30 de jan. de 2009

Quando ler jornal faz mal ao fígado

"Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz।" (Raul Seixas)


Ao declarar à revista piauí de janeiro que não lia jornal porque sofre de azia, Lula talvez tenha deixado muitos jornalistas perplexos e desapontados [a versão da revista está aqui e a íntegra da entrevista, aqui]. E também intelectuais inconformados. Roberto Damatta, por exemplo, reagiu num típico "pito acadêmico" proclamando, em artigo publicado no Estado de S.Paulo que não se pode ter discernimento da realidade sem a leitura, mas parece tomar uma crítica informal de Lula a um certo jornalismo como se fosse uma aversão à leitura em geral.

Ao repreender Lula porque este parece "estar seguro de que é mesmo possível saber das coisas por tabela e em segunda mão, por meio de olhos alheios", Damatta talvez polemize mais com Schopenhauer do que com o presidente. O célebre filósofo alemão também já havia causado muita celeuma, há mais de século, quando levantou dúvidas acerca da possibilidade de uma correta compreensão da realidade unicamente a partir da leitura, pondo em dúvida a qualidade dos textos, inclusive nos jornais. Questionando aqueles que absolutizam a leitura, Schopenhauer afirma que "assim como a leitura, a mera experiência não pode substituir o pensamento". E para aqueles, como Damatta, que deploram os que não lêem e porque aprenderiam por tabela, o pensador germânico sustenta ainda que "um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor", alertando que "quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar" e que "a nossa cabeça é, durante a leitura, uma arena de pensamentos alheios".

Instrumento de desinformação

Citá-lo não significa defender suas posições históricas, mas adicionar elementos à polêmica atual, quando vivemos na "idade mídia", sob intenso dilúvio informativo, com variadas possibilidades de informação. A celeuma levanta também reflexões interessantes, não só comentários injustos, já que Lula não fez nenhuma apologia da não-leitura, fez uma crítica ao jornalismo atual. E o fez a seu modo, com um raciocínio nada convencional, porque é o raciocínio simples e direto, sintonizado e compreendido pela grande massa da população que, durante toda uma vida, também foi praticamente proibida da leitura. Assim, poderíamos partir do princípio afirmando que, tal como a esmagadora maioria do povo brasileiro, o presidente Lula também não lê jornal. E confessa. As razões são múltiplas e até diferentes em cada caso.

O argumento de que não pode haver discernimento da realidade sem a leitura também pode conter uma injusta soberba acadêmica para com esta grande maioria de brasileiros hoje ainda proibida da leitura de jornais e livros, por razões fundamentalmente sócio-econômicas. É injusta porque ignora ou despreza outras modalidades de discernimento, interpretação e ação transformadora das grandes massas sobre esta mesma realidade.

Segundo estatísticas da Unesco – talvez não sejam as mais atuais –, a taxa de leitura de jornais e revistas no Brasil é inferior à da Bolívia, país mais pobre da América do Sul, mas que acaba de realizar uma façanha que exige reconhecimento de todos nós: a Bolívia foi declarada no dia 20 de dezembro último, pela mesma Unesco, "território livre do analfabetismo". Segundo a agência da ONU, enquanto no Brasil são lidos apenas 27 exemplares de jornais ou revistas por cada grupo de mil leitores, na Bolívia são 29 exemplares. Talvez o que devesse merecer mais a preocupação da academia é o fenômeno da leitura-proibida, um sistema que torna difícil o acesso dos brasileiros à leitura, que não educa leitores, que não democratiza livros – ao invés de uma quase indignada/desconcertada reação diante da evidente crítica feita pelo presidente Lula à qualidade do jornalismo praticado no Brasil.

Será que a informalidade da crítica de Lula – preciosa característica do presidente, sobretudo quando a cultiva no exercício do cargo – a um certo jornalismo – que já chegou a entrar de modo desrespeitoso e arrasador na vida pessoal e familiar do presidente em sua primeira campanha, ao mesmo tempo que preservou obedientemente outros presidentes do mesmo desconforto – não tem razão de ser? Estaria, afinal, acima de críticas, um jornalismo que tem reiteradamente operado mais como desinformação da sociedade do que como a instrumento de comunicação social tal como estabelecido pela Constituição Federal?

Ouça um bom conselho

Tomemos alguns casos recentes de "jornalismo que faz mal ao fígado", alguns já argumentados pelo próprio presidente, para alargarmos este debate.

Quando o governo brasileiro propôs à Unasul, em sua primeira reunião, a formação de um Conselho de Defesa Sul-americano, praticamente todos os jornais estamparam, com fartura, que a proposta havia sido derrotada, rejeitada, um fiasco afinal. Pouco tempo depois, a proposta do Conselho, debatida e examinada com tempo pelos governos, foi oficialmente aprovada e é uma hoje uma realidade. Mais do que isso, tem a importância histórica de ser uma entidade sem a presença dos EUA, que sempre tutelaram a região com ferro e fogo das ditaduras, mas também de representar um esforço coordenado de recuperação da indústria bélica regional, com a relevância intrínseca – ainda mais destacada por vivermos num mundo de sombras, tensões e violência – de promover independência tecnológica setorial.

Afinal, um país sem defesa não tem soberania! Será que os jornais que manchetearam "o fracasso do Conselho", estariam agora dispostos a confessar seu equívoco e reavaliar a informação defeituosa que difundiram? E a esclarecer, com informações verazes, o significado de reorientação estratégica que a nova entidade tem, sobretudo quando os países emergentes foram praticamente obrigados a aceitar a demolição de suas políticas de defesa e de suas indústrias bélicas? Alguém sabe informar se o Procon também cuida de informação com defeito?

A fazenda que não foi vendida

Um segundo caso diz respeito também à família do presidente, sempre alvo de comentários preconceituosos, como de resto os que se lançam também contra o presidente Evo Morales, por ser indígena, ou ao presidente Hugo Chávez, por suas características étnicas e sua origem militar. Refiro-me à "notícia" de suposta compra de uma grande fazenda por um dos filhos do presidente Lula. Até o portal do Centro de Mídia Independente reproduziu a suposta transação, acompanhada de inúmeros comentários insultantes e ofensivos ao presidente Lula.

E mesmo depois que numa pequeníssima nota da Agência Estado o proprietário da referida fazenda esclarecia que já estava cansado de atender jornalistas ao telefone e desmentir cabalmente que tenha vendido o imóvel para o filho do presidente ou para qualquer outro, assim mesmo nem a Central de Mídia Independente dignou-se a corrigir seu erro de difundir versões de um "jornalismo que faz mal para o fígado", mantendo até bem pouco tempo no portal, a falsa notícia da compra da fazenda e a mesma coleção de insultos ao presidente, nem os outros veículos cuidaram de divulgar as declarações do verdadeiro proprietário do imóvel desmentindo a transação. Qual o nome que deve ser dado a este "jornalismo"? Ou melhor, será isto jornalismo? Mas que dá azia... isso dá.

Os profetas do calote

Mais recentemente, O Globo estampou em primeira página manchete sobre a preparação de um calote do Equador contra o Brasil, insinuando que até uma funcionária da Receita Federal brasileira havia sido cedida para trabalhar nesta operação, cujo intuito seria o de evitar que os financiamentos feitos pelo BNDES ao país andino fossem saldados. Gravíssima acusação: o governo cederia uma funcionária para preparar calote contra si. Mas o jornal não publicou o pedido de direito de resposta da funcionária da Receita, informando objetivamente que não tinha prestado qualquer consultoria técnica relativa a financiamentos brasileiros ao Equador, mas sim, à Auditoria da Dívida Privada que está curso naquele país, uma decisão de Estado inscrita na Constituição, tal como consta das Disposições Transitórias de nossa Constituição a realização de uma auditoria da dívida.

No fundo, este é o temor dos banqueiros refletido por este jornalismo que dá azia, um jornalismo que cuida de preservar os indecentes privilégios que o setor financeiro tem no mundo da economia da especulação que despreza o valor do trabalho, transformando o sistema bancário mundial numa bancocracia, ou verdadeiro cassino, como também lembrou o presidente. Há quanto tempo não temos um presidente que chama as coisas pelo verdadeiro nome! Pois bem, especulou-se no jornal, depois no rádio, depois na TV, sobre o calote equatoriano ao Brasil, o jornalismo aziago teve todo o espaço do mundo, consultores ligados aos bancos foram hiper-entrevistados, repetiram-se, anunciaram o caos.

Mas quando, na semana que passou, o governo equatoriano pagou a parcela de 243 milhões de dólares da dívida para com o BNDES, os profetas do calote se calaram, os consultores desapareceram e o Globo não informou aos seus leitores, com a mesma importância que havia dado inicialmente ao tema, que não houve calote. Eis aqui um exemplo de como a leitura de jornal também pode não conduzir a um correto discernimento da realidade...

A retórica do Itamaraty

Muitos exemplos justificam uma maior reflexão e elaboração sobre o que vem a ser um jornalismo de desintegração, aquele que desconsidera ou não informa sobre a implementação de medidas reais, de Estado, visando à integração regional latino-americana. A este jornalismo da desintegração, que também pode causar azia, que decreta editorialmente que a integração é apenas retórica diletante do Itamaraty, deve-se contrapor com um jornalismo de integração, ainda por ser elaborado, mas que tem como sustentação teórica, histórica e política nada menos que a Constituição, na qual está consolidado que a construção de uma integração latino-americana baseada na solidariedade, na economia, na cultura, na informação é um objetivo da República Federativa do Brasil.

Claro, o jornalismo que faz mal ao fígado prefere apenas cultuar e pôr em prática o artigo 166 da Constituição, aquele que sacraliza a gastança com os serviços da dívida, tornando-os mais importante do que merenda escolar, saúde pública, habitação popular, previdência social etc. Contra esta gastança, esta verdadeira esterilização de recursos públicos nos juros da dívida, o jornalismo aziago nada informa. Quando o Brasil realizou com sucesso o teste do Veículo Lançador de Satélites, em dezembro, a mídia não noticiou, ignorando a dimensão deste fato – quando apenas um clube fechado de países tem acesso ao mundo da estratégica economia satelital. Tal como ignorou quando a Venezuela recentemente lançou o satélite Simon Bolívar, preferindo ironizar que Chávez tenha declarado que é um satélite socialista. Sim, será colocado à disposição de países pobres para a cooperação. Onde cabe a ironia? Ambos os casos são de avanço da independência tecnológica.

Aliás, foi necessário um "presidente que não lê", conforme define o acadêmico Damatta, para que o idioma espanhol tenha se transformado em matéria obrigatória nas escolas básicas brasileiras, com indiscutível impulso à integração latino-americana, como também para que o Brasil assumisse a construção da Unila (Universidade da Integração Latina-Americana), assim como a Universidade da África, em Redenção, cidade cearense pioneira na abolição da escravatura. Mas, para o jornalismo da desintegração, tudo isto é apenas retórica itamarateca terceiro-mundista. Mesmo a retirada do dólar nas operações comerciais Brasil-Argentina, a cooperação entre os dois vizinhos na construção de um carro de combate, na indústria aeronáutica e na esfera nuclear, ou a participação brasileira na construção de um gasoduto na Argentina, ou nas obras de infra-estrutura no Peru e Bolívia, na construção da estrada que ligará finalmente o Atlântico ao Oceano, a presença da Embrapa na Venezuela ou no Timor Leste, da Petrobras em Cuba, tudo isto é apenas retórica, farta-se de repetir o jornalismo que faz mal ao fígado. Mas quando aquele chanceler de sobrenome judeu tirou o sapato ante as ordens de um guardinha da alfândega dos EUA, este mesmo jornalismo tangenciou a simbologia do gesto. Como qualificar? Vocação para a vassalagem?

"Territórios livres do analfabetismo"

Muito ainda precisa ser feito para que o Brasil supere seus níveis indigentes de leitura, sobretudo no campo das políticas públicas. É motivo de preocupação a monopolização do setor editorial, sobretudo a do livro didático, bem como sua desnacionalização e controle por editoras estrangeiras muito próximas da Opus Dei. Mas são salutares, e devem ser expandidas fortemente, as políticas públicas já implementadas pelo governo Lula e governos como o do Paraná para assegurar o livro didático público e gratuito aos milhões.

Estamos na era das mudanças e na mudança de eras também quando o país mais pobre da América do Sul, a Bolívia, consegue extirpar a praga do analfabetismo ou quando a Venezuela, também declarada "território livre do analfabetismo" pela Unesco, distribui gratuitamente 1 milhão de exemplares do livro Dom Quixote, de Cervantes, de Os miseráveis, de Vitor Hugo e de Contos, de Machado de Assis, este com uma distribuição gratuita de 300 mil exemplares. Basta informar que a tiragem padrão de livros no Brasil é de apenas 3 mil exemplares. Segundo a Unesco, Cuba chegou a publicar em 1986, 480 milhões de exemplares de livros num ano, quando sua população era de apenas 10 milhões de habitantes. Ainda temos muito que aprender, muito por fazer nesta área.

A dialética do retirante

Mas, esta dívida informativo-cultural despejada pelas elites sobre o povo brasileiro, proibindo-o da leitura, não deve ser mecanicamente dimensionada como um obstáculo intransponível para que os milhões e milhões que não lêem jornal ou qualquer coisa não tenham um discernimento adequado da realidade. Talvez não tenham o "discernimento" que segmentos das elites, econômica ou cultural, gostariam que o povo tivesse, sobretudo para uma escolha eleitoral sintonizada com a linha editorial do jornalismo que faz mal ao fígado. Realmente, a maioria do povo, tal como o presidente Lula, na sua dialética de retirante, foi obrigada a desenvolver uma interpretação realista do mundo para salvar a própria vida. Lula declarou recentemente que quando um nordestino que nem ele consegue vencer a pena de morte da elevada taxa de mortalidade infantil no nordeste, "torna-se um encrenqueiro".

Para os que admiram o fato de que ele tenha levado 13 dias de viagem num pau-de-arara para ir de Garanhuns a São Paulo, dormindo ao relento e cozinhando com as águas barrentas do Velho Chico, ele lembrou que seus tios, que também não liam jornal, já tinham feito o mesmo percurso, mas em seis meses, porque o fizeram a pé! São atos heróicos que apontam para uma outra leitura do mundo, a partir da dialética do retirante, tão capaz de permitir um real discernimento da vida, como capaz de permitir que salvassem suas próprias vidas, e permitindo-lhes progredir na mobilidade social, superar os estágios de sobrevivência vegetativa quase animalesca a que estavam condenados no nordeste sem água, sem terra, sem trabalho e sem nada! E sem jornal para ler...

Talvez alguns círculos acadêmicos se irritem ainda mais com esta abordagem e a condenem como elogio à não-leitura. Mas, o que se trata de argumentar aqui é que para aqueles milhões de brasileiros condenados à não-leitura, por razões do elitismo sócio-econômico, não há outra saída senão inventar uma forma nova de ler o mundo, de caminhar na vida, de discernir, sim, a realidade e de uma forma tão eficiente que lhes permitiu, no caso de Lula, sair da indigência do sertão, preparar a si próprio para escapar da pena de morte da fome, preparar coletivamente a classe trabalhadora para fazer política, construir instrumentos como o PT e a CUT para viabilizar o protagonismo dos próprios trabalhadores na política e alcançar a Presidência da República.

E o fez não exatamente a partir da leitura de jornal, mas informando-se profundamente sobre o funcionamento da sociedade. Afinal, nem sempre ler jornal é informar-se. Em muitos casos, como vimos acima, é exatamente o contrário.A provocação de Schopenhauer ainda está bailando por aí. E ele acrescenta: "Há eruditos que ficam burros de tanto ler."

O rentista e o faxineiro

Episódio saboroso para refletirmos é o caso Maldoff, quando o megaespeculador, ex-presidente da Bolsa Nasdaq, baseada em sua credibilidade neste mundo da economia virtual, arquitetou uma fraude de 50 bilhões de dólares que lesou também rentistas brasileiros. Esta minoria de brasileiros, experimentados na arte de ganhar dinheiro sem produzir um prego ou sem mesmo trabalhar, escolados na evasão de divisas para paraísos fiscais, provavelmente não imaginavam que um dos seus ícones do mundo financista os lesaria. Pois bem, nem toda a leitura do mundo – ou talvez tenha sido exatamente excesso de certa leitura – os salvou do rombo. Talvez não tivessem o correto discernimento de que a economia especulativa era insustentável, que o castelo de cartas ia cair e continua caindo...

Enquanto os poucos rentistas que evadem divisas para o exterior estão sendo lesados por "profissionais" mais experimentados, o faxineiro do Aeroporto de Brasília, que achou um envelope de milhares de dólares no lixo e o devolveu ao dono, nos oferece um fortíssimo exemplo para reflexão. Ele, que também não lê jornais, tem uma leitura do mundo, um discernimento da realidade, que o leva a ser ético, limpo e honesto, com o dinheiro alheio, a despeito da avalanche de exemplos negativos que recebe das elites, sobretudo de financistas.

Montanhas de preconceitos elitistas também foram despejadas contra Evo Morales, o valente presidente de uma Bolívia que sai das trevas do neoliberalismo. Pois poucos sabem que Evo viveu, quando criança, em Tucumã, na Argentina, onde sua família tentou sobreviver trabalhando no corte de cana. E o menino Evo também foi reprovado na escola primária argentina, com um veredicto que deveria ser amplamente discutido hoje: os pedagogos argentinos chegaram à conclusão que Evo era inapto para o mundo letrado. Uma condenação que não levava em consideração sua condição de indígena, sua noção de tempo, sua postura frente à natureza, seu comportamento destoante das relações sociais de uma sociedade consumista e individualista, as dificuldades para pensar e escrever no idioma espanhol, que não era o seu idioma originário, a carga do preconceito e humilhações que sofreu por parte de seus colegas não-indígenas...

Hoje, o menino que havia sido condenado como incapaz para o letramento é o presidente da República da Bolívia e foi o mandatário que transformou a economia mais débil da América do Sul em "território livre do analfabetismo"! Como, então, afirmar soberbamente, de modo absoluto e mecânico, sem considerar as dialéticas do retirante Lula e do indígena Evo, que sem leitura é impossível haver o discernimento da realidade? Aliás, o próprio método de alfabetização cubano, aplicado na Venezuela, na Bolívia, em indígenas da Nova Zelândia ou no Haiti, considera que os educandos já têm acesso a um conjunto de informações que vão decodificando deste mundo complexo da idade-mídia e têm uma capacidade de discernimento, sim, razão pela qual é possível reduzir drasticamente o tempo de alfabetização, sendo o tempo, segundo Marx, a "matéria-prima mais preciosa da humanidade".

Jornalismo público e cidadão

Foi exatamente o presidente que teve menos acesso à leitura o que teve a grande sensibilidade de ver que boa parte da programação da televisão brasileira é simplesmente degradante, embrutecedora, animalizante. E criou a TV Brasil, que enfrenta seus desafios para expandir-se, consolidar-se, qualificar-se e caminha positivamente, saldando um pouco daquela imensa dívida informativo-cultural que despejou contra os brasileiros, sobre aqueles proibidos da leitura. Foi ainda o presidente que não lê que trouxe de volta, para o bem-estar da civilização, o ensino obrigatório da música e da filosofia nas escolas, abolido antes por presidentes que devoravam livros e... também direitos humanos. Villa-Lobos e Sócrates agradecem.

Enquanto isto, dos rigorosos críticos da academia jamais se ouviu um queixume sobre, por exemplo, o fato da própria Constituição de 1988 não ser acessível ao povo, não só materialmente, mas também na sua linguagem, bastante incompreensível para a grande maioria proibida da leitura. No entanto, apesar do povo jamais ter tido acesso à Constituição, há uma lei que estabelece que o conhecimento das leis é obrigatório pelo cidadão, que a ninguém é dado o direito de desconhecer a lei. Enquanto o presidente que não lê está criando instrumentos para reduzir o desequilíbrio informativo no país, além de expandir a universidade pública e multiplicar os institutos tecnológicos, ainda não se ouviu da academia uma proposta concreta para reverter este absurdo de termos uma Constituição desconhecida, de conhecimento exigido a todo um povo que não a pode ler.

Quem sabe não é chegada a hora, diante de tantas identidades entre Lula e Evo, que a decisão do presidente da Bolívia de criar um jornal público a ser editado aos milhões, com distribuição gratuita ou acessível às grandes massas pobres bolivianas, que agora já sabem ler, fosse também implementada aqui no Brasil? Sempre lembrando que o Brasil tem a maior economia da região, tem uma capacidade ociosa crônica de 50% em sua indústria gráfica, ao mesmo tempo em que tem um povo sem qualquer acesso a jornal.

É bem provável que os círculos acadêmicos que tentaram identificar uma crítica de Lula a um certo tipo de jornalismo como uma elegia à não-leitura não tenham agora razões para não apoiar a estruturação de um jornal popular público, de distribuição gratuita e massiva, aos milhões e milhões, aproveitando esta indústria gráfica semi-paralisada e os contingentes de jornalistas e escritores desempregados e sem ter onde escrever. Ao criar a Voz do Brasil, Vargas permitiu que milhões de brasileiros sem acesso a jornal e não alfabetizados tivessem acesso a informações, sobretudo alguma presença dos poderes públicos nos grotões, numa verdadeira ação radiofônica de integração nacional. Como sabemos, ainda hoje a Voz do Brasil é a única fonte de acesso de milhões de brasileiros espalhados por todos os grotões sociais, e que não lêem jornais, a informações que a maioria das rádios não difunde, a não ser naquele horário obrigatório. Eis por que a ditadura midiático-financeira trabalha para eliminar a Voz do Brasil.

Não será hora também de se criar um jornal público, popular e gratuito, livre do controle editorial da bancocracia, considerando que o mercado, por si só, dificilmente resolverá o problema de eliminar as várias proibições sócio-econômicas à leitura ainda vigentes? Obstáculos à democratização da leitura de jornal sempre haverá। Monteiro Lobato nos conta um deles. Quando, na década de 1940, procurou os poderosos proprietários de um dos maiores jornais paulistas, propondo-lhes que este diário se engajasse numa campanha para erradicar o analfabetismo, obteve uma resposta desconcertante, mas sociologicamente auto-explicativa. "Ô Monteiro, mas se todos aprenderem a ler, quem é que vai trabalhar na enxada?" Estamos em plena mudança de eras. Aquele que, para oligarquia midiática, deveria estar na enxada, está no Palácio do Planalto. Não lê jornal, mas é um dos brasileiros mais bem informados.

Por Beto अल्मीडा।

Jornalista, presidente da TV Comunitária de Brasília

10 de jan. de 2009

A causa palestina é nossa

O que vinha sendo planejado há meses, como estratégia eleitoral do primeiro-ministro Ehud Olmert, virou, com respaldo da mídia ocidental e seus “especialistas em Oriente Médio", uma compreensível reação aos foguetes lançados por militantes do Hamas contra território israelense. Trata-se de pura falácia, propaganda ideológica barata que trata uma ação de extermínio como se fosse o confronto de forças simétricas.

A ofensiva militar ao território de Gaza obedeceu a um cálculo frio de custos e benefícios. Os mais de 500 mortos até agora, sendo 87 crianças, tiveram seus destinos traçados em outubro de 2008, quando o partido governista, submeteu à apreciação do Parlamento sua dissolução e a proposta de eleições antecipadas.

Além de uma disputa parlamentar acirrada, o ataque à Faixa de Gaza é um recado ao futuro governo estadunidense. Para as lideranças israelenses não há como sobreviver sem um projeto expansionista. A sorte dos dois é indissociável da manutenção da barbárie no Oriente Médio. Sionismo e imperialismo são as duas faces de uma mesma moeda. Obama deve assimilar isso como ensinamento da Torá. Hillary lhe pode servir como excelente guia.

A hegemonia política do fundamentalismo sionista é responsável pelo emprego de métodos de guerra que são comparáveis aos utilizados por outras potências coloniais, ao longo da história, contra a população civil que resistiu à opressão. Transformar o terrorismo de Estado em política aceitável tem sido a tarefa do jornalismo ocidental. Um trabalho tão recorrente quanto a punição coletiva de um povo se mostra aceitável para as “boas consciências” ocidentais.

Mais uma vez o governo israelense, com total apoio dos Estados Unidos, pratica uma aventura bárbara e criminosa, ditada por interesses e conveniências estratégicas. Conta para isso com a cumplicidade covarde das ditaduras e monarquias árabes. As demais potências, como já destacou José Arbex Jr, em artigo para Caros Amigos, “mesmo tendo seus interesses contrariados pela política expansionista da aliança Washington/ Tel Aviv, não têm vontade política nem se sentem com força para impor qualquer limite legal"

Como já tivemos oportunidade de escrever aqui mesmo ("O Holocausto Palestino" - 08/02/2008) desde o massacre no Sul do Líbano, em 82, passando pelo sufocamento de duas intifadas, não é o terrorismo de fanáticos que Israel persegue. Na região conflagrada, o movimento palestino era o mais progressista projeto de resistência, o mais prenhe de valores da modernidade. O mais rico em termos culturais. As pedras dos jovens árabes defenderam da insanidade uma herança cara ao Ocidente. Querer reduzi-los ao Hamas e outros grupos de motivação religiosa é, com apoio logístico da mídia internacional, distorcer a realidade para ocultar contradições mais profundas. Mentir com insistência até que a inverdade assuma ares de realidade inconteste"

Para o historiador Oswaldo Coggiolla “na Faixa de Gaza são visíveis as razões para a resistência dos palestinos. Com uma população de mais de 1 milhão de habitantes, a Faixa de Gaza, chamada de "Soweto de Israel", não é um estado e não foi anexada a Israel. As forças de defesa de Israel controlam toda a fronteira. Se os moradores de Gaza quiserem sair dessa área, precisam obter uma permissão dos israelenses. Muitos palestinos - nascidos a partir de 1967 - nunca saíram da faixa, uma tripa de terra situada entre o deserto de Neguev e o mar Mediterrâneo, que mede 46 km de comprimento e 10 km de largura, aproximadamente"

Em um contexto dessa natureza qual a única forma possível de ação a um povo destituído de qualquer direito? Sem qualquer possibilidade de ser reconduzido a uma unidade territorial que nem de longe lembre a idéia de Estado?

Quando o presidente Shimon Peres rejeita a possibilidade de trégua e diz que o Hamas precisa de “uma lição real”, reafirmando que não tem qualquer interesse em reocupar a Faixa de Gaza, vem à memória a famosa fala de Itzak Rabin na Guerra dos Seis Dias, como comandante do Exército:” Não temos o objetivo de anexar qualquer terreno palestino, sírio ou egípcio. É o caso de se perguntar qual a lição real a ser extraída? A quem interessava que o conflito israelense-palestino, que tinha um caráter nacional, se transformasse em conflito religioso que atinge todo o mundo mulçumano?

Oslo e Mapa da Estrada foram elaborações frustradas pelo extremismo sionista. Em novembro do ano passado, durante a Conferência de Annapolis (EUA), o presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas, e o primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert, concordaram em realizar um esforço negociador para alcançar um acordo até o final de 2008. Em janeiro de 2009, agentes da ONU informam que a ofensiva terrestre israelense piorou a crise humanitária em Gaza.

Ou assumimos a causa palestina como nossa ou assumimos o papel de integrantes de uma força de ocupação que nega nossos melhores discursos. Não há meio-termo.



Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.

5 de jan. de 2009

A mídia e o conflito na faixa de Gaza

A mídia e o conflito na faixa de Gaza

Doze regras de redação da Grande Mídia Internacional quando a noticia é do Oriente Médio:

1) No Oriente Médio são sempre os árabes que atacam primeiro e sempre Israel que se defende. Esta defesa chama-se represália.

2) Os árabes, palestinos ou libaneses não têm o direito de matar civis. Isso se chama “terrorismo” .

3) Israel tem o direito de matar civis. Isso se chama “legitima defesa”.

4) Quando Israel mata civis em massa, as potencias ocidentais pedem que seja mais comedida. Isso se chama “Reação da Comunidade Internacional” .

5) Os palestinos e os libaneses não têm o direito de capturar soldados de Israel dentro de instalações militares com sentinelas e postos de combate. Isto se chama “Seqüestro de pessoas indefesas.”

6) Israel tem o direito de seqüestrar a qualquer hora e em qualquer lugar quantos palestinos e libaneses desejar. Atualmente são mais de 10 mil, 300 dos quais são crianças e mil são mulheres. Não é necessária qualquer prova de culpabilidade. Israel tem o direito de manter seqüestrados presos indefinidamente, mesmo que sejam autoridades eleitas democraticamente pelos palestinos. Isto se chama “Prisão de terroristas” .

7) Quando se menciona a palavra “Hezbollah”, é obrigatória a mesma frase conter a expressão “apoiado e financiado pela Síria e pelo Irã”.

8) Quando se menciona “Israel”, é proibida qualquer menção à expressão “apoiada e financiada pelos EUA”. Isto pode dar a impressão de que o conflito é desigual e que Israel não está em perigo de existência.

9) Quando se referir a Israel, são proibidas as expressões “Territórios ocupados”, “Resoluções da ONU”, “Violações dos Direitos Humanos” ou “Convenção de Genebra”.

10) Tanto os palestinos quanto os libaneses são sempre “covardes”, que se escondem entre a população civil, que “não os quer”. Se eles dormem em suas casas, com suas famílias, a isso se dá o nome de “Covardia”. Israel tem o direito de aniquilar com bombas e misseis os bairros onde eles estão dormindo. Isso se chama Ação Cirúrgica de Alta Precisão”.

11) Os israelenses falam melhor o inglês, o francês, o espanhol e o português que os árabes. Por isso eles e os que os apóiam devem ser mais entrevistados e ter mais oportunidades do que os árabes para explicar as presentes Regras de Redação (de 1 a 10) ao grande público. Isso se chama “Neutralidade jornalística” .

12) Todas as pessoas que não estão de acordo com as Regras de Redação acima expostas são “Terroristas anti-semitas de Alta Periculosidade”.

(Texto francês anônimo, enviado por leitor ao Blog da Carta Maior)