar em mais de um bilhão de dólares, apesar da crise econômica, do monumental déficit, dos chamamentos à austeridade e dos cortes na Previdência Social e em outros seguros sanitários como Medicare ou Medicaid.

Dizendo de outro modo: a atitude militar de Washington para a América Latina e, em especial para o governo socialista democrático do presidente Chávez, faz parte de uma resposta militar geral para qualquer país ou movimento que se negue a submeter-se ao domínio estadunidense. Aparece então uma pergunta: por que a casa Branca recorre à alternativa militar? Por que militariza a política exterior para obter resultados favoráveis frente a uma oposição firme? A resposta reside, em parte, na questão de que os Estados Unidos perderam quase toda a influência econômica que exercia anteriormente e o permitia derrubar ou submeter os governos rivais. A maior parte das economias asiáticas e latino-americanas alcançou certo grau de autonomia. Outras não dependem das organizações econômicas internacionais em que os Estados Unidos exercem influencia (FMI, Banco Mundial), pois obtém empréstimos comerciais. A maioria diversificou suas pautas comerciais e de investimento e articulou outros vínculos regionais. Em alguns países, como Brasil, Argentina, Chile ou Peru, a China substituiu os Estados Unidos como principal sócio comercial. A maior parte dos países já não busca ajuda estadunidense para estimular o crescimento, mas trata de forjar iniciativas conjuntas com empresas multinacionais, às vezes radicadas fora da América do Norte. Washington recorreu cada vez mais à opção militar até o ponto de que retorcer o braço econômico dos países deixou de ser uma ferramenta efetiva para garantir a obediência. Washington foi incapaz de reconstruir seus instrumentos de alavanca econômica internacionais até o extremo de que a elite financeira estadunidense esvaziou o setor industrial do país.

Os fracassos diplomáticos estrepitosos derivados de sua incapacidade para adaptar-se às transformações fundamentais do poder global também impulsionaram Washington a abandonar as negociações políticas e a comprometer-se com as intervenções e confrontos militares. Os legisladores estadunidenses ainda vivem congelados nas décadas de 1980 e 1990, época do apogeu dos governantes clientes e da pilhagem econômica, quando Washington recebia respaldo mundial, privatizava empresas, explorava o financiamento da dívida pública e raramente encontrava obstáculos no mercado internacional. No final da década de 90, auge do capitalismo asiático, as revoltas massivas contra o neoliberalismo, a ascensão de regimes de centro- esquerda na América Latina, as reiteradas crises econômicas, as grandes quedas da bolsa de valores do EUA e da EU e o aumento dos preços das mercadorias desembocou em uma reordenação do poder global. Os esforços de Washington para desenvolver políticas em sintonia com as décadas anteriores entravam em conflito com a nova realidade da diversificação dos mercados, as potências emergentes e os regimes políticos relativamente independentes vinculados às novas massas de eleitores.

As propostas diplomáticas de Washington de isolar Cuba e Venezuela foram rejeitadas por todos os países da América Latina. Rejeitaram a tentativa de reativar acordos de livre comércio que privilegiavam os exportadores estadunidenses e protegiam seus produtores competitivos. O regime de Obama, decidido a não reconhecer os limites do poder diplomático imperial nem a moderar suas propostas, recorreu cada vez mais à opção militar.
A luta pela reafirmação do poder imperial através de uma política intervencionista não deu resultados melhores que suas iniciativas diplomáticas. Os golpes de Estado na Venezuela (2002) e Bolívia (2008) foram derrotados pela mobilização popular massiva e pela lealdade do Exército aos regimes vigentes. Assim mesmo, na Argentina, Equador e Brasil, os regimes pós-neoliberais respaldados pelas elites industriais, mineiras e do setor agrícola exportador e pelas es populares conseguiram fazer retroceder as elites pró-estadunidenses neoliberais enraizadas na política da década de 1990 e anteriores. A política de desestabilização não conseguiu impedir a construção de políticas exteriores relativamente independentes destes novos governos, que se negaram a voltar à velha ordem da supremacia estadunidense.

Onde Washington recuperou terreno político com a eleição de regimes políticos direitistas, conseguiu graças à sua capacidade de aproveitar-se do desgaste da política de centro-esquerda (Chile), da fraude política e da militarização (México e Honduras), da decadência da esquerda popular nacional (Costa Rica, Panamá e Perú) e da consolidação de um estado policial enormemente militarizado (Colômbia). Estas vitórias eleitorais, principalmente na Colômbia, convenceram Washington que a alternativa militar, unida à intervenção e à exploração profunda dos processos eleitorais abertos, é a maneira de frear o giro à esquerda na América Latina, sobretudo na Venezuela.

A política estadunidense para Venezuela: combinar táticas militares e eleitorais.

Os esforços dos EUA para derrubar o governo democrático do presidente Chávez adotam muitas das táticas já aplicadas contra adversários democráticos anteriores. Entre elas se encontra o estabelecimento de forças militares e paramilitares colombianas nas fronteiras, algo semelhante aos ataques transfronteiriços da “contra” financiada pelos EUA para debilitar o governo sandinista da Nicarágua na década de 80. A tentativa de cercar e isolar a Venezuela se assemelha à política desenvolvida por Washington na segunda metade do século passado contra Cuba. A canalização de fundos para grupos, partidos políticos, meios de comunicação e ONGs opositores através de agências estadunidenses e fundações fictícias é uma reedição da tática empregada para desestabilizar o governo democrático de Salvador Allende no Chile, o de Evo Morales na Bolívia e muitos outros governos da região.

A política de Washington de utilizar múltiplas vias, na fase atual, está orientada para uma escalada da guerra de nervos, base para intensificar incessantemente as ameaças à segurança. As provocações militares, em parte, são uma tentativa de testar os dispositivos de segurança da Venezuela, com o objetivo de sondar os pontos fracos de sua defesa terrestre, marítima e aérea. Este tipo de provocação também faz parte de uma estratégia de desgaste, cujo objetivo é obrigar o governo de Chávez a pôr suas tropas defensivas em alerta e mobilizar a população para, a continuação, reduzir a pressão até o próximo ato de convocação. A intenção é desautorizar as alusões constantes do governo venezuelano às ameaças, com o fim de debilitar a vigilância e, quando as circunstâncias permitirem, dar o golpe oportuno.

A acumulação militar de Washington no exterior está concebida para intimidar os países do Caribe e América Central que puderam tratar de estabelecer relações econômicas mais estreitas com a Venezuela. A demonstração de força também está concebida para fomentar a oposição interna às ações mais agressivas. Ao mesmo tempo, a atitude de confrontação se dirige contra os setores fracos ou moderados do governo chavista que estão ansiosos e impacientes pela reconciliação, ainda pagando o preço de realizar concessões sem escrúpulos à oposição e ao novo regime colombiano do Presidente Santos. A presença militar crescente está concebida para tornar mais lento o processo de radicalização interna e para evitar o fortalecimento dos laços cada vez mais estreitos da Venezuela com Oriente Próximo e outros regimes contrários à hegemonia estadunidense. Washington está apostando que uma escalada militar e uma guerra psicológica que vincule a Venezuela a movimentos insurgentes revolucionários, como a guerrilha colombiana, desembocarão no distanciamento dos aliados e amigos latino-americanos de Chávez em relação ao seu regime. Igualmente importantes são as acusações sem fundamento vertidas por Washington, segundo as quais a Venezuela alberga acampamentos guerrilheiros das FARC, cuja intenção é pressionar Chávez para que reduza o apoio que presta a todos os movimentos sociais da região, incluindo o dos camponeses sem terra do Brasil, assim como as organizações não violentas de direitos humanos e os sindicatos da Colômbia. Washington busca a polarização política: EUA ou Chávez. Despreza a polarização política existente hoje, que enfrenta Washington com o MERCOSUL, a organização para a integração econômica na qual, junto com Venezuela, participam Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, em sintonia com os países membros, ou com a ALBA (uma estrutura de integração econômica na qual participam Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Equador e alguns outros Estados caribenhos).

O Fator FARC

Obama e o atual ex-presidente Uribe acusaram a Venezuela de brindar um santuário para as guerrilhas colombianas (FARC e ELN). Na realidade, trata-se de uma argúcia para pressionar o presidente Chávez a denunciar ou, no mínimo, pedir para que as FARC abandonem a luta armada com as condições impostas pelos regimes estadunidense e colombiano.

Contrariamente aos alardes do ex-presidente Uribe e do Departamento de Estado estadunidense, segundo os quais as FARC são um resíduo decadente, isolado e vencido como consequência de campanhas contrainsurgentes vitoriosas, um estudo de campo minucioso realizado por um investigador colombiano, A guerra contra as FARC e a guerra das FARC, demonstra que nos últimos anos a guerrilha consolidou sua influência em mais de um terço do país, e que o regime de Bogotá controla apenas a metade do país. Depois de sofrer derrotas importantes em 2008, as FARC e o ELN avançaram de forma sustentada durante os anos de 2009 e 2010, causando mais de 1.300 baixas militares no ano passado e, seguramente, quase o dobro este ano (La Jornada, 8 de junho de 2010). O ressurgir e o avanço das FARC são uma importância fundamental no que se refere à campanha militar de Washington contra a Venezuela. Também refletem a posição de seu “aliado estratégico”: o regime de Santos. Em primeiro lugar, demonstram que, mesmo com mais 6 bilhões de dólares de ajuda militar estadunidense à Colômbia, sua campanha contra a insurgência para “exterminar” as FARC fracassou. Em segundo lugar, a ofensiva das FARC abre uma “segunda frente” na Colômbia, o que debilita toda a tentativa de empreender a invasão da Venezuela utilizando a Colômbia como “trampolim”. Em terceiro lugar, ante uma luta de es interna mais intensa, é provável que o novo presidente Santos trate de aliviar as tensões com a Venezuela, com a esperança de remanejar tropas destacadas na fronteira com seu vizinho para destinar-las à luta contra a crescente insurgência guerrilheira. Em certo sentido, apesar dos receios de Chávez sobre a guerrilha e dos apelos para o fim da luta guerrilheira, o ressurgir dos movimentos armados seguramente é um fator fundamental para debilitar as perspectivas de uma intervenção encabeçada pelos Estados Unidos.

Conclusão 

A política de múltiplas vias de Washington direcionada para desestabilizar o governo venezuelano foi contraproducente em geral, sofreu fracassos importantes e colheu poucos êxitos.
A linha dura contra a Venezuela não conseguiu alcançar nenhum apoio nos principais países da América Latina, com exceção da Colômbia. Isolou Washington, não Caracas. As ameaças militares quiçá hajam radicalizado as medidas socioeconômicas adotadas por Chávez, não as moderaram. As ameaças e acusações procedentes da Colômbia fortaleceram a coesão interna na Venezuela, exceto no núcleo duro dos grupos de oposição. Também levaram a Venezuela a melhorar seus serviços de inteligência, polícia e operações militares. As provocações da Colômbia promoveram uma ruptura nas relações e um descenso de 80% do comércio transfronteiriço multimilionário, deixando em falência uma infinidade de empresas colombianas, já que a Venezuela efetuou a substituição por importações agrárias e industriais procedentes do Brasil e Argentina. Os efeitos das medidas para intensificar a tensão e a “guerra de desgaste” são difíceis de ponderar, sobretudo em termos do impacto que puderam causar sobre as próximas eleições legislativas de 26 de setembro de 2010, de crucial importância. Sem dúvida, o fracasso da Venezuela na hora de regular e controlar a afluência multimilionária de fundos estadunidenses até seus sócios venezuelanos no interior causaram um impacto importante na sua capacidade organizativa. Não existe dúvida de que a piora da economia foi perceptível na restrição do gasto público para novos programas sociais. Além disso, a incompetência e a corrupção de vários altos cargos chavistas, sobretudo no âmbito da distribuição pública de alimento, na habitação e na segurança, terão consequências eleitorais.

É provável que estes fatores “internos” influenciem muito mais na hora de dar forma à distribuição do voto na Venezuela que a política de confrontação agressiva adotada por Washington. No entanto, se a oposição pró-estadunidense aumentar de forma substancial sua presença legislativa nas eleições de 26 de setembro (superando um terço dos membros do Congresso), tratará de bloquear as mudanças sociais e as políticas de estímulo econômico. Os Estados Unidos dobrarão seus esforços para pressionar a Venezuela com o fim de que desvie recursos para assuntos de segurança, diminuindo os gastos socioeconômicos que sustentam o apoio de um 60% mais pobre da população venezuelana.

Até o momento, a política da Casa Branca, baseada em uma maior militarização e praticamente nenhuma iniciativa econômica nova, foi um fracasso. Animou os países latino-americanos mais extensos a aprofundar sua integração econômica, como comprovam os novos acordos aduaneiros e alfandegários adotados na reunião do MERCOSUL de princípios de agosto deste ano. Isto não significou a diminuição das hostilidades entre Estados Unidos e os países da ALBA, tampouco representou o aumento da influência dos Estados Unidos. Em troca, a América Latina avançou na consolidação de uma organização política regional nova, UNASUL (que exclui os Estados Unidos), baixando de categoria a Organização dos Estados Americanos – OEA, que os Estados Unidos utilizam para impulsionar seus planos. As únicas luzes que brilham distante, por ironia do destino, procedem dos processos eleitorais internos.

O que Washington não consegue compreender é que, em todo espectro político que compreende desde a esquerda até a centro-direita, os dirigentes políticos temem e se opõem a que o impulso e o fomento estadunidense à alternativa militar constituam o elemento central da política. Praticamente todos os líderes políticos têm recordações desagradáveis do exílio e da perseguição política do ciclo anterior de regimes militares respaldados pelos Estados Unidos. O autoproclamado alcance territorial do exército estadunidense, que opera desde suas sete bases na Colômbia, aumentou a brecha existente entre os regimes democráticos centristas e de centro-esquerda e a Casa Branca de Obama. Em outras palavras: a América Latina percebe a agressão militar estadunidense contra a Venezuela como um primeiro passo em direção ao sul para chegar também a seus países. Junto ao impulso para uma maior independência política e a diversificação dos mercados, isso debilitou as tentativas diplomáticas e políticas de Washington de isolar a Venezuela.

O novo Presidente Santos da Colômbia, produzido com o mesmo molde direitista de seu predecessor Álvaro Uribe, enfrenta um dilema espinhoso: continuar sendo um instrumento de confrontação militar e desestabilização estadunidense da Venezuela, à custa de vários bilhões de dólares em perdas comerciais e do isolamento do resto da América Latina, ou aliviar as tensões e incursões fronteiriças, desembaraçando-se da retórica da provocação e normalizando as relações com Venezuela. Caso suceda este último, Estados Unidos perderá a última ferramenta de sua estratégia exterior de alimentar as “tensões” e a guerra psicológica. Para Washington, restam duas opções: uma intervenção militar direta e unilateral ou financiar uma guerra política através de seus colaboradores no interior do país.

Enquanto isso, o Presidente Chávez e seus partidários fariam bem em concentrar-se em tirar a economia da recessão, aplacar a corrupção do Estado e a ineficiência monumental e capacitar os conselhos comunitários e fabris para que desempenhem um papel mais relevante em todos os aspectos, desde o incremento da produtividade até a segurança pública. Em última instância, uma segurança de longo prazo da Venezuela, contra os tentáculos longos e penetrantes do império estadunidense, depende da força de organização dos agrupamentos de massas que sustentam o governo de Chávez.

Traduzido por Tereza Jurgensen e Otávio Dutra.

Fonte: AQUI

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29 de ago. de 2010

O Bloco Operário Camponês (BOC): a tentativa de via eleitoral dos comunistas.



Como todos sabem a trajetória do PC do Brasil (PCB) iniciou-se em 1922. Influenciados pela experiência da Revolução Russa de 1917, um pequeno grupo de militantes reuniu-se em Niterói, nos dias 25, 26 e 27 de março, e fundaram o Partido Comunista do Brasil (PCB). Os 9 militantes presentes representavam várias organizações de caráter comunista das cidades de São Paulo, Recife, Porto Alegre, Niterói, Cruzeiro (SP) e do Distrito Federal. Podemos citar a "União Maximalista de Porto Alegre" dirigida por Abílio Nequete e o Grupo Comunista de Recife sob a liderança de Cristiano Cordeiro.

Outra organização que participou das discussões preparatórias e dos trabalhos do congresso de fundação do PCB foi o Grupo Comunista do Rio de Janeiro, que editava a revista "Movimento Communista" importante instrumento para divulgação e mobilização dos grupos comunistas do país. Dirigida pelo jornalista Astrogildo Pereira, a revista em seu primeiro número em janeiro de 1922, conclamava a unidade do proletariado em torno das idéias comunistas, deixando explícitas suas finalidades, "trilhamos o bom caminho e cônscios de nossas responsabilidades, afirmamos nossa fé inquebrantável no triunfo final do comunismo".

O PCB teve como principais desafios em seus primeiros anos de existência os embates com os militantes anarquistas e as perseguições do governo do presidente Arthur Bernardes que, praticamente, durante seus quatro anos de mandato (1923-1927), governou um país em permanente Estado de Sítio.

Assim, ao longo da década de 1920, apesar de toda a insipiência do movimento sindical, das disputas teóricas com os anarquistas e da repressão do governo, o PCB conseguiu estabelecer núcleos organizados em várias cidades do pais, principalmente, nos maiores centros urbanos. No ES as primeiras informações sobre a ação dos comunistas remetem exatamente a esse período. Os relatos são sobre a organização de bases entre os ferroviários na cidade de Cahoeiro de Itapemirim.

Mesmo com todos os problemas enfrentados os comunistas brasileiros conseguiram realizar seu II Congresso Nacional, em maio de 1925, novamente na cidade de Niterói. Nesse fórum partidário foram aprovadas resoluções políticas que apontavam para a necessidade da intensificação dos trabalhos de organização e mobilização entre o operariado.

No campo político o partido avaliava que depois dos dois primeiros levantes tenentistas de 1922 e 1924, o clima de instabilidade e disputas havia estabelecido uma divisão entre as elites do país que apontava para uma encruzilhada sobre o modelo de desenvolvimento nacional: em uma direção os defensores do "industrialismo" - apoiados pelo imperialismo dos EUA - e na outra direção os adeptos do "agrarismo" - apoiado pelo imperialismo inglês. A contradição sobre a chamada "concepção dualista" da sociedade brasileira, tese defendida e elaborada pelo intelectual Otávio Brandão, apontava para uma "terceira revolta" que deveria contar com o PCB pronto para conduzi-lá.

Contudo, com o fim do governo de Arthur Bernardes veio também a suspensão do Estado de Sítio. Isso possibilitou que, a partir de 1927, o PCB pudesse ter uma atuação mais aberta e passasse a realizar, por exemplo, panfletagens e comícios com uma relativa liberdade. Entretanto, após algum tempo a relativa liberdade dos comunistas sofreu um duro golpe, foi apresentado o projeto Aníbal Toledo que, apesar dos protestos e varias manifestações contrarias, contou com ampla maioria no Congresso Nacional e acabou sendo aprovado em agosto daquele mesmo ano.

Também conhecida como "Lei Celerada", a nova legislação repressora previa: a ilegalidade dos partidos de oposição, prisões de dirigentes, expulsão de estrangeiros, proibição de greves, de manifestações de trabalhadores, o fechamento de sindicatos, de organizações e entidades classistas. Novamente considerado ilegal, o PCB precisou buscar alternativas para ampliar seus espaços políticos.

Foi nesse contexto que os dirigentes comunistas intensificaram a experiência da frente de massas, chamada de Bloco Operário. Assim, surgiram em todo país os núcleos do Bloco Operário Camponês (BOC). Em sua primeira experiência eleitoral o BOC obteve uma importante vitória: elegeu dois vereadores na cidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal na época).

Um dos vereadores – ou intendentes como eram chamados - outro intendente eleito pelo BOC no DF, foi o camarada Minervino de Oliveira, importante dirigente do partido que chegou a ocupar o posto de Secretário Geral do PCB. Veterano militante, recrutado a partir de sua participação nas greves operárias da década de 1910, Minervino era marmorista e havia entrado para o PCB em seus primeiros anos de fundação.

Aproveitando o momento de crescimento do partido naquele momento ocasionado pela política de frente ampla do BOC a direção do PCB resolveu ousar ainda mais: lançar Minervino de Oliveira candidato à presidência da república pelo BOC nas eleições de 1930. Mesmo com todas as dificuldades e perseguições – Minervino chegou a ser preso pela polícia durante um comício na cidade de Campos- RJ - foram organizados núcleos estaduais e municipais do BOC em quase todos os estados do país, inclusive, no Espírito Santo. Dessa maneira, Minervino de Oliveira foi o primeiro candidato operário que disputou as eleições presidenciais no Brasil.

Esse pleito – mais uma disputa marcada pela corrupção e fraude eleitoral - teve como resultado a vitória do candidato paulista Julio Prestes, que recebeu o apoio do então presidente Washington Luiz. As eleições de 1930 representaram um marco na histórica política brasileira, pois significaram a ruptura da aliança entre as elites de SP e MG. Os políticos mineiros apoiaram o candidato da Aliança Liberal, Getúlio Vargas, que pouco tempo depois liderou um Golpe de Estado, conhecida como "Revolução de 1930", que derrubou o presidente Washington Luiz e deu inicio a chamada Era Vargas.

Apesar de ter sido pontuada por problemas e debilidades o lançamento de um candidato operário ao cargo de presidente da república cumpriu uma importante missão durante aquela complexa e agitada conjuntura política: demonstrar que o partido podia aproveitar os debates eleitorais para organizar os trabalhadores. No momento atual de redefinição da tática eleitoral do PCdoB recordar experiências como do BOC são importantes para relembrar que os comunistas já enfrentaram e superaram obstáculos muito maiores dos que estão postos na atualidade.

NOTAS:

1- Os delegados presentes na fundação do partido eram: Astrogildo Pereira (RJ), José Elias da Silva (RJ), Cristiano Cordeiro (PE), João da Costa Pimenta (SP), Joaquim Barbosa (DF), Luis Peres (DF), Hermogênio Silva (SP), Abílio Nequete (RS) e Manuel Cendon, Para maiores informações sobre a fundação do PCB ver em : DULLES, John W. F. Anarquistas e comunistas no Brasil – 1900 -1935. RJ: Nova Fronteira, 1977.

2- Revista Movimento Communista, I, janeiro de 1922. Apud: PEREIRA, Astrogildo. Construindo o PCB (1922-1924). (ORG). ZAIDAN, Michel. São Paulo:Livraria Editora Ciências Sociais, 1980, pg. 17.

3- A cisão entre anarquistas e comunistas chegou ao extremo das organizações criarem dois sindicatos rivais e de federações de trabalhadores da mesma categoria. DULLES, pg.152, 1977.

4- Como conseqüência das restrições das liberdades democráticas, após sua fundação o PCB teve apenas três meses de funcionamento legal.

5- Em 1925 foi lançado o órgão informativo oficial A Classe Operária, que depois de apenas dez
edições foi fechado pelo governo. A Classe Operária só retornou sua periodicidade pública apenas em 1 de maio de 1928.

6- DULLES, Op. Cit. pg. 225, 1977.

7- Nesse período o jornal A Nação passou a ser o órgão oficial do PCB, com direito a estampar em sua primeira página a foice e o martelo e a palavra de ordem do Manifesto Comunista: "Proletários de todos os países uni-vos".

8- CARONE,Edgard. A República Velha. Evolução Política. 3º ed. Rio de Janeiro: Difel, 1977, pg. 406.

 Por
Pedro Ernesto Fagundes

20 de ago. de 2010

Política x sociedade: o paradoxo da mulher em Moçambique

Lídia Sitoe e Ana Rita Sithole são moçambicanas com condições de vida completamente diferentes. Por meio de suas histórias, é possível delinear o paradoxo vivido em Moçambique quando o assunto é a situação da mulher na política e na sociedade. Enquanto algumas poucas ocupam altos cargos oficiais, a grande maioria é refém de uma estrutura machista, que as priva da educação. Resultado: 70% dos 11 milhões vivendo em extrema pobreza no país são do gênero feminino.

6h15 da manhã. O sol começa a nascer em Changalane, pequeno vilarejo a 80 km de Maputo, capital nacional de Moçambique, mas Lídia, de 60 anos, já está acordada a mais de uma hora trabalhando em sua “machamba” – maneira como moçambicanos nomeiam suas próprias plantações. A moradora da região aprendeu o ofício aos 12 anos, quando passou a cuidar das tarefas de casa ao abandonar de vez a escola primária. 

Opera Mundi 
 Maioria das moçambicanas que vive no campo está em situação de extrema pobreza, segundo dados oficiais 

“Era difícil estudar quando eu era nova porque meus pais falavam todo o tempo que minha obrigação mesmo era ajudar minha mãe a cozinhar, lavar roupa e trabalhar na machamba para conseguirmos ter comida suficiente para todos. Por isso, abandonei a escola, não havia tempo de me dedicar a aprender”, conta em seu idioma local, o shangana.

Meio-dia. A sessão da Assembléia da República termina e a deputada Ana Rita Sithole, já em seu quinto mandato, vai almoçar ao som de chamadas no celular de colegas da oposição se desculpando pelas discussões acaloradas do dia. Política experiente, atuando na área desde a luta pela independência de Moçambique, conquistada em 1975, a deputada nunca leva para o lado pessoal os debates.

“A maior conquista feminina nos últimos anos foi a participação em órgãos onde decisões são tomadas, em todos os níveis. Antes, os homens conseguiam evitar que denunciássemos o que estava acontecendo de errado, mas hoje as mulheres têm mais voz para dizer o que pensam e propor soluções para a melhoria de suas condições de vida”, afirma.
Se, por um lado, a presença feminina em cargos de liderança do governo em Moçambique é uma das maiores do mundo, por outro, as mulheres ainda sofrem com uma estrutura social repressiva, na qual a liberdade de escolha e o direito à educação são garantidos prioritariamente aos rapazes.

Presença política

Enquanto no Brasil a presença de mulheres no parlamento não passa de 10%, a Assembleia da República Moçambicana possui um total de 40% de representatividade feminina. Pela primeira vez, inclusive, o órgão é presidido por uma mulher, Verônica Macamo, respeitada entre os colegas e símbolo da luta pela emancipação feminina no país. Nos ministérios, cerca de um terço entre ministros e vice-ministros são dirigidos por mulheres.

A presença da mulher na política moçambicana tem origem distante, juntamente ao nascimento de Moçambique como uma nação independente de Portugal. Os movimentos de libertação que chegaram ao auge nos anos 1970, culminando na oficialização da independência do país e criação da República de Moçambique, possuíam o apoio geral da população e a trazia para perto da luta. 

Opera Mundi 
Inspirados pela linha de pensamento socialista, os líderes inconfidentes pregavam a igualdade entre todos, sem discriminação quanto à idade, cor, tribo, religião e sexo. Nesse contexto, por exemplo, as mulheres possuíam sua própria facção dentro da Frelimo (Frente de Libertação Moçambicana) – partido atualmente no poder –, a chamada OMM (Organização das Mulheres Moçambicanas).

“Tivemos dirigente militares mulheres durante as lutas. Temos heroínas vivas que foram do exército, dirigentes. A OMM criou cada vez mais condições para envolver a mulher nas tarefas de governança nacional, independentemente das convicções políticas de cada uma”, conta Sithole.

Trinta e cinco anos depois da conquista da independência e 20 anos após o tratado de paz que colocou fim à guerra civil que estourou no país após a saída dos colonizadores portugueses, a representatividade das mulheres na política ainda pode ser fortemente observada.

Parte disso se deve ao cunho histórico do envolvimento feminino nas mobilizações populares, mas políticas internas contribuem, como o estabelecimento de cotas para mulheres dentro de partidos como meio de garantir uma percentagem mínima presente desse grupo. Essa medida foi uma das formas encontradas para combater o machismo ainda parte do meio político em Moçambique.

“Já senti muita discriminação nos meus 20 anos como deputada, porque para os cargos de chefia, de tomada de decisão, dificilmente uma mulher é indicada. É uma experiência nova ter a presidente da assembléia uma mulher. Mas creio que isso não é condição suficiente, porque os homens fazem barreiras”, opina Sithole.

A ideia de que toda mulher enfrentará mais dificuldades na política por causa de preconceitos antigos não é partilhada por todas. Maria Elias Jonas, atual governadora da província de Maputo, a mais importante econômica e politicamente no país, conta que nunca experimentou discriminação em sua carreira, porque vê as coisas de outra forma.

“Nunca sofri preconceito por ser mulher de maneira alguma. Acredito que isso se deve também porque nunca diferenciei homem de mulher, então nunca vi esse tipo de discriminação contra mim”, diz.

Segundo ela, a participação feminina na política é fundamental para a igualdade de gênero, uma vez que, historicamente, foram as mulheres que lutaram e melhoraram sua própria situação. Na economia, na sociedade e na política, “todas as conquistas das mulheres foram por méritos próprios”.

A Coordenação para a Mulher no Desenvolvimento do Fórum da Mulher, organização não-governamental muito respeitada no meio, por outro lado, afirma que é importante ter mulheres no poder, mas isso não é suficiente. Acima de tudo, segundo eles, as representantes femininas devem ter como pauta principal a questão de igualdade de gênero e devem “acima de tudo, lembrar-se de que são mulheres e, como tal, devem ser representantes das necessidades e das expectativas das outras mulheres que não tem oportunidade de se fazerem ouvir”.

Desigualdade de gênero

O grande paradoxo da intensa participação política feminina em Moçambique é a situação desprivilegiada em que se encontram grande parte das mulheres comuns no país em suas vidas cotidianas.

As maiores desigualdades de gênero são observadas nas zonas rurais mais afastadas da capital do país, Maputo. Entre as 7,5 milhões de mulheres morando nessas áreas, mais de seis milhões são analfabetas. Além disso, cerca de 90% dos trabalhadores agrícolas são mulheres, mas 85% das explorações agro-pecuárias são controladas por homens.  

19 de ago. de 2010

José Serra representa a Burguesia e a volta do neoliberalismo

Nilton Viana*

Em entrevista a Brasil de Fato, José Pedro Stédile afirma que “a sociedade brasileira não é democrática. Nós nos iludimos com as liberdades democráticas de manifestação, que conquistamos contra a ditadura, que foram importantes. Mas a verdadeira democracia é garantir a cada e a todos cidadãos direitos e oportunidades iguais, de trabalho, renda, terra, educação, moradia e cultura. Por isso, mesmo quando elegemos governos com propostas progressistas, eles não têm força suficiente para alterar as leis do mercado e a natureza do Estado burguês”.

A candidatura de José Serra (PSDB) representa o núcleo central dos interesses da burguesia e a volta do neoliberalismo. Esta é a avaliação João Pedro Stedile. Em sua primeira entrevista ao Brasil de Fato, o dirigente nacional do MST e da Via Campesina constata que, no atual cenário eleitoral, as candidaturas não estão debatendo programas, projetos para a sociedade. Mas, segundo ele, elas representam claramente interesses diversos de forças sociais organizadas. Nesse sentido, Stedile afirma que Serra representa os interesses da burguesia internacional, da burguesia financeira, dos industriais de São Paulo, do latifúndio atrasado, com Katia Abreu de coordenadora de finanças e setores do agronegócio do etanol. E, frente a esse cenário, defende que, “como militantes sociais, e como movimentos sociais, temos a obrigação política de derrotar a candidatura Serra”.

Brasil de Fato – Com a implementação do modelo neoliberal, os bancos e o capital financeiro aumentaram seus lucros e passaram a dirigir a economia do Brasil, que se sustenta na política de juros altos, meta de inflação, arrocho fiscal e política de exportações. Quais as consequências desse modelo?

João Pedro Stedile – Estamos vivendo a etapa do capitalismo que se internacionalizou, dominou toda a economia mundial sob a hegemonia do capital financeiro e das grandes corporações que atuam em nível internacional. O mundo é dominado por 500 grandes empresas internacionalizadas, que controlam 52% do PIB mundial e dão emprego para apenas 8% da classe trabalhadora. As consequências em nível mundial são um desastre, pois toda população e os governos nacionais precisam estar subordinados a esses interesses. E eles não respeitam mais nada, para poder aumentar e manter suas taxas de lucro. Seus métodos vão desde a apropriação das riquezas naturais, deflagração de conflitos bélicos para manter as fontes de energias e controle do Estado, para se apropriarem da mais-valia social ou poupança coletiva através dos juros que os estados pagam aos bancos. No Brasil, a lógica é a mesma. Com um agravante, sendo uma economia muito grande e dependente do capital estrangeiro, aqui o processo de concentração de capital e de riqueza é ainda maior. Esta é a razão estrutural do porquê – apesar de sermos a oitava economia mundial em volume de riquezas – estamos em 72º lugar nas condições médias de vida da população e somos a quarta pior sociedade do mundo em desigualdade social. Portanto, essa fase do capitalismo, em vez de desempenhar um papel progressista no desenvolvimento das forças produtivas e sociais, como foi a etapa do capitalismo industrial; agora, os níveis de concentração e desigualdade só agravam os problemas sociais. 

Mesmo com a eleição de governos mais progressistas, o Estado brasileiro mantém seu caráter antipopular, sem a realização de mudanças mais profundas que resolvam os problemas estruturais do país. Como você avalia a democracia e o Estado no Brasil?

Primeiro, há uma lógica natural do funcionamento da acumulação e da exploração do capital que sobrepõe os governos e as leis. Segundo, no período neoliberal, o que o capital fez foi justamente isso, privatizar o Estado. Ou seja, a burguesia transformou o Estado em seu refém, para que ele funcione apenas em função dos interesses econômicos. E sucateou o Estado nas áreas de políticas públicas de serviços que servem a toda população, como educação, saúde, transporte público, moradia etc. Por exemplo, temos 16 milhões de analfabetos. Para alfabetizá-los, custaria, no máximo, uns R$ 10 bilhões. Parece muito – o Estado, com todo seu aparato jurídico impede de aplicar esse dinheiro –, mas isso representa duas semanas do pagamento de juros que o Estado faz aos bancos. Construímos viadutos e estradas em semanas, mas para resolver o deficit de moradias populares é impossível? Temos ainda 10 milhões de moradias faltando para o povo.

Por último, a sociedade brasileira não é democrática. Nós nos iludimos com as liberdades democráticas de manifestação, que conquistamos contra a ditadura, que foram importantes. Mas a verdadeira democracia é garantir a cada e a todos cidadãos direitos e oportunidades iguais, de trabalho, renda, terra, educação, moradia e cultura. Por isso, mesmo quando elegemos governos com propostas progressistas, eles não têm força suficiente para alterar as leis do mercado e a natureza do Estado burguês.

Na política internacional, o governo Lula investiu na relação com países do hemisfério Sul, com o fortalecimento do Mercosul e da Unasul, por exemplo. Qual a sua avaliação dessa política e quais os seus limites?

O governo Lula fez uma política externa progressista no âmbito das relações políticas de Estado.
E uma política dos interesses das empresas brasileiras, nos seus aspectos econômicos. Comparado às políticas neoliberais de FHC, que eram totalmente subservientes aos interesses do imperialismo, isso é um avanço enorme, pois tivemos uma política soberana, decidida por nós. Na política, se fortaleceram os laços com governos latinos e daí nasceu a Unasul para a América do Sul, e a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) para todo o continente, excluindo-se os Estados Unidos e o Canadá. Esses dois organismo representam o fim da OEA. Aliás, já tarde. Na economia se fortaleceram laços econômicos com países do Sul. Mas ainda precisamos avançar mais na construção de uma integração continental que seja de interesse dos povos, e não apenas das empresas brasileiras, ou mexicanas e argentinas. Uma integração popular latino-americana no âmbito da economia será o fortalecimento do Banco do Sul, para substituir o FMI. O banco da Alba, para substituir o Banco Mundial. E a construção de uma moeda única latino-americana, como é proposto pela Alba, através do sucre, para sair da dependência do dólar. Se queremos independência e soberania econômica nas relações internacionais e latino-americanas, é fundamental colocarmos energias para derrotar o dólar. O dólar foi fruto da vitória estadunidense na segunda guerra mundial e tem sido, nessas décadas todas, o principal mecanismo de espoliação de todos os povos do mundo. Num aspecto mais amplo, o presidente Lula tem razão: as Nações Unidas não representam os interesses dos povos, e por isso é besteira o Brasil sonhar em ter a presidência. Precisamos é construir novos e mais representativos organismos internacionais. Mas isso não depende de propostas ou vontade política. Depende de uma nova correlação de forças mundial, em que governos progressistas sejam maioria. E hoje não são.

O sistema de televisão e rádio é extremamente concentrado no Brasil, em comparação até com os outros países da América Latina. Quais as consequências disso para a luta política?

Durante o século 20, hegemonizado pela democracia republicana e pelo capitalismo industrial que produziu uma sociedade de classes bem definida, a reprodução ideológica da burguesia se dava pelos partidos políticos, pelas igrejas e pelos sindicatos e associações de classe. Agora, na fase do capitalismo internacionalizado e financeiro, a reprodução da ideologia dominante se dá pelos meios de comunicação, em especial redes de televisão e as agências internacionais de noticias. A burguesia descartou os outros instrumentos e prioriza estes, os quais tem controle total. Por isso, no Brasil, na América Latina e em todo o mundo, os meios de comunicação estão sob controle absoluto das burguesias. E eles usam como reprodução ideológica, como fonte de ganhar dinheiro e como manipulação política. E como seus patrões estão internacionalizados, suas pautas e agendas estão também centralizadas. Por isso, a construção de um regime político mais democrático, mesmo nos marcos do capitalismo, depende fundamentalmente da democratização dos meios de comunicação. Isso é fundamental para garantir o direito ao acesso à informação honesta e impedir a manipulação das massas. E os governos deveriam começar eliminando a publicidade estatal, em qualquer nível, em qualquer meio de comunicação. É uma vergonha o que se gasta em publicidade oficial. No Paraná, para se ter uma ideia, em oito anos de governo Lerner [1995-2002], o Estado pagou mais de R$ 1 bilhão em publicidade para dois ou três grupos de comunicação.

As grandes cidades brasileiras enfrentam problemas como falta de habitação, saneamento básico, escolas, hospitais, além de trânsito e violência. Como você analisa a questão urbana?

A maior parte da população se concentra nas grandes cidades, e aí estão concentrados também os pobres e os maiores problemas resultantes desse modelo capitalista, e de um Estado que atua somente em favor dos ricos. Os pobres das grandes cidades se amontoam nas periferias, não têm direito a moradia, escola, transporte público decente, trabalho, renda. Nem a lazer. Sobram os programas de baixaria da televisão como lazer. Nesse contexto é evidente que o sistema gera um ambiente propício para o narcotráfico, para a violência social.

E o Estado, o que tem feito através dos mais diferentes governos?

A única resposta tem sido a repressão. Mais polícia, mais violência oficial, mas cadeia. As cadeias estão cheias de pobres, jovens, mulatos ou negros. Há uma situação insustentável de tragédia social. Todos os dias assistimos os absurdos da desigualdade social, do descaso do Estado e da truculência do capital. As estatísticas são aterrorizantes: 40 mil assassinatos por ano nas grandes cidades, a maioria pela polícia. Por isso os movimentos sociais apoiaram a campanha pelo desarmamento. Mas a força das empresas bélicas financiou deputados, campanhas etc., e o povo caiu na ilusão de que o problema da violência urbana se resolveria tendo o direito de ter arma. Acredito que a pobreza e a desigualdade nas grandes cidades brasileiras é o problema social mais grave que temos. Infelizmente nenhum candidato está debatendo o tema, nem quando o debate é para prometer segurança! Segurança para quem? As famílias precisam de segurança de trabalho, renda, escola para os filhos.

Nas eleições presidenciais, o quadro apresenta duas candidaturas que polarizam a disputa, enquanto as outras não demonstram força para mudar essa situação. Nessa conjuntura, quem abre melhores perspetivas para a classe trabalhadora e para a reforma agrária?

As candidaturas não estão debatendo programas, projetos para a sociedade. Mas as candidaturas representam claramente interesses diversos de forças sociais organizadas. Serra representa os interesses da burguesia internacional, da burguesia financeira, dos industriais de São Paulo, do latifúndio atrasado, com sua Katia Abreu de coordenadora de finanças, e setores do agronegócio do etanol. Dilma representa setores da burguesia brasileira que resolveram se aliar com Lula, setores mais arejados do agronegócio, a classe média mais consciente, e praticamente todas as forças da classe trabalhadora organizada. Vejam, apesar de toda popularidade do Lula, nessa campanha, a Dilma reuniu mais forças da classe trabalhadora do que na eleição de 2006. A candidatura da Marina representa apenas setores ambientalistas e da classe média dos grandes centros, e por isso seu potencial eleitoral não decola. E temos três candidaturas de partidos de esquerda, com companheiros de biografia respeitada de compromisso com o povo, mas que não conseguiram aglutinar forças sociais ao seu redor, e por isso, o peso eleitoral será pequeno. Nesse cenário, nós achamos que a vitória da Dilma permitirá um cenário e correlação de forças mais favoráveis a avançarmos em conquistas sociais, inclusive em mudanças na política agrícola e agrária. E evidentemente que nesse cenário incluímos a possibilidade de um ambiente propício para maior mobilização social da classe trabalhadora como um todo, para a obtenção de conquistas. Como militantes sociais, e como movimentos sociais, temos a obrigação política de derrotar a candidatura Serra, que representa o núcleo central dos interesses da burguesia e a volta do neoliberalismo.

O MST apresentou uma avaliação de que a luta eleitoral não é sufi ciente para a realização das mudanças sociais. Por outro lado, analisa que é um momento importante no debate político. Como o MST vai se envolver nessas eleições?

A esquerda brasileira, os movimentos sociais e políticos ainda estão aturdidos com a derrota político-ideológica-eleitoral que sofremos em 1989. Isso levou a muitas confusões, e também a alguns desvios de setores da classe. Vivemos um período da história da luta de classes de nosso país – e poderíamos dizer em nível internacional, na maioria dos países – em que a estratégia para conseguir acumular forças para mudanças sociais é a combinação da luta institucional com a luta social. Na luta institucional, compreendemos a visão gramsciana na qual os interesses da classe trabalhadora precisam disputar e ter hegemonia na disputa de governos nos três níveis: municipal, estadual e federal. Nos espaços do conhecimento, universidade, meios de comunicação. Nos sindicatos, igrejas e outras instituições da sociedade de classes. E a luta social são todas as formas de mobilização de massa, que possibilitam o desenvolvimento da consciência de classe e a conquista de melhores condições de vida – sabendo que elas dependem de derrotar os interesses do capital. Pois bem, o que aconteceu no último período? Parte da esquerda e da classe trabalhadora priorizou a luta institucional da disputa apenas de governos e menosprezou, desdenhou a luta social. E parte dos movimentos sociais, desencantado com a crise ideológica, desdenhou a luta institucional, como se a luta direta, de massas, fosse sufiente. Luta social apenas, sem disputar projeto político na sociedade e sem disputar os rumos institucionais do Estado, não consegue acumular para a classe. Podem até eventualmente resolver problemas pontuais da classe, mas não mudam a natureza estrutural da sociedade. O MST compreende que devemos aglutinar, combinar, estimular as duas formas de luta, de forma permanente. Para que com isso possamos acumular forças, organizadas, de massa, de forma orgânica, que construa um projeto político da classe e ao mesmo tempo crie condições para o reascenso do movimento de massas, pois este é o período histórico em que a classe tem condições de ir para a ofensiva, de tomar inciativa política, de pautar seus temas para todo o povo. Por isso, claro que todo militante do MST, como cidadão consciente, deve arregaçar as mangas e ajudar a eleger os candidatos mais progressistas em todos os níveis. Isso é uma obrigação de nosso compromisso com a classe.

Desde os tempos do governo FHC, José Serra fez declarações contra a reforma agrária e o MST. No entanto, nas últimas semanas, vem intensificando os ataques. Na sua visão, por que ele vem agindo dessa forma?

Por dois motivos. Primeiro, porque as forças sociais que ele representa agora, como porta-voz maior, são as forças da classe dominante do campo e da cidade, que são contra os interesses dos camponeses, da classe trabalhadora em geral e do povo brasileiro. Portanto, ele é contra a reforma agrária não porque não goste do MST, mas por uma questão de interesse de classe. Segundo, na minha avaliação, é que a coordenação tucana acha que a única chance do Serra crescer eleitoralmente é adotar um discurso de direita, para polarizar e, então, se mostrar mais de confiança do que a Dilma. Por isso adotou todos os ícones da esquerda para bater. Bate em nós, em Fidel, em Cuba, Chávez, Evo Morales, até no bispo Lugo ele bateu. Achou uma conexão das Farc com o PT absurda. Ele sabe que o partido está mais próximo da social-democracia. Não é por ignorância, é por tática eleitoral. Acho que ele errou também na tática. E vai ficar refém de seu discurso de direita sem ampliar os votos. Eu acho ótimo que ele se revele como direitista mesmo. Ajuda a clarear os interesses de classe das candidaturas. E por isso mesmo vai perder de maior diferença do que o Alckmin perdeu do Lula em 2006.

Atualmente, o movimento sindical vem fazendo a luta pela redução da jornada, mas está fragmentado em uma série de centrais sindicais. Quais os problemas e desafios da luta sindical atualmente?

Não tenho a pretensão de dar lições a ninguém. Há valorosos companheiros que atuam na luta sindical que têm muitos elementos para analisar a situação da organização de classe. Os problemas e desafios da organização sindical são evidentes. Mas não estão no número de sindicatos ou de centrais. Isto, ao contrário, até poderia ser visto como vitalidade, já que as correntes sindicais sempre existiram, são importantes e aglutinam por vertentes ideológicas. Os desafios da unidade da classe nos sindicatos passam pela necessidade de recuperarmos o trabalho de base, a organização, de toda a classe, lá no local de trabalho e no de moradia. Ninguém mais quer fazer reunião na porta de fábrica, na fábrica (mesmo que de forma clandestina, como era nos tempos do Lula). Precisamos recuperar o sentido da luta de massas como a única expressão da força da classe. Precisamos recuperar o debate de temas políticos, relacionados com um programa para a sociedade que extrapole as demandas salariais e corporativas. Precisamos recuperar a importância de o movimento sindical ter seus próprios meios de comunicação de massa. Saúdo a chegada da televisão dos trabalhadores no ABC. Mas precisaríamos ter antes, e em todas regiões metropolitanas. Precisamos recuperar a formação de militantes da classe trabalhadora, em todos os níveis. Sem conhecimento, sem teoria, não haverá mudanças. E, com essas iniciativas, certamente poderemos construir um processo de maior unidade, já que os interesses da classe como um todo serão o denominador comum, e de construção do reascenso do movimento de massas.

Um grupo de dirigentes e estudiosos avalia que a sociedade brasileira passou por uma transformação, e sindicatos e partidos políticos não são suficientes para organizar o povo brasileiro, especialmente com o aumento da informalidade. Com isso, seria necessário construir novos instrumentos para a luta política. Como você avalia os desafios organizativos da classe trabalhadora?

As formas de organização da classe em partidos, sindicatos e associações de bairro foram desenvolvidas pela classe, como respostas ao desenvolvimento da exploração pelo capitalismo industrial, desde os tempos de Marx até os dias atuais. Acho que o problema não é ficar analisando se serve ou não, jogar tudo fora e pensar novos instrumentos. Cada tempo histórico tem suas formas de organização, suas formas de luta de massa e produz suas próprias lideranças. Estamos vivendo um período de derrota político-ideológica que gerou crise ideológica e organizativa na classe. Um período de refluxo do movimento de massas. Mas isso faz parte de um período, de uma onda. Logo ingressaremos em novos períodos. Acho que o principal não é discutir a forma, mas tratar de organizar de todas as maneiras possíveis todos os setores da classe trabalhadora. E evidentemente que a forma sindical ou partidária não está conseguindo chegar na juventude pobre, da classe trabalhadora das periferias. E precisamos descobrir novos métodos e novas formas. As formas podem ter outros rótulos, outros apelidos, mas o principal é que a classe precisa se organizar do ponto de vista econômico, corporativo, para resolver suas necessidades e problemas imediatos; e precisa ter organização política, para disputar projetos para a sociedade. E só vamos resolver os problemas de organização organizando. A prática é a melhor conselheira, do que grandes teses, nesse caso.

Dentro de um modelo que tem hegemonia de bancos e do capital financeiro, com o enfraquecimento da indústria, baseado no consumo de massa, quais as perspectivas de futuro para a juventude?

A juventude pobre, da classe trabalhadora urbana, não tem espaço nesse modelo de dominação do capital financeiro e internacionalizado. Nem nos países chamados ricos, como na Europa, onde o desemprego atinge até 40% da juventude. O futuro da juventude está justamente em desenvolver uma consciência como classe trabalhadora. Se apenas ficar se olhando como jovem e sem oportunidades, não vai encontrar as respostas, vai ficar velho sem as respostas. Precisamos desenvolver consciência de classe, e motivá-los para que se mobilizem, lutem. E como estão fora das fábricas, da escola, temos que desenvolver novas formas de trabalho político com a juventude, que a ajude a debater, a se aglutinar, para que descubra que o futuro é agora. Tenho esperanças, há uma massa enorme da juventude trabalhadora urbana que está em silêncio. Ou ainda alienada, iludida. Alguns tentando entrar no mercado consumidor, como se fosse a felicidade geral. Logo perceberão que precisam ter uma atitude, uma participação ativa na sociedade.

O MST vem fazendo a avaliação de que a reforma agrária não avançou durante o governo Lula. Por quê?

É preciso ter claro os conceitos e o significado da reforma agrária. Reforma agrária é uma política pública, desenvolvida pelo Estado, para democratizar a propriedade da terra e garantir o acesso a todos os camponeses que queiram trabalhar na terra. Do ponto de vista histórico, ela surgiu numa aliança da burguesia industrial no poder com os camponeses que precisavam terra, para sair da exploração dos latifundiários. E, assim, a maioria das sociedades modernas fez reforma agrária a partir do século 19 e ao longo do século 20. Depois tivemos as reformas agrárias populares e socialistas, que foram feitas por governos populares ou revolucionários, no bojo de outras mudanças sociais. Aqui no Brasil nunca tivemos reforma agrária. A burguesia brasileira nunca quis democratizar a propriedade da terra. Ela preferiu manter aliança com os latifundiários para que continuassem exportando matérias-primas (e aí ela usaria os dólares da exportação para bancar a importação de máquinas) e sobretudo preferiu expulsar os camponeses para a cidade, para criar um amplo exército industrial de reserva, que manteve ao longo do século 20 os salários industriais mais baixos de todas as economias industriais do mundo. E os camponeses brasileiros nunca tiveram forças, sozinhos nem em aliança com os trabalhadores da cidade, para impor uma reforma agrária aos latifundiários. Chegamos mais perto disso em 1964. E tivemos um baita programa de reforma agrária, em aliança com o governo Goulart. A resposta da burguesia foi se aliar com Império e impor a ditadura militar de classe. As políticas dos governos no Brasil e do governo Lula são de assentamentos rurais. Ou seja, aqui e acolá, pela força da pressão camponesa, desapropria algumas fazendas para aliviar os problemas sociais. Mas isso não é reforma agrária. Tanto que o censo do IBGE de 2006 revelou que agora a concentração da propriedade da terra é maior do que no censo de 1920, quando recém saímos da escravidão. E no governo Lula não tivemos espaço para debater um processo de reforma agrária verdadeiro, e nem tivemos força de massas para pressionar o governo e a sociedade. Por isso, a atual política de assentamentos é insuficiente por um lado, mas reflete a correlação de forças políticas que há na sociedade. Lamentamos apenas que algumas forças dentro do governo se iludam a si mesmas, fazendo propaganda ou achando que essa política de assentamentos – insuficiente – fosse reforma agrária.

Alguns estudiosos e setores sociais, até mesmo na esquerda, avaliam que passou o tempo da reforma agrária no Brasil. Qual o papel da reforma agrária dentro do atual estágio de desenvolvimento?

É verdade, nós também dizemos isso. Não há mais espaço para uma reforma agrária clássica, que visava apenas distribuir terra aos camponeses e eles produziriam com suas próprias forças e família para o mercado interno. Esse modelo era viável no auge e para o desenvolvimento nacional e do capitalismo industrial. Mas ele é inviável não porque o MST desdenha, e sim porque as forças políticas e sociais que poderiam ter interesse não têm mais. Se houvesse uma reviravolta nas classes que dominam o Brasil, e um novo projeto de desenvolvimento nacional e industrial entrasse na pauta política, aí a reforma agrária clássica teria lugar. Mas não é isso que se desenha. Então, qual a alternativa agora? É lutar por um novo tipo de reforma agrária. Uma reforma agrária que nós chamamos de popular. Que o movimento de pequenos agricultores chama de Plano Camponês, que a própria Contag e Fetraf chamam de agricultura familiar. São rótulos diferentes para um conteúdo semelhante. Ou seja, nós precisamos reorganizar o modelo de produção agrícola do país. Nós queremos usar nossa natureza para uma agricultura diversificada, fixando as pessoas no meio rural com melhoria das condições de vida, eliminando o latifúndio (não precisa ser muitos, apenas os acima de 1.500 hectares), adotando técnicas de produção de agroecologia, respeitosas ao meio ambiente e, sobretudo, produzindo alimentos sadios para o mercado interno. Nossa proposta de reforma agrária popular, no entanto, depende de um novo modelo de desenvolvimento, que tenha distribuição de renda, soberania nacional, rompimento com o domínio do capital estrangeiro sobre a agricultura e a natureza.

Como a reforma agrária pode beneficiar o conjunto da sociedade, especialmente a população das cidades?

A reforma agrária e a fixação do homem no campo são fundamentais para reduzir o desemprego na cidade e elevar os patamares do salário mínimo e a média salarial. A burguesia só paga baixos salários e aumenta o número de empregados domésticos porque todos os dias chegam milhares de novos trabalhadores se oferecendo para serem explorados. A reforma agrária é a única que pode produzir sem venenos. A grande propriedade do agronegócio só consegue produzir com veneno, porque não quer mão de obra, e esse veneno vai para o estômago de todos nós. Na última safra foram um bilhão de litros de venenos, 6 litros por pessoa, 150 litros por hectares. Uma vergonha. Um atentado. A reforma agrária ajuda a resolver o problema de moradia e do inchaço das cidades. Também vai reequilibrar o meio ambiente e com isso teremos menos mudanças climáticas que estão afetando agora, com mais força, as cidades. Vejam o que aconteceu no Nordeste. Num dia, 13 cidades foram varridas do mapa pelas chuvas torrenciais. Não foi a chuva a culpada, e sim o monocultivo da cana que alterou o equilíbrio e empurrou o povo para a beira do rio. Mas isso só o general Nelson Jobim viu e teve coragem de dizer. A Globo ficou quietinha procurando acobertar. Nenhuma área de reforma agrária de Pernambuco e Alagoas foi atingida, por que será? E nossos assentamentos foram os primeiros, antes do governo, a dar guarida aos desabrigados.

Por que a Via Campesina e o MST vêm realizando protestos contra as grandes empresas do agronegócio? As ocupações de terras não são sufi cientes ou não servem mais para a luta pela reforma agrária?

Como disse antes, agora a disputa não é mais apenas entre os pobres sem-terra e os latifundiários. Agora é uma disputa de modelo para produção e uso dos bens da natureza. De um lado temos o agronegócio, que é a aliança entre os grandes proprietários, o capital financeiro, que os financia – veja que, de uma produção de R$ 112 bilhões, os bancos adiantam R$ 100 bi para eles poderem produzir –, as empresas transnacionais que controlam a produção de insumos, sementes, o mercado nacional e internacional e as empresas de mídia. E, de outro lado, os sem-terra, os camponeses com pouca terra e a agricultura familiar em geral. E nesse marco de disputa, nosso inimigo principal são os bancos e as empresas transnacionais. Então, fazemos a luta de classes contra nossos inimigos principais e ao mesmo tempo devemos seguir lutando para melhorar as condições de vida, com novos assentamentos, moradia rural, luz para todos, programa de compra de alimentos pela Conab, um novo crédito rural etc. Essas medidas, embora setoriais, também ajudam a acumular força como classe.

Nos próximos dias, o MST vai realizar atividades pela reforma agrária. Como serão essas mobilizações e quais seus objetivos? Elas têm alguma relação com o período eleitoral?

A coordenação nacional do MST escolheu há tempos essa semana de meados de agosto para realizar uma campanha nacional de debates em torno da reforma agrária. É uma forma concentrada de esforços para desenvolver diferentes maneiras de agitação e propaganda; para levar nossas ideias à classe trabalhadora urbana; para denunciar os problemas e malefícios que o agronegócio, com seus venenos e sua sanha concentradora, causa para toda a sociedade; e, ao mesmo tempo, mostrar justamente os benefícios de uma reforma agrária popular. Esperamos que nossa militância se engaje em todo país, para essa jornada de conscientização de massas.

* Jornalista de Brasil de Fato

Esta entrevista foi publicada no de Brasil de Fato nº 389, de 12 a 18 de agosto de 2010

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18 de ago. de 2010

A luta armada e o tiroteio eleitoral

 Por Celso Lungaretti 


A revista Época chega às bancas neste sábado (14/8) com uma matéria de capa sobre a participação da presidenciável Dilma Rousseff na luta armada. Eumano Silva, um dos autores (ao lado de Leandro Loyola e Leonel Rocha), é meu velho conhecido e colega de editora: em parceria com Taís Morais, escreveu Operação Araguaia. A reportagem em si é reconstituição histórica, a mais objetiva e neutra possível se considerarmos as limitações da grande imprensa. A Veja, tratando do mesmo assunto, decerto produziria um aberrante panfleto ultradireitista.

Cheguei a dar depoimento um tanto inconclusivo, já que conheci brevemente a Dilma durante o Congresso de Teresópolis da VAR-Palmares (outubro/1969) e nossos caminhos jamais se cruzaram de novo. Não acrescentaria mesmo nada e Eumano fez bem em deixá-lo de lado.

Mas, independentemente da integridade ou não do trabalho jornalístico, o tema é espinhoso para Dilma e para o PT. Daí, ela ter se recusado a atender aos pedidos de entrevista da Época e a deplorável nota que sua assessoria de imprensa emitiu:


"Dilma não participou [de ações armadas], não foi interrogada sobre o assunto e sequer denunciada por participação em qualquer ação armada, não sendo nem julgada nem condenada por isso.

Dilma foi presa, torturada e condenada a dois anos e um mês de prisão pela Lei de Segurança Nacional, por `subversão´, numa época em que fazer oposição aos governos militares era ser subversivo´."
As falsas acusações das "viúvas da ditadura"
Quantas ressalvas! Na minha humilde opinião, de tudo que li na reportagem o trecho mais nocivo à imagem de Dilma é este, pois, em contraste com sua verdadeira trajetória, nem de longe mostrada de forma negativa, soa terrivelmente falso. Ambos, Dilma e o PT, têm preferido deixar o passado no limbo, como um estorvo, do que explicar francamente às novas gerações que o Brasil de Médici chegava a lembrar, em muitos aspectos, a Alemanha de Hitler, a Espanha de Franco ou o Chile de Pinochet: um festival de horrores e atrocidades.


Para não se indisporem com velhos gorilas e novos autoritários, eles não dão, salvo quando a imprensa e os adversários políticos os encostam na parede, o merecido destaque às bestialidades que os tiranos cometeram, nem à bravura dos que os combateram. Então, quando as viúvas da ditadura acusam falsamente Dilma Rousseff de assaltar bancos, sequestrar diplomatas e outras ações armadas, as novas gerações, desinformadas, tendem a vê-la e julgá-la a partir dos parâmetros atuais, como se tivesse sido uma criminosa do PCC.

Se soubessem que enfrentávamos algo próximo a uma Gestapo, em condições de extrema inferioridade de forças, poderiam nos olhar como os franceses olham sua Resistência, dela orgulhosos por haver salvado a honra do país.

Fugir do dever, entretanto, nunca é resposta para nada. O dever de quem enfrentou a tirania é manter viva a lembrança dos anos de chumbo, até para criar, nos que vieram depois, anticorpos contra o totalitarismo. Esquivando-se do assunto em circunstâncias mais amenas, os petistas serão obrigados a se defrontarem com ele no auge da campanha eleitoral.

Então, é o momento de abandonarem de vez as esquivas, declarando em alto e bom som: quem resistiu à ditadura mais brutal que o Brasil conheceu tinha todo direito de pegar em armas contra os déspotas e merece, acima de tudo, o reconhecimento da cidadania. E isto vale tanto para Dilma, que não entrou na ação direta, como também para Carlos Lamarca, Carlos Marighella, Eduardo Leite, Devanir de Carvalho e outros que usaram a força contra um inimigo que pela força usurpou o poder e pela força nele se mantinha: todos eles, indiferenciadamente, foram heróis e mártires deste sofrido país!


Nada de tergiversações. Quem participou da luta armada, cumpriu as funções que seu agrupamento lhe designou. Se, como Dilma e eu, acabou recebendo outras incumbências, isto era irrelevante do nosso próprio ponto de vista e só estabelecia distinções entre nós aos olhos do inimigo, quando tratava de nos enquadrar nas suas leis draconianas, características de um regime de exceção.


Então, a postura digna nunca será a de se desculpar com afirmações tipo "estava lá, mas não fiz isso ou aquilo", mas sim, a de proclamar que "estava lá e faria tudo que fosse necessário porque nossa luta era justa e confrontávamos o despotismo mais hediondo". É o mínimo que podemos fazer, pela nossa honra e por respeito aos companheiros que tombaram.

15 de ago. de 2010

PASSIONE - VENENO EM FORMA DE NOVELA

PASSIONE/ Veneno em forma de folhetim



Coisas de nossa tevê em canal aberto. Começa ano, termina ano e ficamos sabendo da quantidade de recursos públicos empregados em campanhas contra o uso de drogas. Programas em horário nobre de diversas emissoras de tevê tratam do uso de drogas nas grandes cidades, investigam as razões que levam principalmente os adolescentes e jovens a buscar o uso de drogas, mostram a realidade dos morros e a vida e a morte de traficantes seja no Rio de Janeiro, em São Paulo ou no entorno da Praça dos Três Poderes, em Brasília. 

Mas, moto contínuo temos a novela das 9 da Rede Globo de Televisão /Passione/  e com ela a força perniciosa e letal da deseducação em larga escala. O personagem vivido por Cauã Reymond é o típico viciado: mente não ser viciado, falsifica exame antidoping, incrimina o irmão caçula, rouba para pagar o vício, é estressado por natureza e estressa toda a família ou o que possa lembrar núcleo familiar em novela da emissora líder. 

O personagem, como poderíamos esperar, não encontra qualquer limite ético, moral, familiar, físico ou financeiro para sustentar o vício. A busca por drogas será acompanhada por todos que seguem a novela. Explica-se, quase didaticamente, onde podem ser encontradas, os contatos que precisam ser feitos, os diálogos necessários e os cuidados para burlar as leis. A busca do realismo, marca comum a qualquer folhetim da Globo, confundirá nossos sentidos. E até que o personagem abandone o vício, por bem ou por mal, internado em clínica especializada ou preso em algum xadrez da cidade, veremos muita água mover os índices de audiência da emissora e milhares de jovens encontrarão certo glamour na vida de Danilo Gouveia. Boa parte destes se sentirá tentada a entrar no caminho sem volta apresentado como viável pelo personagem. Outra parte nem mesmo saberá diferenciar ficção de realidade. 

E se Danilo superar o vício será algo a ocorrer nos últimos capítulos, repetindo-se a macabra equação: o crime e a injustiça campeiam toda a trama, centenas de noites a fio; e a redenção, a imposição da justiça, consumirá nada mais que um ou dois capítulos do folhetim. Então, os que por qualquer motivo não assistirem ao final da novela terão na mente apenas as lições dando conta de que nada compensa mais que a ilegalidade e os comportamentos doentios. É como o Papillon ? personagem criado por Henri Charriére ? no cinema vivido por Dustin Hoffman, nos anos 1970: o espectador passa quase três horas vendo-o comer o pão que o diabo amassou literalmente na Ilha do Diabo (Caiena, Guiana Francesa) para ver o gosto de liberdade em não mais que em seus três minutos finais. 

O raciocínio acima vale para a quase totalidade das tramas globais transmitida em horário nobre nos últimos anos. O que lhe aumenta a audiência é precisamente o grau de nivelamento por baixo a que os personagens se esforçam por conceder verossimilhança. O campeão será aquele que fique da altura de uma lâmina de barbear deitada. 

* Mentira vencedora* 

Passione é veneno puro, alienação pura, maldade pura. E baixaria para todos os gostos, altitudes e latitudes. A galeria de tipos representa o que há de mais miserável na espécie humana. Começa por filho destratando (estou pegando leve) mãe e sempre a um passo da agressão física, já que a agressão verbal ultrapassa todo e qualquer limite do que poderia ser o diálogo entre um filho e uma mãe. Refiro-me a Werner Schunemman com o seu Saulo e a Fernanda Montenegro, com a sua Bete Gouveia. Até o momento a emissora ainda não nos brindou com cenas de espancamento explícito, aquelas em que Bete será surrada impiedosamente pelo filho. 

A mulher de Saulo, vivida por Maitê Proença, é um poço de vida vazia e miserável, ninfomaníaca, mulher manipuladora e sem qualquer noção de ridículo, seduz jovens por shoppings da cidade, que obviamente trai o marido Saulo duas a três vezes por semana, trai a própria filha, tem caso com o caso da filha. O ar de sensualidade ? com validade vencida ? de Maitê permeia toda a novela, seus olhares são sempre fatais e obsessivos. Lembram os poemas de Pietro Aretino, filho de um sapateiro, contemporâneo de Leonardo da Vinci e Michelangelo, autor dos /Poemas luxuriosos/. 

Aliás, não sei o que deu na Globo ? todas as mães são vilipendiadas, desrespeitadas, humilhadas e ofendidas. E se forem avós, a possibilidade de serem aquelas que ofendem e humilham os demais será quase certa. Tem a mãe e avó Valentina (Daisy Lúcidi) que é cafetina, sempre apta a arranjar homens maduros para cliente de sua neta (Kelly), ainda adolescente, meio tímida e sempre assustada. A pressão psicológica exercida por Valentina sobre a neta é algo que supera qualquer escala de coisa despudorada, nojenta, asquerosa. Prostituição de menores bancada por membro da família merece ser abrigada no imenso guarda-chuva da liberdade de expressão? 

Tem a mãe e avó (Cleide Yáconis) que adentrando seus 105 anos tem como único objetivo trair o marido Antero (Leonardo Villar) com o bonachão vivido por Elias Gleiser. Considerando que a idade somada dos dois artistas beira o bicentenário, há momentos em que o constrangimento nos faz querer mudar rapidamente de canal. A forma insidiosa com que Yáconis ludibria o marido deixa claro que se existe algo que não tem idade é o desejo de ser vulgar, sacana, o gosto irreprimível pela traição. Ajuda a destruir qualquer bom sentimento que as avós costumam inspirar como aquela angelitude espontânea, aquela bondade ilimitada emoldurada por respeitosos cabelos prateados. Tem a mãe que criou a neta como se filha fosse, caso da personagem Candê vivida pela veterana Vera Holtz. Provavelmente é a novela que leva às telas o maior número de pessoas da terceira e da quarta idades. Lastimável que em sua maioria são pessoas quando não patéticas, ao menos muito desmioladas. 

Mariana Ximenes é a protagonista. Veste a personagem Clara Medeiros: uma mulher mentirosa, sem escrúpulos, que só quer tirar proveito das situações. Trabalhava como enfermeira do marido de Bete e será a única a escutar a revelação que o empresário faz à esposa antes de morrer. É neta de Valentina, a quem não suporta, e irmã por parte de mãe de Kelly (Carol Macedo), a única pessoa com quem parece ter um vínculo de afeição. Parece ter sido criada a partir da música de Reginaldo Rossi sobre aquela que iria trair o marido em plena lua de mel. E fez isso mesmo. Engana qualquer um que lhe cruze à frente. Mente com tanta naturalidade e sempre vê sua mentira vencedora absoluta. Ilude um e outro, rouba um e outro, simula incêndio para matar marido, incrimina colega de profissão, arquiteta planos mirabolantes, se vende na noite paulistana e mostra falta de caráter de forma cabal e completa. 

* Desfecho infeliz * 

Francisco Cuoco é Olavo, o rei do lixo. Pândego. É tão convincente em seu jeito canastrão que ninguém desperdiça alguns pensamentos do tipo "quem te viu, quem te vê". Sua mulher é Clô, tendo uma Irene Ravache que rouba as cenas em que aparece. É falante, boa praça, a recorrente crítica aos novos ricos que, segundo Vinícius de Moraes, "não têm a dignidade de enriquecer que os ricos tinham ao empobrecer". É a parte leve da trama, uma trama em que traição, inveja, mau caratismo, ciúmes, falsidade, deslealdade, drogas e desvios de conduta pontuam quase que cada cena e quase que cada fala. 

Há outros personagens que não valem o feijão que comem. Tony Ramos é o marido traído uma vez e prestes a ser traído outras quinhentas vezes. É o /cornuto/ da novela. Gemma Mattoli (Aracy Balabanian) é a irmã de Totó (Tony Ramos). Gemma, assim como o irmão, é brasileira de nascimento mas vive na Itália. Sincera, amiga e cheia de amor, criou Totó e cuida dele e de toda família com tanto amor que se esquece de sua própria vida. Aracy Balabanian empresta seu talento àquele tipo de irmã mais velha que muitos de nós têm, claro, aqueles que contam mais de 50 anos. 

Reinaldo Giannechini é o próprio canastrão, como sempre deixando de convencer o telespectador pois não tem jeito de protagonista, seja mocinho ou vilão. Gabriela Duarte é uma viúva Porcina (vivida por sua mãe Regina Duarte na icônica /Roque Santeiro/) ainda não entrada em anos, a cada cena evoca algo de pastelão, besteirol. Marcelo Antony é o personagem /deprê/ que não poderia deixar de dar as caras em uma novela de Sílvio Abreu. Talvez seu negócio seja pedofilia mas, quanto a isto, ainda não se tem certeza. Pelos rumos da trama, se for pedofilia é pouco ? talvez seja o dono de uma rede mundial de pedófilos-empresários ou coisa assim. Tem também todo o núcleo dos italianos. Tem o Arthurzinho (Julio Andrade) que representa o homossexual afetado e folclórico, chamado por seu patrão Saulo como "a gazela". É deste o vocativo adulador "Milady" para designar a patroa, Maitê. Quantos anos não escutava a célebre expressão de Alexandre Dumas cunhada em seu imortal /Os três mosqueteiros/! Pena que não restem na novela vestígios de Porthus, Athos, Aramis e do quarto protagonista D´Artagnan. Mas aí já é querer muito. 

Tem Fátima Lobato (Bianca Bin), que ainda muito jovem engravida e, sem contar com o apoio do possível pai da criança (Cauã), decide abortar. A busca por clínica de aborto, os contatos na clínica, o ambiente de franca ilegalidade, muita sombra e pouca luz termina por avalizar a idéia que, afinal, abortar não é tão má idéia assim. Uma pena esse pequeno desfecho feliz para uma situação que poderia, ao menos, ser outra, bastante diferente. Mas quem disse que tevê aberta tem algum tipo de responsabilidade social? 

* Vestes sagradas * 

Pelo que vejo, passar 10 dias assistindo a capítulos de /Passione/ não terá sido de todo em vão. Aprendi que se a liberdade for total, sem qualquer balizamento, sem quaisquer princípios reguladores, viveremos apenas a liberdade dos animais e não a liberdade adequada a nós, humanos. Aprendi que não basta dispor de todos os recursos humanos e materiais, não basta deter tecnologia de ponta para por em funcionamento a fábrica de ilusões que atende pelo nome de núcleo de dramaturgia de nossas principais emissoras de tevê. Há que se lutar por um tipo de arte que eleve a condição humana. Onde foi parar o senso crítico da rapaziada? Será que nenhum anunciante encontrará alguma convergência com os pensamentos ora alinhavados?

Impressiona ver tantos talentos desperdiçados com uma trama que endeusa a pequenez humana, passa ao largo de todo e qualquer valor humano, desses que uma vez vividos nos fazem pensar que a vida humana é o bem mais precioso que podemos ter. /Passione/ é um atestado de falência múltipla dos diversos órgãos que formam o organismo da sociedade atual, onde quanto mais anormal, mais desprezível for um ser humano, maior será sua aceitação pelos demais, e quanto menos virtudes humanas uma trama tiver, maior será seu êxito comercial. 

Mas, como levantar o assunto sem ser acusado de tocar as sagradas vestes da... liberdade de expressão? Por que precisamos nos contentar com um banquete faustoso, amplamente publicizado, reunindo a nata da dramaturgia brasileira experimentada nos últimos 50-70 anos, e que nos serve em horário nobre, ao longo de vários meses, nada menos que comida estragada?

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