20 de jul. de 2008

Meu reino por um canudo

Por Marcos Fabrício Lopes da Silva em 15/7/2008

O sociólogo Gilberto Freyre, autor do clássico Casa-grande & senzala, nos deixou várias lições a respeito das "normas" que regem o modus vivendi brasileiro. Muitos se lembram da sua famosa (e contestada) tese da democracia racial. Mas, analisando o conjunto da obra deste pensador, considero que há ensinamentos mais contundentes. Citaria, por exemplo, a importância que Freyre conferiu à publicidade, ao criar o termo "anunciologia" para estudá-la. Segundo ele, o conteúdo expresso nos anúncios de jornais do século 19 demonstra as estratégias simbólicas de manutenção da ordem escravocrata, sustentada pelo direito de propriedade. Em suas investigações, Freyre elevou a publicidade à categoria de documento histórico, mostrando que ela não fica nada a dever, enquanto testemunha de uma época, às fontes tradicionais de pesquisa, como livros, manuscritos e registros cartoriais.

Essa perspectiva de Freyre deve ser levada em consideração também nos dias de hoje, considerando os altos investimentos realizados pelas organizações em publicidade. Tudo em nome da visibilidade e do lucro. Para alcançar esses dois objetivos, nada melhor do que uma técnica de venda em escala de massa, baseada em artifícios de persuasão e estratégias de convencimento, que visa a conquistar a atenção do consumidor e a sua ação de compra. O anunciante, por meio da publicidade, oferece uma isca apetitosa, cheia de atrativos. Essa "isca" é a marca, o produto, o serviço que, ao prometer saciar a fome do público-alvo, busca fisgá-lo mais pela emoção do que pela razão. A arte dessa "pescaria simbólica" consiste em seduzir o consumidor pelo encanto da melhor "isca", ou seja, aquela que, dentre as várias concorrentes, promete a saída mais fácil para a resolução do problema do cliente. Tudo em nome do seu bem-estar e conforto. Felicidade é a palavra de ordem.

Prática e teoria

Mas há um sorriso amarelo por trás do "sorriso colgate". E devemos escancará-lo para melhor diagnosticar o problema. Caminhando pelas ruas de Belo Horizonte, fui assaltado, em plena luz do dia, por um outdoor de instituição privada de ensino superior que estampava o seguinte slogan: "O mercado aprova os nossos alunos. Os alunos aprovam o nosso ensino". Logo perguntei: e o professor (sequer ele é mencionado no anúncio)? Qual é o papel do educador nesse jogo?

A meu ver, o professor deve atuar no papel de "estraga-prazeres" desse sistema, que transformou a educação em um produto, em um negócio, passando de direito universal garantido pelo Estado a prestação de serviço gerenciada pelos interesses particulares dos donos das capitanias educacionais. Sistema este que transformou os alunos em clientes, o professor em "unidade de custo ambulante" e que faz do estudante uma extensão do mercado, e não o contrário. Sistema este que transformou os encontros pedagógicos em desencontros demagógicos e que inverteu um processo importante ao promover em demasia a carreira profissional em detrimento do papel fundamental do estudante: o de pensador. Sistema este que enaltece a prática e desmerece a teoria, sendo que a prática é a filha, ora obediente, ora rebelde, da teoria. A prática aponta para a realização. Mas para que exista a realização é preciso dar vazão à abstração que a gerou.

Cidadãos e consumidores

Nessas tenebrosas transações, o diploma deixou de ser a conseqüência de um processo singular de aprendizado. Passou a ser a causa de um investimento feito em busca de um retorno imediato, garantido e sem muito esforço, de preferência. De certificado de conhecimento, o diploma passou à categoria de comprovante de renda.

É muito perigoso e reducionista tratar o estudante como cliente. Reza a cartilha comercial que o cliente sempre tem razão. Acontece que na educação a conduta é outra: deve prevalecer o debate de idéias e de ações entre os agentes envolvidos no processo, não havendo, portanto, "o dono da verdade".

Nesse curto-circuito da educação como negócio, as aulas vêm se transformando em espetáculo, no qual o professor deve se comportar como um showman, isto é, o "boa-praça" que recebe seus alunos com piadas e tapinhas nas costas. Enquanto isso, a turma ri à beça, sem saber na verdade quem é o verdadeiro palhaço desse circo. Ou fingindo não saber. "Eu finjo que ensino, você finge que aprende", eis o pacto da mediocridade roubando a cena. Nesse caso, o professor deixa de ser um provocador por excelência para atuar apenas como um "facilitador". O estudante, por seu turno, torna-se um receptor passivo da aprendizagem, em vez de ser co-responsável pelo conhecimento produzido e discutido em sala de aula. Nesse reino desencantado, vale mesmo tudo pelo tão cobiçado canudo. É o que oferta a instituição privada de ensino superior, anunciante daquele desastrado outdoor. Marcado por uma faceta excessivamente operacional, que deixa a base humanista em segundo plano, esse estilo de fazer ensino superior forma uma tropa de elite de cidadãos imperfeitos e consumidores mais-que-perfeitos.

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=494OPP001

18 de jul. de 2008

Educação, academia e baboseiras

Por Gabriel Perissé em 15/7/2008

Se é certo, como dizia um personagem de Shakespeare (Henrique VIII, na peça de mesmo nome), que "as palavras não são atos", também é verdade que as palavras atuam. Por isso falamos e escrevemos. Acreditamos no seu poder. Ou nos dedicaríamos apenas a fazer, fazer, fazer, sem contar nada a ninguém, sem nada anunciar ou comentar.

A vida acadêmica é o lugar das palavras, palavras que nascem da pesquisa, da reflexão. E essas palavras por vezes incomodam, como ficou manifesto na reação da secretária estadual de Educação em São Paulo, Maria Helena Guimarães de Castro, quando da famosa entrevista que concedeu à revista Veja (ed. nº 2047) em fevereiro deste ano.

Dizia Maria Helena nessa entrevista (convém anotar e guardar suas palavras...) que um dos maiores problemas da educação em São Paulo é o nível profissional dos docentes. Quando Veja lhe perguntou sobre possíveis soluções, a resposta foi curta e grossa: "Num mundo ideal, eu fecharia todas as faculdades de pedagogia do país, até mesmo as mais conceituadas, como a da USP e a da Unicamp, e recomeçaria tudo do zero."

O elogio ideológico

As palavras que vêm da USP e da Unicamp, e de outras instituições universitárias, podem (e devem) incomodar. Serão consideradas "baboseiras ideológicas" por quem se considera capacitado a agir mais do que a pensar, alegando não ter tempo a perder com discussões.

No entanto, são precisamente as palavras da academia que, não raramente, cobram do poder público menos palavras e mais ações! Como é o caso do artigo "Ensino sem demagogia" (Folha de S.Paulo, 13/07), de Dermeval Saviani (professor emérito da Unicamp), que vale a pena difundir.

O artigo, em essência, pede (estamos em época de campanha eleitoral...) que os políticos sejam coerentes com os seus discursos. De fato, afirmar com entusiasmo que a educação é prioridade e negar essa afirmação com a prática configura um comportamento cínico e demagógico dos políticos predominantes. Isso, sim, são baboseiras ideológicas: manipular as palavras para manter o outro sob controle. Concretamente: gastar o verbo e negacear as verbas.

Saviani, contudo, deveria esclarecer um importante aspecto da questão. No artigo, relaciona a precariedade das condições de trabalho do professorado paulista ao PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação), lançado pelo MEC em 2007. Não é o momento de estabelecer essa relação... ainda.

Boa parte da problemática situação educacional de São Paulo é fruto das decisões tomadas nos últimos 14 anos por um grupo que, hoje, critica as ações e palavras do MEC. Exemplo disto é o elogio (ideológico) que o deputado federal Paulo Renato fez àquela inesquecível entrevista de Maria Helena...

Estado Policial, o que teme a grande imprensa?

Virou moeda corrente o emprego do termo "Estado policial" como forma de classificar um conjunto de ações que, como destacou Leandro Fortes, na revista Carta Capital ( edição nª 504, de 16 de julho de 2008) procurava desbaratar um esquema "que concentra a própria alma das relações entre política,altas finanças e interesses privados impublicáveis". O mundo dá voltas, mas não da forma como deseja o baronato midiático.

Pensar a realidade brasileira à luz da democracia é rever o passado, entender o presente e refletir sobre o futuro, tendo como referência o comportamento da imprensa ante os princípios que, unidos, formam o ordenamento democrático pleno: participação, igualdade, liberdade e solidariedade.

Em algum momento, no atual governo, a Polícia Federal sintetizou substancialmente uma nova ordem que se contrapusesse antiteticamente ao Estado de direito? Apresentou-se como dimensão não só mais limitada, mas também degenerativa em relação a ele? Onde, para justificar a grita, ocorreu revogação de direitos individuais ou supressão de direitos? A resposta é simples. No imaginário de um poder que nunca foi independente dos interesses corporativos e de classe.

Os que hoje se apresentam como fiadores do regime democrático, instâncias de fiscalização dos Poderes, têm uma folha corrida invejável. Sempre que o aparato estatal tentou se constituir como Estado Social, em resposta direta às necessidades substanciais das classes subalternas existentes, o apoio ao retrocesso institucional foi imediato.

Os que hoje se chocam com algemas e supostas pirotecnias nunca hesitaram em legitimar torturas, extermínios e supressões de direitos. Quando foi preciso, não negaram sustentação a que o diálogo democrático fosse substituído pela imposição autocrática. A história da Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Jornal do Brasil se confunde com golpes e “liberalizações sobre controle"

O “Clube da Lanterna”, criado por Carlos Lacerda, foi a matriz discursiva de uma imprensa que nunca deu tréguas a governos democraticamente eleitos. Os principais órgãos de imprensa, com honrosas exceções, atuaram de forma decisiva tanto na formação de consensos da inviabilidade moral e política da preservação dos mandatos, quanto nas soluções intra-elites para resolução dos impasses..

Sequer se deram ao trabalho de atualizar métodos. Em março de 1956, o Globo estamparia em manchete que ”A UDN abre fogo contra Juscelino", reproduzindo discurso proferido na tribuna da Câmara contra o presidente:

"A verdade é que graves escândalos se processam aos olhos do presidente da República, e, ao que tudo indica, com a sua conivência ou, pelo menos, complacência. Suas marchas e contramarchas, afirmações e negativas, estados alternados de euforia e depressão tornaram-no, muito cedo, o mais fraco, hesitante, omisso e desautorizado presidente da República.” *

Transformar intenções em gestos e declarações em fatos faz parte da tradição jornalística brasileira. Importante destacar que o trecho acima foi publicado há 52 anos. Qualquer semelhança com o que é visto nas primeiras páginas da grande imprensa hoje não é coincidência, é método.Uma aula de jornalismo comparado, no tempo e no espaço.

Não muito distinto é o noticiário editorializado do Estado de S. Paulo, em 7 de abril de 1964: "O ex-presidente João Goulart teria sido visto embarcando para o exílio carregando sacos de dinheiro". Expediente narrativo tão grotesco quanto surrado. O objetivo, como hoje, é claramente golpista. Trata-se de conquistar o apoio da classe média, tradicionalmente mais receptiva aos apelos moralizantes. **

Mas talvez os mais emblemáticos exemplos de como o jornalismo, que hoje se apresenta como ferramenta da soberania popular, “enfrentou" um Estado Policial, venha de O Globo, Folha e Estado, nos anos de chumbo. Defendendo o regime militar de acusações de tortura, o diário da família Marinho, destacou em editorial intitulados "Torturas?", publicado em 1969.

"'O Brasil está sendo apresentado em vários países da Europa Ocidental como sede de um regime que colocou a barbárie no Poder, jornais franceses, alemães, belgas, austríacos, ingleses, holandeses, italianos publicam freqüentemente matérias fantasiosas a respeito de 'banhos de sangue' que aqui ocorreriam de torturas etc. (...) 0 Governo está no dever de destruir todas as mentiras que se dizem no exterior contra o regime brasileiro, que, aliás, salvou o País dos mais terríveis torturadores'".

A Folha, da família Frias, no ano seguinte, mostraria toda sua "capacidade de resistência" à ditadura.

"'O país encontra-se em paz, em calma (...) A economia está revigorada (...) Planos de alto valor social e econômico estão em execução - a Transamazônica, o Programa de Integração Social, a campanha contra o analfabetismo etc. (...) Apesar disso, insiste-se lá fora em denegrir a imagem do Brasil (...) Não há outra explicação para essa campanha: má-fé mesmo, uma espécie de represália por não termos permitido que deitasse raízes aqui uma ideologia totalitária e materialista que acredita encontrar na América Latina campo propício para sua expansão'."

O Estadão também não negaria munição às práticas dos porões, transformadas em política de Estado.

"'A opção dos governos que se seguiram à Revolução de 1964 a favor do sistema econômico da livre iniciativa é responsável pelo que hoje já é considerado como o 'milagre econômico brasileiro', e o êxito da política econômica brasileira é a principal causa da campanha anti-Brasil, promovida nos países do Ocidente por elementos que, esquecidos das causas de seu progresso econômico e servindo, consciente ou inconscientemente, aos propósitos do comunismo internacional, remendou aos países do 'Terceiro Mundo' a receita moscovita do 'desenvolvimento não capitalista' tipo nasserista, peruano ou 'democrata cristão' chileno".

São esses mesmos veículos que hoje se apresentam como garantidores da titularidade dos nossos direitos constitucionais। São eles que vêem no governo uma inequívoca inflexão autoritária. Alguém acredita em bruscas rupturas com o passado? Conversões súbitas não merecem melhor análise. Ou, quem sabe, o problema não resida no Estado Policial. Mas em quem o presida.

Gilson Caroni Filho