9 de ago. de 2010

Tragédia das chuvas: quase nada foi feito por Niterói

Desastre natural, que causou a morte de 167 pessoas e deixou mais de 8 mil desabrigados, completa quatro meses e o drama ainda é latente em diversos locais


Na noite de 5 de abril, uma frente fria vinda do sul do País encontrou uma massa de ar quente e ventos que sopravam do mar para o continente no litoral do Rio de Janeiro. Essas foram as condições climáticas que formaram o temporal que, por mais de 36 horas, atingiu o Estado do Rio. Durante toda a noite, um volume de água não visto nas últimas décadas foi suficiente para assolar a capital e as cidades vizinhas. Ruas alagadas e solos encharcados formaram um cenário de caos.



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Mais de 300 pontos de deslizamento e 167 vítimas fatais tornaram Niterói a cidade mais afetada pela tragédia em todo o estado. Quatro meses depois, o drama ainda é latente e a cidade ainda aguarda os investimentos prometidos. Comunidades seguem devastadas e áreas de deslizamento ainda demandam intervenções. Enquanto projetos habitacionais são planejados para tentar sanar a situação dos desabrigados, cerca de 150 famílias, vivendo em abrigos oficiais, ainda esperam um desfecho para o episódio que marcou a história de Niterói.



A tragédia das chuvas completou quatro meses no último dia 5 e Niterói ainda tenta se recuperar das perdas ocasionadas por aquela que é considerada a maior tragédia natural de sua história. Foram 167 mortos e 318 feridos, segundo informações da Secretaria Estadual de Saúde e Defesa Civil. O número de desabrigados também revela a intensidade do drama vivido pela cidade. Ao todo, mais de 8 mil pessoas perderam suas casas devido a deslizamentos e inundações. Deste total, cerca de 500 permanecem nos dois abrigos oficiais da Prefeitura e tentam reconstruir suas vidas.

Tragédia nos quatro cantos da cidade

Pela cidade, o cenário ainda remete às chuvas de abril, com pontos de deslizamento bastante evidentes. Segundo a Secretaria Estadual de Obras, bairros como Badu, Boa Viagem, Cachoeiras, Cantagalo, Charitas, Cubando, Engenhoca e Fonseca vão precisar de intervenções. O que demonstra que, da Zona Norte à Zona Sul, toda a cidade foi castigada.

Moradora da Rua Jornalista Moacyr Padilha, no Ingá, a estudante Camila dos Santos Ribeiro, de 19 anos, é exemplo de como as chuvas afetaram moradores de todas as classes sociais. Acostumada a morar em uma ampla casa de dois andares, a família dela está se vendo obrigada a mudar, já que o imóvel foi comprometido pelas chuvas. “Minha casa está interditada, mas continuamos morando nela até que a obra em uma outra casa que conseguimos comprar fique pronta. Até lá, fico com medo sempre que chove. Mas, pelo menos, já temos para onde ir. Pior são as pessoas que não têm condições de comprar ou alugar um novo imóvel”, relata.

Para o representante do Comitê de Solidariedade e Mobilização das Favelas e Comunidades Atingidas pelas Chuvas, Thiago Melo, é importante que toda a cidade abrace a causa das vítimas das chuvas. “É válido frisar que toda a cidade foi afetada. O problema das chuvas é de toda a população e não pode ser uma luta apenas dos desabrigados”, acredita.

Bumba Apesar da destruição ter sido ampla, apenas dois dias após o início das chuvas, as proporções da tragédia atingiram níveis alarmantes. Na noite de 7 de abril, sucessivas explosões foram ouvidas na localidade de Viçoso Jardim. Em poucos instantes, 40 casas da comunidade do Morro do Bumba haviam sido varridas pela terra, dando lugar a uma montanha de lama e lixo. As casas haviam sido erguidas sobre um lixão desativado. Com as chuvas, a movimentação do solo resultou em reações químicas que fizeram todo o morro ruir e soterrar dezenas de pessoas. Ao longo dos dias, em buscas incessantes o Corpo de Bombeiros encontrou 47 corpos.

Nem todos foram encontrados

Segundo o diretor-geral do Instituto Médico-Legal (IML) do Estado do Rio de Janeiro, Frank Perlini, todos os trabalhos de identificação de corpos de vítimas das chuvas de abril já foram inteiramente concluídos. A grande maioria foi realizada através de exames papiloscópicos – ou seja, através de análise de digitais – sem que houvesse grande demanda para a realização de análises de DNA.

Mas, para alguns familiares, o drama ainda não chegou ao fim. A dor de perder um ou mais familiares foi somada à angústia de não poder sepultar seus corpos. Esse é o caso do representante de vendas Luciano Araújo, de 31 anos, que perdeu a mãe no deslizamento do Morro do Bumba, em Viçoso Jardim. O corpo de Margarida Rita da Silva, de 51, jamais foi encontrado. “As buscas chegaram a ser retomadas em maio, mas foram encerradas. Já perdi as esperanças de enterrar minha mãe e agora estou contratando um advogado para cuidar dessa situação. Quero que seja feita justiça”, declara.
A família de Jorsânia de Oliveira, 53 anos, também não conseguiu um desfecho para a triste perda de 12 familiares. O corpo da dona de casa não consta na relação dos mortos. Somente um braço foi encontrado – e sepultado sem que a família tomasse conhecimento. “Descobrimos que encontraram o braço da minha mãe quando procurei o IML. Havia um atestado de que haviam reconhecido o membro, que tinha sido sepultado no Cemitério do Maruí. O corpo ninguém encontrou”, conta a filha de Josânia, Ana Cláudia, que ainda tenta conseguir o atestado de óbito da mãe.

Além dos corpos de Margarida e Jorsânia, outros sete continuariam desaparecidos, segundo a Associação de Vítimas do Morro do Bumba. A Secretaria Estadual de Saúde e Defesa Civil, à qual o Corpo de Bombeiros está subordinado, informa que, apesar de findas as buscas, continua disponível para atender familiares que tenham indicações de desaparecidos. Quanto aos atestados de óbito, o Tribunal de Justiça do Rio diz que os familiares devem procurar a Prefeitura para orientações sobre como proceder para sua emissão.

Desabrigados sem informações

Horas após o início das chuvas, o número de desabrigados na cidade começou a subir de maneira vertiginosa. À medida que as casas eram destruídas, famílias inteiras começaram a ocupar escolas e igrejas por toda a cidade, locais onde permaneceram durante um mês. Depois disso, aquelas que não conseguiram voltar para suas casas ou encontrar outros abrigos foram removidas aos abrigos instituídos pela Prefeitura em dois terrenos do Exército, que foram desapropriados pelo Governo do Estado com essa finalidade.

Apesar da promessa de manter os abrigos até que fossem construídas habitações populares, a permanência nos abrigos se tornou incerta e já houve ameaças de “despejo”. Em julho, a Prefeitura de Niterói informou que deixaria de manter os espaços. A alegação era de que famílias abrigadas já estavam recebendo o benefício Aluguel Social e, por isso, não poderiam mais permanecer nos abrigos.

“Quando nos trouxeram para cá disseram que ficaríamos por um ano enquanto nossas casas são reconstruídas, mas a Prefeitura não fala mais nada”, relata o segurança Clóvis de Castro, de 42 anos, que diz não ter sido beneficiado com o Aluguel Social.

“As pessoas têm sonhos, têm vida, têm dignidade, mas às vezes a oportunidade falta e ficar em um abrigo sem qualquer posicionamento sobre quando teremos nossas casas de volta só cria revolta”, afirma a dona de casa Lúcia Penha, de 49 anos, que desde maio vive com a família no 3º Batalhão de Infantaria (BI).

Segundo Thiago Melo, o Comitê de Solidariedade conseguiu na Justiça, com ajuda da Defensoria Pública uma liminar que garante a manutenção dos abrigos. Agora, a luta é pela manutenção da dignidade das vítimas. “Queremos ajudar essas pessoas a viverem de maneira digna e não confinadas e sendo tratadas de maneira desumana. Toda a demanda deles ainda está subestimada”, afirma.

A Prefeitura de Niterói informa que a manutenção dos abrigos está garantida enquanto vigorar a determinação judicial.

Orgulho niteroiense também foi abalado

Além de uma catástrofe natural, as chuvas de abril representaram uma tragédia política para Niterói. Essa é a opinião do cientista político e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Cláudio Gurgel. Para ele, todos os altos índices de qualidade de vida foram amplamente questionados depois da tragédia.

“Era nessa qualidade de vida em que se apoiava a autoestima dos niteroienses, resgatada após décadas de investimentos. Era uma cidade arquitetonicamente rica, com toda a estrutura necessária e fácil de se viver. De repente, o crédito por essa qualidade de vida foi abalado e a Prefeitura, que acreditávamos ser tão atuante, se mostrou frágil”, opina.

Ainda de acordo com Gurgel, a tragédia evidenciou problemas sérios problemas sociais e políticos de Niterói.  “O principal deles foi a distribuição da pobreza, que não se restringe às áreas afastadas da cidade. Prova disso foi a quantidade de mortos e desabrigados em todas a cidade e não só em regiões consideradas carentes”.

O cientista político defende que a municipalidade volte suas atenções para a questão da pobreza. Essa, seria a única forma de resgatar o orgulho da população.  “Niterói vai voltar a se orgulhar a partir das respostas aos problemas dos mais pobres. Precisamos dignificar a vida dessas pessoas”.

Vítimas relatam seus dramas

“Muitas áreas aqui nem foram mexidas pela Prefeitura, desde as chuvas, apesar de ficarmos pedindo o serviço. Parece que a obrigação virou favor. Não vieram técnicos realizar vistorias, não fizeram contenções de encostas”. Gustavo Santana, diretor da Associação de Moradores do Beltrão

“Me inscrevi no Aluguel Social três vezes e ainda não fui atendido. Já fui à Viradouro, ao Cras, à Prefeitura e nada. Estou fazendo obras de reforço na minha casa para que fique mais segura, já que não tenho outro lugar para morar.” Antônio Ramos, 51, porteiro, não consegue receber o aluguel
“Estamos perdidos e sem informações. Nenhuma autoridade nos dá posicionamento sobre o que está acontecendo. Fico sabendo das coisas pelo boca a boca ou pela imprensa. Nunca fizeram uma reunião com a comunidade”. Norma Sueli Pacheco, presidente da Associação de Moradores Bumba

“Saí da minha casa em Teixeira quando ouvi estalos e rachaduras apareceram. O que mais espero é uma casa segura, mas se não estiver pronta e eu tiver que sair do abrigo, o jeito vai ser construir outra no morro.” Clóvis de Castro, 42, segurança abrigado no Batalhão de Infantaria

“Eu morava na Alameda Maria, em Teixeira de Freitas, não morava em favela. Conquistei a casa onde morava e agora estou aqui, na humilhação. As pessoas têm sonhos, têm vida, têm dignidade” Lúcia Penha, 49, dona de casa, abrigada no Batalhão de Infantaria



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