28 de dez. de 2011

Gramsci e a luta interna no PCUS (1923-1926)

Irina V. Grigoreva - Junho 2010
Tradução: Josimar Teixeira

Este ensaio faz parte de Gramsci e il Novecento, obra publicada em 1999 na Itália e não traduzida entre nós. Trata-se da compilação dos anais do seminário de mesmo nome realizado em Cagliari em 1997, por ocasião do sexagésimo aniversário da morte do pensador italiano. Para uma visão global dos ensaios apresentados naquele seminário, recolhidos no livro mencionado e aqui traduzidos, o leitor deve partir da introdução escrita por Renato Zangheri.

Nos seminários gramscianos da última década, o tema da relação Gramsci-Rússia sempre despertou interesse. Pretendo tratar de um aspecto deste tema, que, embora particular, não é de modo algum secundário, dada a importância das lutas internas no PCUS dos anos vinte em relação ao advento do stalinismo. 

A atitude de Gramsci diante dos acontecimentos do período 1923-1926, se se exclui o episódio da carta de outubro de 1926, é ainda pouco conhecida. Os arquivos do Komintern, que agora podem ser consultados, permitem ampliar a base de tal investigação (por ora, pelo menos é o que sei), mesmo sem revelar nada sensacional ou inesperado. Isso provavelmente porque a posição gramsciana emerge de modo bastante claro do material há tempos acessível, material que, no entanto, ainda não foi suficientemente elaborado. 

O embate no PCUS, que tem como protagonistas Stalin e Trotski, estava amadurecendo através de todo o ano de 1923 (Lenin já estava ausente por causa da doença) e eclodiu justamente no momento da partida de Gramsci de Moscou para Viena. Stalin, então, era apoiado por Zinoviev, Kamenev e Bukharin como redator do Pravda

Em Viena, Gramsci pôde seguir a discussão em curso no PCUS através das publicações do Inprekorr. Além disso, podia recorrer à experiência direta feita em Moscou com as personalidades políticas envolvidas no conflito. 

Antes dos outros e mais de perto, Gramsci conheceu Trotski. À parte o fato conhecido da troca de cartas relativas ao futurismo italiano, eles se encontraram diversas vezes nas várias reuniões do Komintern a partir da segunda reunião ampliada da Executiva (no IV Congresso e na terceira reunião ampliada da Executiva Trotski fez parte da comissão italiana). Certamente, Gramsci ficou impressionado com Trotski como orador, personalidade de ampla cultura e múltiplos interesses (dão prova disso algumas notas dos Cadernos) [1]. 

Através do Komintern, Gramsci se aproximou também de Zinoviev e Bukharin, envolvidos, também eles, em todas as discussões de 1922-1923 em torno da “questão italiana”. De Bukharin não deixou juízos que nos fornecessem o caráter das suas relações pessoais. Ao contrário, Zinoviev lhe devia ser vivamente antipático. Na terceira reunião da Executiva ampliada, este desfechou contra Gramsci um ataque duríssimo, acusando-o de duplicidade política [2]. Gramsci não quis lhe responder publicamente, mas replicou com uma carta indignada (o rascunho da carta foi encontrado e publicado por Giovanni Somai) [3]. 

Quanto a Stalin, parece que Gramsci, durante a primeira estada em Moscou, não o viu nunca nem o ouviu falar. No entanto, houve um episódio que podia influenciar a atitude de Gramsci em relação a Stalin no início da discussão no PCUS.
Na primavera de 1923, foi acertada entre o Komintern e o PCI a formação junto ao PCUS de uma seção dos emigrados comunistas italianos. Também o CC do PCUS parecia ter aceitado a ideia. Apesar disso, no último momento, tudo evaporou: aos comunistas italianos se impôs que se inscrevessem a título pessoal nas células do PCUS no posto de trabalho. A hipótese mais verossímil é que o responsável por isso foi Stalin. Precisamente a ele, com efeito, está endereçada a carta assinada por Gramsci e Armando Cocchi (com cópia no arquivo do Komintern), na qual se contesta o modo equívoco de formular o problema e o fato de se proceder sem consultar Gramsci na qualidade de representante oficial do PCI em Moscou [4]. Para Gramsci, esta poderia ser a primeira oportunidade de conhecer o verdadeiro papel de Stalin dentro da direção do PCUS, além dos seus métodos autoritários de resolver problemas políticos. 

Na aparência, a discussão no PCUS tinha como foco os problemas de democracia no partido, problemas que se destacavam nas publicações provenientes de ambas as partes. De tal modo permanecia oculta a substância real do conflito, isto é, o fato de que alinhamentos opostos disputavam, no âmbito do partido, posições exclusivas de comando. 

Em Viena, Gramsci não podia conhecer este pano de fundo. Ele só dispunha da informação pública. Daquilo que emerge da sua correspondência vienense com os companheiros na Itália, no início da discussão no PCUS, ele simpatizava antes com a oposição liderada por Trotski. O grupo de Stalin-Zinoviev censurava aos opositores erros “de direita”, atribuía-lhes uma orientação pequeno-burguesa e social-democrata. Ao contrário, Gramsci considerava-os expoentes da esquerda preocupados em salvaguardar o espírito autêntico da Revolução: “Requerendo uma maior intervenção do elemento operário na vida do partido e uma diminuição dos poderes da burocracia, eles querem, no fundo, assegurar à revolução o seu caráter socialista e operário e impedir que lentamente se chegue àquela ditadura democrática, invólucro de um capitalismo em desenvolvimento, que era o programa de Zinoviev e cia. ainda em novembro de 1917” [5]. Além disso, Gramsci, então envolvido no combate ao bordiguismo no PCI, era muito sensível ao problema da democracia dentro do partido e podia considerar convergente com o próprio pensamento a formulação de Trotski, sobretudo aquela relativa ao documento intitulado Novo curso. Com base na própria experiência de não formação da seção italiana em Moscou, Gramsci poderia concordar com Trotski em relação à crítica deste último acerca dos métodos burocráticos utilizados no PCUS sob a direção staliniana. O PCUS e o Komintern estavam amplamente empenhados na preparação da tentativa revolucionária na Alemanha (outubro de 1923). A responsabilidade pelo fracasso desta tentativa foi lançada sobre Trotski e Radek, líderes da oposição. Em janeiro de 1924, a XIII Conferência do PCUS e o Komintern (o presidium da Executiva) intimaram a oposição a reconhecer os erros que ela teria cometido, sob pena da aplicação de medidas disciplinares graves, inclusive expulsão. Gramsci, preocupado, escreve em 27 de março a Terracini, que o substituíra em Moscou junto ao Komintern: “Ficaria agradecido se me informasse sobre o estado atual da questão Trotski-Zinoviev. Ela, parece-me, terá reflexos no V Congresso, e talvez seja preciso assumir uma atitude em relação a ela. [...] A questão me parece sumamente interessante e plena de imprevistos” [6]. 

Há pouco de volta à Itália, Gramsci está à frente do PCI no auge da crise Matteotti. A situação política italiana o impede de ir a Moscou para o V Congresso do Komintern. Enquanto isso, no PCUS, depois da morte de Lenin, a luta entre Stalin e a oposição se torna cada vez mais encarniçada. Coadjuvado por Zinoviev, presidente do Komintern, Stalin tenta envolver outros partidos comunistas. O V Congresso condena a oposição no tocante à “questão russa”. A partir deste congresso Stalin intensifica a própria atividade no âmbito do Komintern. 

A linha do V Congresso acerca da situação do PCUS é adotada por Gramsci. A imprensa comunista italiana abre suas colunas para as publicações de proveniência russa voltadas para atingir Trotski. Em 19 de novembro de 1924, L’Unità começou a republicar o artigo do Pravda intitulado “Como não se deve escrever a história da revolução bolchevique” (que saiu também no Inprekorr) e publicado em resposta ao ensaio de Trotski Lições de Outubro (prefácio ao volume dos escritos de Trotski de 1917) [7]. L’Ordine Nuovo, ressurgido por iniciativa de Gramsci, publica escritos de Stalin [8]. No início de janeiro de 1925, a Executiva do PCI declara sua adesão à orientação da maioria do CC russo em relação a Trotski [9]. A Livraria Editora do PCUS anuncia a publicação do opúsculo de Stalin, O leninismo, além de uma coletânea, Leninismo ou trotskismo, que contém seja as Lições de Outubro, de Trotski, seja as reações polêmicas a este escrito por parte de vários expoentes do PCUS e do Komintern [10]. Por fim, às vésperas da quinta reunião ampliada da Executiva do Komintern (21 de março-6 de abril de 1925), o CC do PCI, mediante proposta de Gramsci (prestes a partir para Moscou), desaprova o juízo de Trotski sobre a situação internacional, bem como sobre as perspectivas da URSS e do movimento comunista [11]. 

Portanto, em relação ao período inicial da discussão no PCUS a orientação de Gramsci mostra-se substancialmente alterada. Na base desta mudança existem razões de princípio. Por volta da metade dos anos vinte já se revelam os problemas que estariam no centro da sua teoria política elaborada nos Cadernos (hegemonia, sociedade civil, guerra de posição e guerra de movimento, etc.). Tomando este caminho, afasta-se necessariamente cada vez mais de Trotski até chegar enfim a defini-lo “o teórico político do ataque frontal num período em que este é apenas causa de derrotas” [12]. Naturalmente, isso não comporta afinidade no plano da teoria política com a parte oposta, isto é, com Stalin. Mas, posto diante de uma escolha política, Gramsci escolheu em favor da maioria do CC russo contra Trotski. Esta escolha é confirmada também nos Cadernos (deve-se lembrar a célebre nota sobre “a divergência fundamental entre Leão Davidovitch e Bessarione como intérprete do movimento majoritário”) [13]. 

Durante a V Executiva ampliada, Gramsci não tomou parte na discussão sobre a “questão russa” explicada por Bukharin. No entanto, teve a oportunidade de encontrar Stalin eleito para a presidência e para várias comissões. Sem dúvida estava presente por ocasião do discurso de Stalin na comissão iugoslava (sendo ele mesmo membro desta comissão, falou na mesma sessão) [14]. Ao que parece, um contato pessoal entre Gramsci e Stalin não aconteceu. Todavia, a impressão imediata poderia contribuir para modificar em alguma coisa (em sentido positivo) aquela imagem de Stalin que Gramsci havia formado durante a primeira estada em Moscou. 

Enquanto isso, na comissão italiana da Executiva ampliada, o PCI foi censurado (por parte de Manuilski e Humbert-Droz) por um certo atraso na tomada de posição sobre o problema ideológico do trotskismo [15]. A mesma coisa aconteceria na fase seguinte, caracterizada por um alinhamento já diverso das forças em luta no PCUS (Zinoviev, que passara à oposição, forma um bloco com Trotski contra Stalin). 

Desde o início de 1926 a direção do PCI está sob pressão crescente exercida por Moscou, que pretende do partido a condenação das oposições não só por causa do fracionismo, mas também da substância do conflito (todos estes episódios foram amplamente comentados por Aldo Natoli) [16]. Nesta fase, parte muito ativa teve Togliatti, representante do PCI junto à Executiva do Komintern. Gramsci insiste em que o PCI não se pronuncie antes de ter todas as informações necessárias. De resto, esta era sua atitude mesmo antes da quinta reunião ampliada da Executiva (é o que se entrevê nos argumentos de Grieco e Scoccimarro aduzidos para explicar o “atraso” censurado ao PCI) [17].

Parece que, pouco antes da prisão de Gramsci, o PCI recebeu através do Komintern algumas informações mais detalhadas sobre a situação do PCUS. De fato, em setembro de 1926, foi enviada à Itália a primeira parte do sumário (em francês) da sessão de julho do CC russo que procedeu a medidas disciplinares contra os oposicionistas, excluindo Zinoviev do birô político. Desde logo, atribuía-se a Gramsci a obrigação de providenciar que os membros do CC italiano tomassem conhecimento dos fatos com todas as cautelas conspirativas [18]. 

São estes os antecedentes da famosa carta de Gramsci ao CC do PCUS. Portanto, esta carta deve ser relacionada a todo o percurso ideal por ele feito entre 1923-1926 acerca da “questão russa”. Gramsci finalmente tomou posição quanto ao mérito do conflito, declarando “fundamentalmente justa” a linha política da maioria e criticando as oposições. É uma atitude amadurecida longamente através, entre outras coisas, do reexame crítico das concepções de Trotski. Por outro lado, é inteiramente lógica e coerente a preocupação de Gramsci acerca da vontade da maioria de “vencer de modo esmagador esta luta” e recorrer a medidas excessivas. De fato, ele não estava nunca disposto a concordar com certas escolhas apressadamente e às cegas: sua adesão era sempre crítica. 

Notas
 
[1] Cf., por exemplo, A. Gramsci. Quaderni del carcere. Org. V. Gerratana. Turim: Einaudi, 1975 (daqui por diante Q), p. 893, 1.507, 2.164.
[2] Rossjskij Centr Chranenija i Izu?enija Dokumentov Novej?ej Istorii (RCChIDNI), f. 495, op. 161, d. 76.
[3] G. Somai. “Gramsci al Terzo Esecutivo Allargato (1923): i contrasti con l’Internazionale e una relazione inedita sul fascismo”. Storia contemporanea, out. 1989, p. 809.
[4] RCChIDNI, f. 508, op. 1, d. 99-a, ll. 2-4. A carta está escrita em russo, aliás titubeante e incorreto. A título de explicação também está anexada a carta precedente enviada ao CC do PCUS.
[5] P. Togliatti. La formazione del gruppo dirigente del Pci. Roma: Riuniti, 1962, p. 187-8 ([Gramsci] a Palmi, Urbani e C., Viena, 9 de fevereiro de 1924).
[6] Ib., p. 263.
[7] Cf. a “introdução” à tradução do artigo em A. Gramsci. La costruzione del Partito comunista (1923-1926) . Turim: Einaudi, 1971, p. 211-2. No entanto, o texto atribuído a Gramsci é dele somente em parte, a saber, a que contesta certas afirmações do Avanti! (o que vem antes é reproduzido do Inprekorr). Deve-se observar que o tom usado no tocante a Trotski pelo próprio Gramsci é inteiramente diferente daquele violentíssimo do Inprekorr:
[8] Cf. L’Ordine Nuovo, 1 nov. e 15 nov. 1924, 1 mar. 1925.
[9] Boletim do Partido Comunista da Itália (Seção da Internacional Comunista), jan. 1925, RCChIDNI, f. 495, op. 25, d. 629, l. 8 (verso).
[10] Ib., l. 11 (verso); L’Ordine Nuovo, 1 mar. 1925.
[11] Cf. Gramsci. La costruzione del Partito comunista, cit., p. 473.
[12] Q, p. 801-2.
[13] Q, p. 1.729.
[14] Cf. o discurso de Gramsci em RCChIDNI, f. 495, op. 163, d. 319, ll. 16-28.
[15] Ib., d. 325, ll. 2, 19.
[16] A. Natoli. “Il Pcd’I e il Komintern nel 1926. Appunti di storia e storiografia”. In: A. Natoli e S. Pons (Orgs.). L’età dello stalinismo. Roma: Riuniti, 1991.
[17] RCChIDNI, f. 495, op. 163, d. 319, ll. 7-8, 10-11.
[18] Ib., f. 495, op. 18, d. 465-b, l. 10.




24 de dez. de 2011

O ciclo do tempo e o tempo do ciclo

Por Mauro Iasi.

Coluna escrita no Rio de Janeiro (debaixo do Cristo que vai cair).
Tempo, tempo, tempo… cantava Caetano há algum tempo. Achava ele que era um dos deuses mais lindos por ser tão inventivo e parecer contínuo. Criamos o tempo para escapar de uma sensação por demais angustiante, a de viver um fluxo sem sentido, que não sabemos de onde veio e para onde vai. No mundo da objetividade as coisas simplesmente são, no seu movimento próprio, apagando e acendendo segundo a necessidade, dizia o velho Heráclito que acreditava que nada é permanente a não ser a mudança, o movimento.

O ser humano inventou o tempo, dividiu esse fluxo contínuo em ciclos, em aberturas e fechamentos. Para isso precisava intervir nos ciclos das coisas, controlá-los, por assim dizer. O dia é engolido pela noite de onde brota um novo dia, as estações se sucedem numa ordem, os seres e plantas nascem, crescem e morrem, em uma palavra: ciclos. Através do trabalho os seres humanos se apropriam das coisas e lhes dão outra forma e utilidade. As plantas seguiram nascendo de acordo com seus ciclos naturais, em determinadas estações, por exemplo, mas nós escolheremos sementes, armazenaremos para que durem até quando sejam necessárias, cuidaremos de seu plantio, de seu desenvolvimento, intervindo em seu ritmo natural e colocando-o a nosso serviço. Domesticaremos e cuidaremos de animais para que suas criar estejam disponíveis e não tenhamos que buscá-las na natureza. O tempo está, como vemos, diretamente ligado ao controle, aquilo que Lukács chamava de “superação das barreiras naturais”.

O ser humano se distancia da natureza sem que jamais possa deixar de ser um ser natural, nesse sentido o tempo e seus ciclos são mais uma expressão desta síntese própria de um ser natural que se torna um ser social. Estamos convencidos que no corpo dessa síntese, o tempo é um elemento próprio do ser social, isto é, ele não é uma substância que exista fora da apreensão social do gênero humano que leva a percepção de “sequências temporais integradas num fluxo regular, uniforme e contínuo”, como definia Norbert Elias em seu livro Sobre o Tempo. Tal concepção nos trás implicações filosóficas e científicas importantes.

No campo filosófico a humanidade compreendeu o tempo como uma dimensão que se apresentaria “a priori”,  como em Descartes e Kant, como um elemento invariável e próprio da consciência humana, ou seja, independente de seu momento histórico e bagagem cultural. Da mesma maneira para Newton e sua famosa segunda lei, o tempo é uma grandeza absoluta, isto é, não varia segundo o instrumento e medida utilizados para dele se apropriar. Hoje sabemos que as coisas não são bem assim. Seja pelo fato comprovável que a própria noção de tempo varia muito de acordo com a história e a cultura de cada agrupamento humano, seja pela comprovação que a lei de Newton só se sustenta considerando invariáveis a situação medida em corpos que se movem em velocidades abaixo da velocidade da luz, o que leva a famosa relatividade de Einstein.

Dois exemplos. Um caminhante entra em contato com uma nação indígena que está realizando uma espécie de encontro e abre-se a discussão se ele poderia ou não participar por não ser parte do povo. Depois de semanas apresentando argumentos se decide que ele não pode ficar e que será acompanhado, na primeira oportunidade que se apresentar para fora do local do encontro. Esta oportunidade se apresenta alguns meses depois e durante todo este tempo ele foi ficando por ali. Outro exemplo: um grupo africano tem suas lendas e cosmogonias que segundo eles explicariam tudo desde a origem dos tempos, mas quando entra em contato com representantes de nossa sociedade acabam agregando elementos deste contato em suas cosmogonias e passam a repeti-los como se estivessem presentes desde sempre, ficando muito difícil ao observador atual saber o que já estava antes e o que se agregou pelo contato.

Estes povos pensam de forma diversa do que nós nos acostumamos a pensar o tempo. Ele não é um fluxo integrado, uniforme e regular de eventos que se encadeiam sucessivamente numa sequência. Poderíamos dizer que o tempo não é para eles linear e plano. O problema para nossa arrogante sensação de superioridade intelectual, que esta concepção está mais próxima da forma como a física contemporânea pensa o tempo. Para os físicos de hoje e a noção de “contínuo espaço-tempo”, não há dúvidas que o tempo, assim como o espaço, é curvo. 

Para além das grande implicações de tais aproximações para o conhecimento do universo, nos interessa aqui uma dimensão mais prosaica. Um ser de nossa época tende a compreender sua localização tempo-espacial como um ponto bem determinado entre um conjunto de eventos passados que culminam numa configuração de um presente e que se abre a um devir que chamamos de futuro. Mas a questão que nos interessa aqui é a que distancia estamos deste devir. Não se trata de uma distancia no espaço que possa ser medida em quilômetros ou milhas, mas uma dimensão de tempo.

Alguém no meio da época medieval que se perguntasse quando tudo isto vai mudar poderia ter como uma resposta de um ser do futuro que ainda restaria algo entorno de quinhentos anos, o que o deixaria um tanto quanto angustiado. Um diggers  na Inglaterra do século XVII, que acreditava que a revolução em curso derrotaria a monarquia e acabaria com a desigualdade entre os seres humanos com o fim da propriedade e a igualdade real de direitos teria ainda que ver a solução de compromisso entre a revolução burguesa e a monarquia sobrevir até o século XXI e a esperada igualdade adiada uma e outra vez. No conhecido poema de Brecht, no qual afirma que as eras não começam de uma vez, de forma que seu avó poderia estar vivendo em um novo tempo e seu neto, talvez, ainda vivesse no velho, nos dá uma idéia desta “curvatura” do tempo nas dimensões históricas.

Tal fenômeno que no campo da física Einstein denominou de “discrepâncias” e que levariam ao que identificou como “dilatação-contração” do tempo, no caso da história e sua percepção pelos indivíduos não tem uma explicação física, mas se sustenta em algo semelhante. O indivíduo tem ele próprio uma dimensão temporal, mas se inclui num fluxo histórico que se expressa em uma outra dimensão temporal, isto é, um ser que dura em sua existência individual algo cerca de uns setenta anos, tenta apreender um fluxo que só pode se resolver na escala de séculos, por vezes milênios.
Consideremos algumas grandezas: o sistema solar teria se formado há aproximadamente cinco bilhões de anos; a terra se formou há quatro milhões e meio de anos; a vida na terra cerca de meio bilhão de anos depois e somente há cerca de seis milhões de anos começam a surgir os chamados hominídeos e há três milhões e meio de anos é que “Lucy”, uma astrolopitecus afanasis, andava por aquilo que hoje seria a Etiópia. O nosso velho e bom homo sapiens datariam de100 a 130 mil anos.

As formas societárias que consideramos na chamada história antiga, os egípcios, por exemplo, organizavam-se por volta de três mil anos e nossa atual e medíocre sociedade capitalista emergiu da crise da forma feudal européia entre o século XVI e XVIII, portanto tem ridículos quinhentos ou seiscentos anos. Isso significa que considerando somente a história do homo sapiens o capitalismo é menos e 0,5% de nosso tempo e considerando dos hominídeos para cá, algo próximo de 0,01%.

O problema é que para nossa dimensão temporal parece ser eterno. Pensemos no seguinte exemplo. Uma formiga tenta atravessar um campo de um quilometro. Ela levaria, em sua velocidade habitual de0,20 cmpor segundo, algo como dois meses, que é o que vive certas formigas. Para ela uma distancia de dois quilômetros passa a ser inimaginável, se é que formigas perdem tempo imaginando estas coisas. O capitalismo para nossa vida media de setenta anos seria como sete campos destes, o desenvolvimento do homo sapiens cerca de mil e quatrocentos destes campos.

Nosso psiquismo não suporta esta dimensão, por isso repartimos o tempo em ciclos menores para nos dar a impressão de que encerramos algo e que iniciamos outro momento. É o significado dos ritos de passagem da vida da criança para a adulta e do fim do ano e seus festejos.  Fazemos o balanço do que fizemos, prometemos melhorar, iniciar aquele regime adiado, organizar de forma mais eficiente as contas para não estourar o cartão, comemos lentilha, guardamos uma semente de romã na carteira e assistimos o show do Roberto Carlos.

No entanto, não podemos fazer isso nos fins dos ciclos históricos. A função do ciclo é dar a impressão daquela uniformidade e regularidade que nos falava Elias, mas o fim dos ciclos históricos nos coloca diante do salto de qualidade, da ruptura, da transformação da quantidadeem qualidade. Pareceque o tempo passa mais rápido. Os acontecimentos se precipitam, a conjuntura se comprime em momentos decisivos, em dez dias que abalam todo o mundo, em meses que mudam um país, em semanas que desfazem um governo, em horas em que se produzem fusões que se mantiveram inertes por décadas e séculos. O mundo se move sob nossos pés, tão rápido que começa a causar vertigem nos mais desavisados. Tudo que é sólido se desmancha no ar.

O ano vai acabar inexorávelmenteem dezembro. Maso século XX acabou e o século XXI ainda não começou, configurando um paradoxo que nem Einstein compreenderia totalmente.  Estamos no meio de uma transição histórica. As consciências em tempos como estes recorrem a um subterfúgio: o fim do mundo. Foi assim no final do feudalismo como provam as profecias de Nostradamus e os diversos mitos que pululavam no final do período medieval. Agora neste fim de ciclo que vivemos recupera-se o calendário Maia para afirmar o fim do mundo em dezembro de 2012.

Os Maias trabalhavam com ciclos de mais ou menos cinco mil anos e acontece que para eles o mundo já acabou várias vezes e várias vezes foi reconstruído. Mas de todos os fins do mundo esse talvez seja o mais ridículo. Empresas norte americanas estão ganhando bilhões construindo abrigos e arcas, vendendo kits na internet (com lanternas e sopas prontas), seitas se mudam para a Argentina para morar em cabanas de pedra sem luz elétrica (talvez por acreditarem que se não verem o noticiário na TV escapem da hecatombe) e Hollywood faz filmes em que as arcas são construídas na China e só os que puderem pagar é que embarcarão para a salvação.

Assim é que juntamos nossas orações com os companheiros Maias para que este ciclo e este mundo realmente acabe o mais rápido possível e desejamos à todos um novo ciclo e século novo no qual continuaremos ocupados em superar a pré-história e iniciar a verdadeira história da humanidade, dando mais um passo de formiga para atravessar este enorme campo que se abre diante de nossos pés cansados… até que o sol se apague daqui há seis bilhões e meio de anos, mais ou menos quando toda a humanidade deverá ter transitado dos combustíveis fósseis para a energia solar.

***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas

14 de dez. de 2011

Por que o PCB homenageia Carlos Marighella

Ivan Pinheiro (Secretário Geral do PCB)

Neste mês, comemora-se o centenário de Carlos Marighella. Juntamente com outras instituições, a Fundação Dinarco Reis, ligada organicamente ao PCB, convoca um ato público em sua homenagem, nesta quinta-feira, na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro.

Na ocasião, sem qualquer pretensão de querer se apropriar da imagem de Marighella (que pertence a todos os brasileiros que lutam contra a opressão), o PCB quer marcar seu orgulho por ele ter militado por décadas em nosso Partido, tendo sido Deputado e Constituinte em 1946 e, principalmente, um dirigente partidário combativo, organizador e agitador, este adjetivo que soa como acusação para a direita e como elogio para os comunistas.

Por isso, no evento desta quinta-feira, entregaremos à sua família, em memória, a MEDALHA DINARCO REIS com que anualmente distinguimos personalidades que marcaram a história do PCB. Este gesto será apenas uma parte do Ato Público, cujo caráter é muito mais amplo, do ponto de vista das organizações e personalidades que o organizaram e daquelas que dele participarão. Marighella não é reivindicado apenas pelos comunistas, mas por todos aqueles que lutam por liberdade e justiça social.

É impossível falar de Marighella sem falar do PCB - a grande escola onde se formou e militou a maior parte de sua vida como revolucionário – e sem ao menos tangenciar alguns aspectos das divergências sobre a linha política pendular do partido da década de 50 à de 80 do século passado, que geraram uma verdadeira diáspora dos comunistas brasileiros.

É impossível também falar de Marighella, fundador da ALN (Ação Libertadora Nacional), sem lembrar de outros revolucionários que também divergiram da orientação política do PCB após o golpe de 1964, adotando formas de luta diferenciadas, como Luiz Carlos Prestes, Apolônio de Carvalho, Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves e tantos outros.

O PCB, em sua reconstrução revolucionária, olha com respeito para todos os que saíram do Partido àquela época e se mantiveram na esquerda. Os que tentaram liquidar o PCB e o abandonaram, pela direita, merecem o nosso desprezo.

Este respeito vem da compreensão de que as divergências com a linha política do Partido têm sua origem nos equívocos que levaram à derrota popular em 1964. Suas raízes estão na chamada Declaração de Março de 1958, que privilegiava alianças com setores da burguesia e a via institucional de transição ao socialismo. Com esta linha, o PCB desarmou a possibilidade de resistência popular diante do golpe.

No entanto, respeitar e compreender o surgimento destas dissidências do PCB após 1964 não significa concordar com a forma de luta adotada por algumas delas. Apesar de legítima e em geral inevitável para o trânsito ao socialismo, a luta armada não era adequada àquela correlação de forças e ao nível de organização e mobilização da resistência popular à ditadura.

Diante do erro cometido antes de 1964, consideramos correta, até 1979, a linha política adotada pelo VI Congresso do PCB, em 1967, de enfrentamento à ditadura pela via do movimento de massas e da frente democrática, até porque não restavam outras alternativas. Novos erros vieram depois, nos anos 80, com a manutenção da política de frente democrática que já havia perdido a atualidade. Foi a década perdida do PCB, do ponto de vista revolucionário, marcada pela conciliação de classe.


No entanto, não estamos entre aqueles que negam ou subestimam o papel da insurgência armada adotada por algumas organizações no período que, ao preço de muitas vidas que nos fazem falta, também contribuíram para a derrubada da ditadura.

Também é preciso ficar claro que a ditadura não escolhia suas vítimas apenas em função dos meios com que lutavam. Entre 1973 e 1975, foram assassinados dezenas de camaradas do PCB, cujos corpos jamais apareceram, dentre eles quase todos os membros do Comitê Central que aqui atuavam na clandestinidade.

Ao homenagearmos Marighella não queremos transformá-lo apenas em um personagem da história, mas principalmente fazer dele um exemplo de luta para as novas gerações.

(13 de dezembro de 2011)
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26 de nov. de 2011

Os arquivos secretos da Marinha

ÉPOCA teve acesso a documentos inéditos produzidos pelo Cenimar, o serviço de informações da força naval. Eles revelam o submundo da repressão às organizações de esquerda durante a ditadura militar
Uma caixinha de papelão do tamanho de um livro guardou por mais de três décadas uma valiosa coleção de segredos do regime militar implantado no Brasil em 1964. Escondidas por um militar anônimo, 2.326 páginas de documentos microfilmados daquele período foram preservadas intactas da destruição da memória ordenada pelos comandantes fardados. Os papéis copiados em minúsculos fotogramas fazem parte dos arquivos produzidos pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o serviço secreto da força naval. Ostentam as tarjas de “secretos” e “ultrassecretos”, níveis máximos para a classificação dos segredos de Estado e considerados de segurança nacional. Obtido com exclusividade por ÉPOCA, o material inédito possui grande importância histórica por manter intactos registros oficiais feitos pelos militares na época em que os fatos ocorreram. Para os brasileiros, trata-se de uma oportunidade rara de conhecer o que se passou no submundo do aparato repressivo estruturado pelas Forças Armadas depois da tomada do poder em 1964. Muitos dos mistérios desvendados pelos documentos se referem a alguns dos maiores tabus cultivados pelos envolvidos no enfrentamento entre o governo militar e as organizações de esquerda.

FIM DO SEGREDO A caixa de papelão com os microfilmes de documentos do Cenimar. Ela foi guardada por um militar anônimo por mais de três décadas (Foto: Igo Estrela/ÉPOCA)
FIM DO SEGREDO
A caixa de papelão com os microfilmes de documentos do Cenimar. Ela foi guardada por um militar anônimo por mais de três décadas (Foto: Igo Estrela/ÉPOCA)
 As revelações mais surpreendentes estão nas pastas rotuladas de “Secretinho”, uma espécie de cadastro dos espiões nas organizações de esquerda. Fichas e relatórios do Cenimar identificam colaboradores da ditadura, homens e mulheres, que atuavam infiltrados nas organizações que faziam oposição, armada ou não, ao regime militar. Agiam dentro dos partidos, dos grupos armados e dos movimentos estudantil e sindical. O trabalho dos informantes e agentes secretos era pago com dinheiro público e exigia prestação de contas. Muitos infiltrados eram militares treinados pelos serviços secretos das Forças Armadas que atuavam profissionalmente. Outros foram recrutados pelos serviços secretos entre os esquerdistas, por pressão ou tortura. Havia ainda dezenas de colaboradores eventuais, simpatizantes do regime, que trabalhavam em setores estratégicos, como faculdades, sindicatos e no setor público. A metódica organização da Marinha juntou relatórios, fotografias, cartas e anotações de agentes e militantes.
 
Reveladores, os papéis microfilmados divulgados por ÉPOCA antecipam alguns dos debates mais importantes previstos para a Comissão da Verdade, cuja lei de criação foi sancionada recentemente pela presidente Dilma Rousseff. Aprovada pelo Congresso, a comissão foi criada com o objetivo de esclarecer os abusos contra os direitos humanos cometidos, principalmente, durante a ditadura militar. Se investigar a fundo o que se passou nas entranhas do aparato repressivo, chegará à participação de militantes de esquerda nas ações que levaram à prisão, à morte e ao desaparecimento de antigos companheiros.


Reveladores, os papéis microfilmados divulgados por ÉPOCA antecipam alguns dos debates mais importantes previstos para a Comissão da Verdade, cuja lei de criação foi sancionada recentemente pela presidente Dilma Rousseff. Aprovada pelo Congresso, a comissão foi criada com o objetivo de esclarecer os abusos contra os direitos humanos cometidos, principalmente, durante a ditadura militar. Se investigar a fundo o que se passou nas entranhas do aparato repressivo, chegará à participação de militantes de esquerda nas ações que levaram à prisão, à morte e ao desaparecimento de antigos companheiros.
O PRECURSOR José Anselmo dos Santos (ao centro, de bigode), o “Cabo Anselmo”, o mais famoso dos agentes duplos da ditadura, numa foto de 1964. Acima, uma reprodução de um documento do Cenimar, em que seu nome aparece numa lista de civis e militares invest (Foto: Arquivo O Dia)
O PRECURSOR
José Anselmo dos Santos (ao centro, de bigode), o “Cabo Anselmo”, o mais famoso dos agentes duplos da ditadura, numa foto de 1964. Acima, uma reprodução de um documento do Cenimar, em que seu nome aparece numa lista de civis e militares investigados (Foto: Arquivo O Dia)

Durante a luta armada, as acusações de traição muitas vezes determinaram justiçamentos, com a execução dos suspeitos pelos próprios integrantes das organizações comunistas. Isso aconteceu com Salathiel Teixeira, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que integrou o revolucionário Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), dissidência do “Partidão” que migrou para a luta armada. Salathiel terminou morto por companheiros por suspeita de ter fornecido, sob tortura, informações aos órgãos de repressão. Os documentos da Marinha mostram como Maria Thereza, funcionária do antigo INPS do Rio de Janeiro e amiga de Salathiel, foi recrutada e paga para ajudar a prendê-lo em 1970. A prisão de Salathiel foi chave para a prisão de dirigentes do partido.

O Cenimar representava a Marinha na poderosa comunidade de informações do governo militar, que incluía também os serviços secretos do Exército, da Aeronáutica, da Polícia Federal e das polícias Civil e Militar. O marco inicial da estruturação dessa rede que investigava e caçava inimigos dos militares foi a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), em 1964, pelo então coronel Golbery do Couto e Silva, um dos homens fortes dos governos dos presidentes Humberto de Alencar Castelo Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.

Para compreender bem o confronto sangrento entre as Forças Armadas e as organizações de inspiração comunista, é necessário lembrar o contexto da época. O mundo vivia a Guerra Fria, período de polarização ideológica em que Estados Unidos e União Soviética disputavam o controle de regiões inteiras do planeta. O Brasil importou o conflito internacional. O governo militar tinha o apoio dos Estados Unidos, e parte da oposição aderiu aos regimes comunistas, com forte influência de Cuba e China. O PCB se dividiu em dezenas de siglas adotadas por grupos radicais que adotaram a luta armada como instrumento para a derrubada dos militares. O PCB defendia a via pacífica para a chegada ao poder. Nem assim escapou da perseguição do aparato repressivo e muitos de seus seguidores foram mortos e desapareceram com a participação direta da comunidade de informações. Dentro do PCB sempre se soube que a ação de agentes infiltrados teve grande responsabilidade nas prisões dos comunistas. Os documentos do Cenimar revelam que um discreto dirigente do PCB em São Paulo, Álvaro Bandarra, fez um acordo com os militares em 1968 para colaborar com a caçada aos integrantes do partido.

Os documentos do Cenimar mostram ainda como agiram os espiões para ajudar no desmantelamento de algumas das dissidências do PCB. Os agentes infiltrados pela Marinha tiveram importante participação na derrocada do PCBR, da Ação Libertadora Nacional (ALN), da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e da Frente de Libertação Nacional (FLN). Os militantes viviam escondidos em casas e apartamentos, chamados por eles mesmos de “aparelhos”. Num tempo em que não havia telefone celular nem internet, marcavam locais de encontro, conhecidos como “pontos”, com semanas ou meses de antecedência para garantir o funcionamento das organizações. Num desses “pontos”, descoberto por um agente secreto de codinome “Luciano”, morreu Juarez Guimarães de Brito, um dos líderes da VPR, procurado pelo governo por ter comandado o lendário assalto ao cofre do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros.

Os arquivos da Marinha revelam também como os comunistas subestimaram a força da ditadura e cometeram erros infantis que facilitaram o trabalho da repressão. Num tempo em que os grampos telefônicos já eram comuns, guerrilheiros tramavam ações armadas e falavam despreocupadamente ao telefone. Também convidavam para participar de grupos de ação armada pessoas que mal conheciam, o que facilitou a infiltração dos agentes secretos. A fragilidade das organizações de esquerda permitiu a infiltração do fuzileiro naval Gilberto Melo em entidades do movimento estudantil no Rio de Janeiro.

A história de Gilberto guarda grande semelhança com a do mais conhecido dos agentes duplos da ditadura, José Anselmo dos Santos, conhecido por “Cabo Anselmo”. Anselmo se tornou conhecido ainda antes do golpe como presidente da Associação dos Marinheiros, um dos focos de agitação durante o governo de João Goulart, e depois se infiltrou em organizações da luta armada como informante da repressão. Gilberto passava os dias perambulando pelo restaurante Calabouço, local de encontro dos estudantes e de organização das manifestações contra o regime militar. Ele viu quando o secundarista Edson Luiz Lima Souto foi morto durante uma manifestação por policiais no Calabouço, com um tiro no peito, no dia 28 de março de 1968.

Nos dias seguintes à morte de Edson Luiz, Gilberto, conhecido no Cenimar como Soriano, participou das manifestações desencadeadas pelo assassinato, que culminaram na famosa passeata dos 100 mil, em junho de 1968, no Rio de Janeiro. Gilberto incorporou tanto o disfarce que terminou preso duas vezes. Foi espancado e torturado como se fosse um esquerdista. Nunca revelou que era agente secreto. A morte de Edson foi um dos fatos mais marcantes daquele período, que culminou com o recrudescimento da repressão pelo regime militar e a implantação do Ato Institucional Número 5 (AI-5) no final de 1968.

Os papéis microfilmados constituem um valioso acervo para a compreensão dos métodos empregados pelos órgãos de repressão. Por razões óbvias, nos registros não constam as práticas mais hediondas, como tortura, prisões ilegais, assassinatos ou desaparecimento de pessoas. Mas eles têm o mérito de expor personagens e mostrar o roteiro das perseguições aos inimigos do regime. Os relatórios do Cenimar também registram o envolvimento de oficiais da Marinha. Eles controlavam a rede de espiões espalhados pelo país, chefiavam as equipes de busca e coordenavam os interrogatórios. “Documentos que mostram relatórios de informantes, contratações e atuação direta são raros”, afirma Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos principais historiadores do período militar. “Provavelmente (esses documentos) deveriam ter sido expurgados. Por algum motivo, alguém os salvou.”

O expurgo mencionado por Fico foi concretizado no acervo do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). O Cisa fazia o mesmo trabalho do Cenimar. Também tinha agentes e controlava elementos infiltrados em organizações de esquerda. No início do ano, o Arquivo Nacional abriu a consulta aos documentos acumulados pelo Cisa e entregues um ano antes pela Aeronáutica. Mas quem for até lá em busca de documentos como os do Cenimar vai se decepcionar. Não há nada que leve à identidade de agentes e informantes, seus relatórios, comprovantes de pagamentos, material que existe fartamente nos arquivos obtidos por ÉPOCA. Procurada, a Marinha afirmou desconhecer os documentos do arquivo secreto. “Não foram encontrados, no Centro de Inteligência da Marinha, registros pertinentes aos questionamentos apresentados”, afirmou o contra-almirante Paulo Maurício Farias Alves, diretor do Centro de Comunicação Social da Marinha.

Até hoje, a história da ditadura militar no Brasil se revelou aos poucos, em imprevisíveis divulgações de documentos, relatos contraditórios de militares e incompletas declarações dos perseguidos pelo regime militar. Menos de três décadas depois de restaurada a democracia, ainda existem importantes segredos. Nas próximas semanas, ÉPOCA publicará novos capítulos dessa história ainda desconhecida.


FONTE: AQUI

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25 de nov. de 2011

90 Anos do PCB (IV)- Do Manifesto de Agosto de 1950 ao IV Congresso

O PCB havia iniciado o processo autocrítico das ilusões constitucionais com a Declaração de Janeiro de 1948, que se aprofundou com o Manifesto de Agosto de 1950. A bandeira da revolução é novamente levantada e a questão da luta armada, como caminho para a conquista do poder, é retomada e posta na ordem do dia. O PCB inicia um rico período de sua existência, em que a luta contra o revisionismo, pela primeira vez, surgia no interior do Partido. E esta, ainda que não se desse de forma mais patente e organizada, ganhará maior dimensão. Uma demarcação mais nítida entre esquerda e direita, entre a linha revolucionária e reformista, será a base das futuras rupturas entre marxistas-leninistas e revisionistas.
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Ilustração de campanha de soltura de Elisa Branco
Na legalidade institucionalizada e com a Assembleia Constituinte, os comunistas conquistariam a maior bancada parlamentar de toda sua história, com 46 deputados e um senador, e a maioria de vereadores na capital federal. O PCB na legalidade contava com cerca de 200 mil militantes e oito jornais diários, já em 1947.
O general fascista Eurico Gaspar Dutra, como representante direto do imperialismo ianque, é eleito presidente com a missão de deter o movimento comunista no país. Rompe relações diplomáticas com a URSS e assume a ponta de lança da contrarrevolução em uma nova escalada fascista contra o povo e o PCB. Prisões e assassinatos se generalizam, comícios são dissolvidos a bala. O PCB não responde a altura aos ataques do inimigo. Apoiando-se no parlamento, o PCB pede inutilmente o impecheament de Dutra. Sem uma linha política revolucionária e organizações preparadas para resistir e combater, o PCB perde a iniciativa e não logra utilizar os acontecimentos para desmascarar o regime e preparar as massas para a luta revolucionária pelo poder.
Com Dutra se aprofunda a dominação do imperialismo ianque no país. A desnacionalização da economia e a subserviência ao USA se aceleram. Para cassar os deputados comunistas Pedro Pomar e Diógenes Arruda, que se mantinham abrigados em outras legendas a fim de utilizar a tribuna para denunciar o governo, Dutra passou a exigir atestado de ideologia para quem fosse disputar as eleições.
Diante da ilegalidade imposta e da compreensão da situação política como de tendência à fascistização e à preparação de uma nova guerra contra a URSS, o PCB inicia um processo autocrítico, para o qual teve grande importância a vitória da Revolução Chinesa em 1949, assim como a Conferência dos Partidos Comunistas na Polônia de 1947. Nesta, Andrei Zhdanov criticara os desvios de direita em que estava afundado o PCB.

Manifesto de Agosto de 1950

Na Declaração de Janeiro de 1948, Prestes levantava entre outras questões a pouca atenção às lutas dos trabalhadores rurais contra o latifúndio e a prática de "obscurecer os objetivos estratégicos revolucionários" com uma sistemática "contenção da luta de massas proletárias em nome da colaboração operário-patronal e da aliança com a burguesia progressista".
Com o Manifesto de Agosto de 1950 aprofunda-se a autocrítica, reafirmando o papel dirigente do proletariado e apontando para a tomada revolucionária do poder através da luta armada. O Manifesto propõe a formação de núcleos da Frente Democrática de Libertação Nacional - FDLN para a derrubada do governo estabelecido e o estabelecimento de um governo democrático popular.

As limitações da autocrítica

Ainda que a Declaração de Janeiro de 1948 e o Manifesto de Agosto de 1950 tenham representado um importante avanço na superação de problemas históricos, mudando a orientação política e dando fôlego à esquerda na direção do PCB, este processo autocrítico ainda encontra sérias limitações. E estas não permitirão aprofundar suficientemente a luta entre marxismo e o revisionismo — que já manifestara com as posições de Browder no continente e de Togliatti na Europa — para ir às raízes do reformismo no partido e extirpá-las da sua direção.
Neste período, três problemas fundamentais se colocavam como pedra de toque, sem os quais o PCB não poderia superar o reformismo e a ideologia pequeno-burguesa. Questões que de forma geral se achavam resolvidas na experiência vitoriosa da Revolução Chinesa, a qual é profundamente subestimada pelos comunistas brasileiros. São eles:
1 A questão da burguesia nacional e a correta relação com ela. O PCB substitui a linha oportunista de direita de unidade cega com a burguesia, pela sua negação completa. Caracteriza a burguesia em bloco como força inimiga, sem separar a grande burguesia (que por sua vez se divide em frações: compradora e burocrática, inimigas), média e pequena (genuína burguesia nacional, sendo suas alas esquerdas aliadas do proletariado e do campesinato). Sem separar suas diferentes frações, o PCB seguiu equivocadamente tomando a grande burguesia burocrática, representada por Vargas, por burguesia nacional.
2 A compreensão sobre a questão agrário-camponesa. Ainda que tenha ganhado maior ênfase, não se define corretamente seu papel na revolução brasileira, ficando assim secundarizada na estratégia do Partido, assim como sua vinculação com o problema nacional, terminando por colocar o problema da eliminação do latifúndio apenas como condição para o desenvolvimento capitalista, e não principalmente como condição para a conformação da aliança operário-camponesa, para a libertação das forças produtivas no campo, para a hegemonia do proletariado na frente única revolucionária e para a passagem interrupta da revolução democrática de novo tipo ao socialismo.
3 A questão da via e forma principal de luta, ou seja, a luta armada. É aqui, quanto à questão da linha militar, que concretiza as tarefas da revolução, e à construção do segundo instrumento da revolução, o Exército Guerrilheiro Popular (são três os instrumentos da revolução: o partido, o exército revolucionário popular e a frente única revolucionária, sendo o partido o principal), onde os problemas se revelam de forma mais clara.
O Manifesto defende que o Exército Popular de Libertação Nacional seria formado a partir da "Expulsão das forças armadas de todos os fascistas e agentes do imperialismo e reintegração em suas fileiras dos militares delas afastados por motivo de sua atividade democrática revolucionária1". Ou seja, ao passo que repudia qualquer possibilidade de aliança com a burguesia, defende a principal instituição de sustentação da grande burguesia e do latifúndio, as forças armadas brasileiras, como sendo a base de um instrumento revolucionário do proletariado.
Como bem sublinhara Mao Tsetung sobre o problema do Estado e a Revolução: "O principal é o problema da máquina estatal, isto é, o problema da destruição da velha máquina estatal (principalmente as forças armadas) e do estabelecimento de uma nova máquina estatal (principalmente as forças armadas [revolucionárias])"2.
Como a própria experiência da Revolução Chinesa afirmou, a condição para o proletariado manter a independência e hegemonia na Frente Única é possuir um verdadeiro Exército Guerrilheiro Popular, construído através de um longo progresso. A direção do PCB segue com a velha ilusão de um suposto caminho insurrecional como prevaleceu no levantamento armado de 1935.
Tais limitações mantêm o PCB ideologicamente no campo pequeno-burguês e farão com que não logre aprofundar a aplicação da linha revolucionária que estabelecera, fazendo com que oscile entre desvios de "esquerda" e de direita nos anos posteriores.
Na prática a direção do PCB mantém uma política ambígua. Ao mesmo tempo em que defende a luta armada e participa efetivamente de levantamentos armados, lança candidatos em 1950 (através de outras legendas), faz campanha pelo voto em branco nas eleições presidenciais e luta pelo retorno à legalidade burguesa.
Ademais do papel da direção oportunista de Prestes, este processo revela também a debilidade da esquerda na direção do PCB, particularmente quanto ao método de conhecimento, de estudo e de luta de linhas.
Pedro Pomar, então membro do Comitê Central, diverge da condução do processo autocrítico. Pomar discordara de que a direção do Partido passasse de uma posição a outra sem reconhecer o fundo dos desvios e as responsabilidades do Comitê Central neles. Em seguida, Pomar seria desligado da Comissão Executiva e do Secretariado Nacional e enviado para ocupar a primeira-secretaria e a secretaria de agitação e propaganda do Comitê Estadual do Rio Grande do Sul, como medida disciplinar para que "fizesse autocrítica". No princípio dos anos de 1950, integra-se ao trabalho do PCB em São Paulo, participando ativamente da direção das importantes greves operárias deste período e do acompanhamento da luta armada em Porecatu, no norte do Paraná. Depois é enviado a Moscou e só retorna em 1955; logo, não pôde participar do IV Congresso, no qual foi simplesmente destituído do Comitê Central.
Contudo, e apesar dos zigue-zagues da direção, a partir da autocrítica das ilusões constitucionais, o PCB logrará avanços importantes, desenvolvendo uma grande experiência na mobilização e organização independente das massas de uma forma geral, procurando imprimir maior combatividade nas lutas das massas. É o período de grande auge das greves operárias, particularmente em São Paulo e que darão origem a novas organizações classistas, as associações sindicais por categorias, independentes do Ministério do Trabalho. A questão agrário-camponesa ganhou importância tanto nos debates teóricos e políticos no partido, quanto na luta concreta.
Mas foi quanto à construção partidária que o PCB mais avançou. Escolas de quadros foram realizadas, preparando centenas e centenas de novos quadros. Foi a primeira vez que a direção do partido debruçou-se seriamente sobre os problemas teóricos e práticos da revolução brasileira.

Contra a agressão à Coreia

Como parte da campanha contra a preparação de uma nova agressão imperialista à URSS, o PCB lança em 1950 o movimento nacional pela proibição de armas atômicas. Em 1951 organizou o Congresso Brasileiro dos Partidários da Paz.
Com a escalada da Guerra Fria, o USA lança uma guerra de agressão contra a Coreia (1950-1953) e, em 1951, pressiona o governo Dutra para o envio de tropas brasileiras para lutar junto com as tropas imperialistas. Os comunistas levantam um grande movimento contra a agressão a Coreia e a utilização da bomba atômica e organizam um abaixo assinado com 4,2 milhões de assinaturas. A militante comunista Elza Branco é presa em uma festa popular no Vale do Anhangabaú-SP por levantar uma faixa com os dizeres: "Nossos filhos não irão para a Coreia". Ela se tornou um símbolo e alavancou o movimento de luta contra a agressão por todo país, impedindo o envio de tropas brasileiras.

A campanha "O petróleo é nosso!"

Nas eleições de 1950, Vargas é eleito, representando um duro golpe na fração compradora da grande burguesia representada por Dutra. Enquanto representante da grande burguesia burocrática, Vargas oscilará entre medidas populistas e concessões ao imperialismo, de acordo com a conveniência de seu grupo de poder. Os discursos "nacionalistas" e populistas buscavam conformar base social entre as massas populares.
Nos primeiros anos do governo, Vargas faz importantes concessões ao imperialismo ianque. Em 1952, assina o acordo militar Brasil—Estados Unidos, também autoriza a remessa anual de 5 mil toneladas de areias monazíticas para o USA. Estabelece acordo secreto com a força aérea ianque para fazer fotos aéreas do território brasileiro, com o objetivo de elaborar um "plano estratégico de defesa para todo continente". O PCB, a partir do Manifesto de Agosto de 1950, denunciará Vargas enquanto lacaio do imperialismo ianque, convocando a derrubada do governo.
A campanha pela nacionalização da exploração do petróleo no país, após desmascarar as teorias do imperialismo de que no Brasil não havia petróleo, começou no início de 1948 contra o projeto entreguista de Dutra, que pretendia entregar nosso petróleo aos monopólios ianques. Nos anos de 1949-1951 o slogan "O petróleo é nosso!" se espalha por todo o país, aglutinando um amplo movimento de massas de operários, estudantes, camponeses, mulheres, estudantes, intelectuais e artistas e a participação de importantes personalidades do país, como o escritor Monteiro Lobato.
Na zona Leste de São Paulo, operários ergueram em meio a uma praça pública uma enorme réplica de madeira de uma torre de petróleo com 18 metros de altura, na qual estava fixado um cartaz "O petróleo é nosso! Fora o imperialismo". Apesar da proibição pelo governo, outras torres como essa são fixadas em diferentes partes da cidade. Uma réplica, desta feita de metal, é instalada no bairro da Penha, com um público de nada menos que 20 mil pessoas, lá permanecendo por dez anos3.
Em 1952, o movimento popular derrota as tentativas de Vargas de criação de uma empresa de capital misto e garante o monopólio estatal na produção de petróleo, com o decreto que determina a criação da Petrobras.
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A revista dirigida pelo PCB divulgou os documentos do IV congresso do partido
Em 26 de março de 1953, o PCB dirigiu uma das maiores greves operárias da história. Durando cerca de um mês, envolveu cerca de 300 mil trabalhadores. No dia 18 de março é realizada em São Paulo a Passeata da Panela Vazia, convocada pelos comunistas, que reúne 60 mil pessoas. O PCB passa também a construir e estender um amplo trabalho feminino, dirigindo, no dia 28 de julho de 1951, o Primeiro Congresso da Federação de Mulheres do Brasil.
Em agosto de 1954 é realizada no Rio de Janeiro a vitoriosa Conferência Latino-Americana de Mulheres. Participaram desta Conferência 400 delegadas. Cerca de 100 expressivas mensagens de sindicatos, organizações profissionais e personalidades femininas foram enviadas à Conferência. O trabalho de preparação realizado no Brasil em função da Conferência deu novo impulso à organização do movimento feminino de massas. Surgiram no Brasil, nesse período, mais de 30 organizações de massas femininas operárias e camponesas.
"Tal fato foi confirmado na II Conferência de Camponeses e Assalariados Agrícolas, realizada em São Paulo, com a participação de camponesas de vários estados, eleitas como delegadas em grandes assembléias"4.

Ascenso de lutas camponesas

Entre os anos de 1948 e 1950 há um ascenso de lutas camponesas dirigidas pelo PCB. Greves de colonos de café, assalariados agrícolas, lutas combativas de arrendatários e meeiros. Destacam-se as lutas de Fernandópolis, de Canápolis, de Santo Anastácio e das usinas de açúcar na Bahia.
"No ano de 1953 o PCB realiza a I Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas e Camponeses Pobres. A Conferência de Assalariados Agrícolas e Camponeses Pobres do Nordeste e a Conferência dos Flagelados no Ceará. Foram organizados Sindicatos Rurais de Colonos e de Assalariados Agrícolas e Associações de Camponeses.
No mesmo ano é realizada a II Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas e Camponeses, como as conferências de sitiantes, posseiros, parceiros, meeiros e arrendatários, de colonos de café, de assalariados agrícolas da lavoura canavieira, do arroz e do cacau, etc. A Conferência tomou resoluções de alta relevância, tais como a elaboração da Carta dos Direitos e a fundação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, ULTAB"5.
Desde janeiro de 1948, a questão agrário-camponesa passa a tomar crescente importância nos debates e ações do PCB. A experiência mais avançada e mais profunda do período será em Porecatu, no norte do Paraná. Esta será a primeira experiência concreta do PCB de organização da luta armada no campo, avançando de forma concreta a construção da aliança operário-camponesa.

A experiência da luta armada em Porecatu6

Nesta região do norte paranaense, em uma área de cerca de 4 mil hectares, desde o início dos anos de 1940, centenas de posseiros lutavam por suas terras de armas nas mãos contra grileiros, pistoleiros e a polícia. Assim como em outras regiões do país, com a valorização da terra a luta recrudesce e se radicaliza. A luta dos posseiros havia fundado duas associações de lavradores em 1944, as mais antigas organizações camponesas do país. A de Porecatu, com 270 famílias, e a de Guaraci, com 268 famílias. Em 1947, 1500 posseiros realizam uma manifestação armada em Guaraci e bloqueiam por cinco dias a estrada que liga Centenário do Sul a Porecatu.
Sob clara influência da "Declaração de Janeiro de 1948", os comitês regionais do PCB de Londrina e Curitiba tomam conhecimento dos acontecimentos e, através do dirigente comunista Manoel Jacinto Correia, preparam relatório detalhado para a direção do PCB. O Comitê Central, após receber o relatório, decide se integrar à luta dos posseiros e envia quadros (principalmente militares) e armas para a região. Os posseiros são amplamente receptivos à direção do PCB. Em novembro de 1948, formalmente os posseiros decidem pela luta armada para defender suas terras.
A direção do PCB orienta a formação de Ligas Camponesas para ampliar o movimento e impedir o isolamento. Ao longo da resistência, doze Ligas são fundadas. Comitês de apoio à luta dos posseiros são formados em diversas capitais. A luta se desenvolve e diversos grupos armados de posseiros são formados. Com o Manifesto de Agosto de 1950, a luta ganha mais força e também influencia a luta no interior da direção do PCB, que chega a levantar fundos para aquisição de armas para a formação do Exército Popular da FDLN. No início, os grupos armados realizavam apenas ações de defesa das posses ameaçadas. Com o maior desenvolvimento da luta, os grupos armados de posseiros destroem as instalações do latifúndio, justiçam pistoleiros e expulsam latifundiários, chegando a controlar uma região de cerca de 40 km².
A luta armada resiste a diversas campanhas da polícia militar e dura até 1951. A polícia não consegue derrotar a guerrilha. A direção do PCB comete erros no manejo da tática e aos poucos a luta se desmobiliza de forma organizada, sem que as principais lideranças sejam presas. Com a luta, centenas de famílias obtêm o título da terra, sendo esta a primeira vez no país que terras são desapropriadas pelo governo para "fins sociais".
O exemplo de Porecatu frutifica. Em junho de 1951, 200 camponeses do sul da Bahia resistem armados em suas terras contra a tentativa de expulsão pelo latifúndio. Em 1957, no sudoeste do Paraná ocorre outro levantamento armado de posseiros. Em 1954, a luta armada de Trombas e Formoso em Goiás, à qual o PCB também vai se integrar, encontra seu auge. A luta no interior de Goiás foi dirigida por José Porfírio e ocorreu quando os povoados de Trombas e Formoso foram atacados por pistoleiros e pela polícia militar. No final da década de 1950, toda a região estava organizada e dominada pelos posseiros, que resistiram armados à ação dos pistoleiros e policiais, derrotando suas campanhas e expulsando-os. Os posseiros se organizaram na Associação dos Trabalhadores de Trombas e Formoso, presidida por Porfírio. Devido à luta organizada dos camponeses, 20 mil títulos de terra são concedidos7.
A experiência da luta armada de Porecatu, além de ser a primeira de luta armada no campo dirigida pelo PCB, dera-se sob o impacto direto da declaração de 1948 e o manifesto de 1950. E, ainda que de forma parcial, representara a incorporação pelas massas da linha revolucionária estabelecida pelo PCB. Entretanto, em seu curso, e após sua derrota, essa experiência é profundamente subestimada. A direita na direção do PCB passará do silenciamento ao ataque à experiência de Porecatu, funcionando como arcabouço para sustentar suas posições reformistas.
O balanço profundo dos acertos e erros no movimento armado de Porecatu e suas lições serviriam para aprofundar a luta de duas linhas no interior da direção sobre o caminho da luta armada em nosso país. Combateria frontalmente as posições reformistas e fortaleceria as posições de esquerda, corrigindo os erros e limitações nas formulações desenvolvidas pelo partido.
Vejamos como a própria experiência de Porecatu fornecia importantes indicações sobre o caminho para a construção do Exército Guerrilheiro Popular com a rica experiência militar8 adquirida com a formação dos grupos armados; e sobre a própria questão da construção da Frente Única, com a formação das Ligas Camponesas e comitês de apoio a luta armada dos posseiros que foram criados nas pequenas e grandes cidades.
O erro de buscar o caminho da legalização da luta dos camponeses era o de buscar um fim institucionalizado, dentro do velho Estado. Isto se verificou tanto em Porecatu quanto em Trombas. Prevaleceu o oportunismo reformista de integrar a luta das massas ao Estado, quando deveria-se aproveitar a excelente oportunidade para formular a estratégia da generalização destas lutas nas vastas zonas rurais do país, combinando-as com a resistência popular nos grandes centros, onde a luta reivindicativa seria fortalecida com ações armadas da revolução. Isto seguramente teria aberto um novo caminho para a revolução não só no Brasil, mas em toda América Latina, onde fenômenos semelhantes estavam se gestando, inclusive fora dos partidos comunistas.

Suicídio de Vargas

As pressões do imperialismo ianque pela abertura total e, por outro lado, o aumento das lutas democráticas das massas, levam Vargas a adotar medidas populistas de viés nacionalista, a fim de fortalecer a base social do seu governo.
A fim de refrear as lutas das massas e tentar canalizá-las a seu favor, Vargas nomeia João Goulart para o Ministério do Trabalho e uma de suas primeiras medidas anunciadas é o aumento de 100% do salário mínimo, como defendiam os comunistas. Dado às tensões criadas, Goulart cai do ministério e Vargas retoma a proposta e radicaliza, ameaçando controlar a remessa de lucros dos monopólios estrangeiros.
Premido por ameaças de corrupção, por pressões dos círculos monopolistas ianques e por um golpe de Estado em curso, além do episódio do atentado contra Carlos Lacerda por um integrante de sua segurança pessoal, Vargas se mata com um tiro no peito. Na carta testamento que deixa acusa as "forças terríveis" da oposição (principalmente a UDN) e do USA. A tragédia de sua morte e o conhecimento dos termos de sua carta geram comoção nacional, provocando revoltas das massas populares que, saindo às ruas em manifestações coléricas, atacam sedes de partidos e jornais de oposição. Inclusive os jornais do PCB são atacados nas bancas de revistas com a mesma fúria lançada contra as publicações e organizações dos golpistas.
Estes acontecimentos confundem ainda mais a direção do partido que, sem compreender corretamente a questão da burguesia nacional, muda repentinamente de posição, e passa a defender Getúlio como anti-imperialista e a se aliar com seus correligionários.
Para entender o posicionamento político de Vargas é preciso compreender como a relação de dominação do imperialismo não é unilateral. Ou seja, as classes dominantes locais (os latifundiários e a grande burguesia em suas frações compradora e burocrática), ao mesmo tempo em que são lacaias, barganham seus interesses segundo a oscilação da correlação de forças no país e no mundo. Este movimento historicamente fez com que setores da burguesia nacional e do proletariado — influenciados pela linha reformista dos partidos comunistas de então — seguissem a grande burguesia burocrática principalmente, em nome de apoiar um suposto setor progressista no governo.

O IV Congresso do PCB

Meses depois do suicídio de Getúlio, o PCB realiza o seu IV Congresso (dezembro/1954 — janeiro/1955). Sua realização é um marco importante em sua história. Pela primeira vez, o partido formula seu programa de forma bem detida. As teses apresentadas serão as mais profundas já formuladas no país e expressam um maior conhecimento da realidade nacional.
Entretanto, os debates no congresso são extremamente restritos e débeis. Prevalecia o dogmatismo em questões de organização, métodos administrativos na luta interna. Isto não permitiu aprofundar o balanço do importante período de lutas vivido pelo PCB, precisamente quando este lutou por aplicar uma linha revolucionária. A linha do Manifesto de Agosto de 1950 impulsionou o partido para a luta revolucionária, porém na sua formulação limitada prevaleceu a ideologia pequeno-burguesa, numa mistura de ações revolucionárias e reformistas que culminaram em fracassos. Tudo isto dará maior força às posições direitistas que se nutriam na direção do Partido.
Tanto a linha de direita de Prestes, como a própria esquerda, que posteriormente rompeu com o reformismo, reconstruindo o PCB em 1962 (com a sigla PCdoB para diferenciar-se da organização de Prestes), afirmam que o IV Congresso fora marcado por teses esquerdistas e sectárias. Entretanto, suas posições e resoluções mantiveram no fundamental concepções reformistas da linha que ganhou força após a derrota de 1935, a da revolução nacional-democrática através da reformulação de instituições da velha ordem.
Vejamos que a imprecisão quanto à caracterização da burguesia brasileira leva ou a apoiá-la em bloco ou a tomar a grande burguesia burocrática (ligada à produção) como burguesia nacional, considerando como critério de distinção apenas seu posicionamento político aparente. O programa afirma o confisco apenas das grandes empresas e capitais ianques, eximindo as grandes empresas brasileiras que constituíam já capital monopolista. "Não serão confiscados os capitais e as empresas da burguesia brasileira. Serão confiscados os capitais e as empresas dos grandes capitalistas que traírem os interesses nacionais e se aliarem aos imperialistas norte-americanos9".
Ao tratar da dominação imperialista ianque do país como um "simples apêndice da economia de guerra dos USA"10, toma tal dominação de forma unilateral e não compreende o caráter semicolonial e o papel desempenhado pelas classes dominantes internas no país, notadamente as duas frações da grande burguesia, a compradora e a burocrática.
O programa centra na necessidade do rompimento de relações com o USA, "que impedem o Brasil de manter relações comerciais com todos os países e em prejuízo da economia nacional"11 e de forma genérica fala sobre a necessidade de se estabelecer relações com "todos outros países". Ainda no ponto 31 do programa: "Atrair a colaboração de governos e de capitalistas estrangeiros, cujos capitais possam ser úteis ao desenvolvimento independente da economia nacional"12.
Em suma, apesar de toda retórica, o programa apresentado no IV Congresso condensa as aspirações democrático-burguesas radicais, apontando para o desenvolvimento do capitalismo nacional e não da transição ao socialismo. As teses sustentam um "Desenvolvimento independente da economia nacional com a intensificação da industrialização do país13". No programa não há nenhuma menção à transição ao socialismo, transformando na prática as conquistas democrático-burguesas em objetivos estratégicos.
As mudanças no regime político propostas pelo programa se limitam às reformas democrático-burguesas, tais como a supressão do senado federal, mandato de 4 anos, voto para analfabetos e militares de baixa patente. Reformas do sistema judiciário, tributária, laicidade do Estado, erradicação do analfabetismo, etc.
O IV Congresso mantém a formulação direitista do Manifesto de Agosto de 1950 quanto a formação do Exército Nacional Popular de Libertação através da "Democratização das forças armadas e criação do exército, da marinha e da aviação nacional-populares14", da depuração de elementos fascistas das forças armadas. Isto num momento em que as forças armadas brasileiras já se achavam profundamente controladas, com o aprofundamento da subserviência ao imperialismo ianque, em especial através da formação da Escola Superior de Guerra, orientada pelo Pentágono e acordo militar Brasil-USA.
Após o Congresso, a linha de direita ganhará força no interior do Comitê Central e o PCB apoiará a candidatura de Juscelino em 1955. Caminhará para a Declaração de Março de 1958, que sintetiza as posições reformistas do revisionismo do grupo de Prestes na direção do partido, abrindo uma nova fase na história do PCB, a da ruptura com o revisionismo e da reconstrução do Partido Comunista do Brasil enquanto um verdadeiro Partido Comunista Marxista-Leninista.
Notas
1 -  Luis Carlos Prestes, Manifesto de Agosto de 1950.
2 - A Carta Chinesa. A revolução proletária e o revisionismo de Krushov. 1964. Ed. Terra.
3 -  Extraído de José Duarte Um maquinista da história. Luis Momesso. Ed. Oito de Março.
4 - Olga Maranhão. Ganhar Milhões de Mulheres Para o Programa do Partido, Intervenção no IV Congresso do Partido Comunista do Brasil — PCB. 1954.
5 - Programa do Partido Comunista do Brasil, Bandeira de Luta e da Vitória. Informe Apresentado, em Nome do Comitê Central, no IV Congresso do Partido Comunista do Brasil — PCB. Diógenes Arruda. Novembro de 1954.
6 - As informações foram retiradas do livro: Porecatu. A guerrilha que os comunistas esqueceram. Marcelo Oikawa.
7 - Entrevista com Valter Valadares, um dos organizadores do movimento em Trombas e Formoso-GO, publicada em www.anovademocracia.com.br
8 - Exemplo disto é o fato de um detalhado relatório sobre a experiência militar contendo mais de 500 páginas e que fora produzido pelos comandantes da luta armada em Porecatu e entregue a Carlos Mariguella (em nome do Comitê Central). Este relatório desaparecera sem ser alvo de debates e apreciação sistemática pela direção do PCB.
9 - Programa do Partido Comunista do Brasil, Bandeira de Luta e da Vitória. Informe Apresentado, em nome do Comitê Central, no IV Congresso do Partido Comunista do Brasil — PCB. Diógenes Arruda. Novembro de 1954.
10 - Idem
11 - Ibdem
12 - Ibdem
13 - Ibdem
14 - Ibdem