15 de set. de 2007

A mídia no poder.

O que podemos aprender com Renan Calheiros.

Em seu livro “Às portas da revolução” (Boitempo Editorial), Slavoj Zizek tomou o exemplo da eleição de Berlusconi na Itália para sustentar o papel fracassado da moralidade na política. Ele escreveu: “Sua vitória é uma lição deprimente sobre o papel da moralidade na política: o supremo desfecho da grande catarse moral-política – a campanha anticorrupção das 'mãos limpas' que, uma década atrás, arruinou a democracia cristã, e com ela a polarização ideológica entre democratas cristãos e comunistas que dominou a política italiana no pós-guerra – é Berlusconi no poder”.

No Brasil, nos últimos anos, muitas vozes preconizam a necessidade de uma operação “mãos limpas” aqui. Mas qual foi mesmo o resultado dessa operação na Itália: a eleição de Berlusconi, um grande empresário das comunicações que se apresentou na campanha eleitoral como um “não-político”, alguém que estaria afastado de toda “sujeira da política”.

Como se sabe, o governo de Berlusconi foi atravessado por denúncias e acusações de corrupção. Aqui no Brasil, em passado recente, também tivemos um candidato que se apresentou com um discurso similar. O caçador de marajás e de corruptos não terminou seu mandato. Em um passado um pouco mais distante, tivemos a experiência ultra-moralista da UDN, que tampouco resultou em avanço para o país.

Isso quer dizer, então, que o negócio é o “locupletem-se todos”? Obviamente que não. E o emprego do advérbio aqui não é um exercício retórico, mas uma conseqüência lógica. Um dos principais elementos que está na base do fracasso dos discursos e experimentos moralistas citados acima é que eles jamais foram expressões de uma concepção de algo que mereça ser chamado de espírito público. Sempre foram, ao contrário, manifestações de moralidade seletiva – e, portanto, hipócrita – que, necessariamente, precisam esconder seu real objetivo: o poder político.

O território da política e a democracia

Há dois alertas importantes na afirmação de Zizek, segundo a qual a vitória de Berlusconi é uma lição deprimente sobre o papel da moralidade na política. O primeiro consiste em nos lembrar que o território da política é, fundamentalmente, o território do poder, e que cruzadas moralistas na política costumam ser capitaneadas por moralistas de resultados. Essa é uma das razões singelas que explicam seus retumbantes fracassos, do ponto de vista do avanço da democracia. O segundo interroga diretamente a tradição da esquerda que, nas últimas décadas, flerta com a possibilidade de uma terceira via.

No Brasil, o PT, especialmente a partir do governo FHC, adotou de um modo bastante enfático o discurso da ética na política, como se esta fosse a principal divergência programática com o projeto do PSDB e PFL, então em curso. A prática parlamentar petista foi dominada pela lógica das denúncias e dos pedidos de CPI que, anos depois, voltaram-se como um bumerangue na sua direção. Ao final das contas, o candidato de Fernando Henrique acabou derrotado não pelo tema da corrupção (até por que seu governo conseguiu construir uma blindagem relativamente eficiente neste tema), mas pela incapacidade de seu projeto político-econômico responder aos problemas que afligiam a população. Mas não se trata, aqui, de fazer um balanço dos anos FHC. Importa sim destacar que a escolha do PT pela centralidade do discurso da ética na política acabou custando um alto preço para o partido.

E esse preço não se reduz ao tema do mensalão. O preço maior pode ter sido mesmo o programático. Voltemos a Zizek, que escreve: “o sonho que a esquerda tem de uma terceira via é igual ao de que o pacto com o diabo possa dar certo: tudo bem, nada de revolução, aceitamos o capitalismo como regra do jogo, mas pelo menos poderemos manter algumas das conquistas do Estado do bem-estar social e construir uma sociedade tolerante em relação às minorias sexuais, religiosas e étnicas”.

Mas há uma perspectiva muito mais sombria no horizonte, acrescenta o filósofo esloveno: “um mundo no qual o domínio ilimitado do capital será suplementado não pela tolerância esquerdista-liberal, mas por uma típica mistura pós-política de espetáculo de pura publicidade e preocupações da Moral Majority (lembremos que o Vaticano deu apoio tácito a Berlusconi)”.

Mocinhos, bandidos e um pântano

O caso Renan Calheiros parece ilustrar bem esse cenário sombrio delineado por Zizek. Ele é sombrio em vários sentidos. O senador alagoano é um típico representante do que há de pior na política brasileira. Entre os que queriam sua cassação, há outros tantos da mesma estirpe. O problema, portanto, não é discutir quem são os mocinhos e quem são os bandidos.

O grave, nesta história toda, é figuras como Renan Calheiros e seus adversários de ocasião (aliados de ontem) dominarem o debate político no país. O grave é figuras como eles serem peças-chave em um projeto de governabilidade. O grave é ver uma mídia indigente intelectualmente tratar o tema segundo a lógica do espetáculo e da moralidade seletiva. As disputas políticas que estão, de fato, em jogo ficam assim obscurecidas por uma névoa de mistificação e meias-verdades.

E quais são as disputas política que estão, de fato, em jogo? Uma delas é a agenda eternamente adiada da necessidade de democratização do Estado. O enfrentamento do patrimonialismo, da apropriação privada da esfera pública e da transformação da política em um balcão de mercadorias (e de emendas parlamentares). Nada disso começou no atual governo, mas este não está conseguindo fazer este enfrentamento.

Neste cenário, somos convidados a assumir um lado nestas disputas intra-patrimonialistas. E, se não o fazemos, somos empurrados para um destes lados. A presença dominante do nome “Renan Calheiros”, e dos eventos que orbitam em torno dele, no debate político do país nas últimas semanas é, por si só, um eloqüente sinal de alerta. Aponta para um pântano imobilizador de onde podem sair novas deformidades.

Um dos problemas que deveria merecer nossa atenção, então, não é propriamente quem livrou Calheiros da cassação, mas sim como é possível que figuras como ele sigam tendo poder na República, seja qual for o governo. Como é possível que se apresente como baluarte da ética essa mistura grotesca de pseudo-moralismo, dissimulação política e espetáculo que anima muitos daqueles que querem cortar o pescoço dos Calheiros da vida hoje para resgatá-los logo ali adiante.

Denunciar os termos desta equação e expor sua verdadeira natureza talvez seja um caminho para sair do pântano. Caso contrário, poderemos estar alimentando o surgimento de novos “Berlusconis”, aprendendo uma nova e deprimente lição e assistindo a repetição de espetáculos melancólicos.

Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)

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