20 de ago. de 2010

Política x sociedade: o paradoxo da mulher em Moçambique

Lídia Sitoe e Ana Rita Sithole são moçambicanas com condições de vida completamente diferentes. Por meio de suas histórias, é possível delinear o paradoxo vivido em Moçambique quando o assunto é a situação da mulher na política e na sociedade. Enquanto algumas poucas ocupam altos cargos oficiais, a grande maioria é refém de uma estrutura machista, que as priva da educação. Resultado: 70% dos 11 milhões vivendo em extrema pobreza no país são do gênero feminino.

6h15 da manhã. O sol começa a nascer em Changalane, pequeno vilarejo a 80 km de Maputo, capital nacional de Moçambique, mas Lídia, de 60 anos, já está acordada a mais de uma hora trabalhando em sua “machamba” – maneira como moçambicanos nomeiam suas próprias plantações. A moradora da região aprendeu o ofício aos 12 anos, quando passou a cuidar das tarefas de casa ao abandonar de vez a escola primária. 

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 Maioria das moçambicanas que vive no campo está em situação de extrema pobreza, segundo dados oficiais 

“Era difícil estudar quando eu era nova porque meus pais falavam todo o tempo que minha obrigação mesmo era ajudar minha mãe a cozinhar, lavar roupa e trabalhar na machamba para conseguirmos ter comida suficiente para todos. Por isso, abandonei a escola, não havia tempo de me dedicar a aprender”, conta em seu idioma local, o shangana.

Meio-dia. A sessão da Assembléia da República termina e a deputada Ana Rita Sithole, já em seu quinto mandato, vai almoçar ao som de chamadas no celular de colegas da oposição se desculpando pelas discussões acaloradas do dia. Política experiente, atuando na área desde a luta pela independência de Moçambique, conquistada em 1975, a deputada nunca leva para o lado pessoal os debates.

“A maior conquista feminina nos últimos anos foi a participação em órgãos onde decisões são tomadas, em todos os níveis. Antes, os homens conseguiam evitar que denunciássemos o que estava acontecendo de errado, mas hoje as mulheres têm mais voz para dizer o que pensam e propor soluções para a melhoria de suas condições de vida”, afirma.
Se, por um lado, a presença feminina em cargos de liderança do governo em Moçambique é uma das maiores do mundo, por outro, as mulheres ainda sofrem com uma estrutura social repressiva, na qual a liberdade de escolha e o direito à educação são garantidos prioritariamente aos rapazes.

Presença política

Enquanto no Brasil a presença de mulheres no parlamento não passa de 10%, a Assembleia da República Moçambicana possui um total de 40% de representatividade feminina. Pela primeira vez, inclusive, o órgão é presidido por uma mulher, Verônica Macamo, respeitada entre os colegas e símbolo da luta pela emancipação feminina no país. Nos ministérios, cerca de um terço entre ministros e vice-ministros são dirigidos por mulheres.

A presença da mulher na política moçambicana tem origem distante, juntamente ao nascimento de Moçambique como uma nação independente de Portugal. Os movimentos de libertação que chegaram ao auge nos anos 1970, culminando na oficialização da independência do país e criação da República de Moçambique, possuíam o apoio geral da população e a trazia para perto da luta. 

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Inspirados pela linha de pensamento socialista, os líderes inconfidentes pregavam a igualdade entre todos, sem discriminação quanto à idade, cor, tribo, religião e sexo. Nesse contexto, por exemplo, as mulheres possuíam sua própria facção dentro da Frelimo (Frente de Libertação Moçambicana) – partido atualmente no poder –, a chamada OMM (Organização das Mulheres Moçambicanas).

“Tivemos dirigente militares mulheres durante as lutas. Temos heroínas vivas que foram do exército, dirigentes. A OMM criou cada vez mais condições para envolver a mulher nas tarefas de governança nacional, independentemente das convicções políticas de cada uma”, conta Sithole.

Trinta e cinco anos depois da conquista da independência e 20 anos após o tratado de paz que colocou fim à guerra civil que estourou no país após a saída dos colonizadores portugueses, a representatividade das mulheres na política ainda pode ser fortemente observada.

Parte disso se deve ao cunho histórico do envolvimento feminino nas mobilizações populares, mas políticas internas contribuem, como o estabelecimento de cotas para mulheres dentro de partidos como meio de garantir uma percentagem mínima presente desse grupo. Essa medida foi uma das formas encontradas para combater o machismo ainda parte do meio político em Moçambique.

“Já senti muita discriminação nos meus 20 anos como deputada, porque para os cargos de chefia, de tomada de decisão, dificilmente uma mulher é indicada. É uma experiência nova ter a presidente da assembléia uma mulher. Mas creio que isso não é condição suficiente, porque os homens fazem barreiras”, opina Sithole.

A ideia de que toda mulher enfrentará mais dificuldades na política por causa de preconceitos antigos não é partilhada por todas. Maria Elias Jonas, atual governadora da província de Maputo, a mais importante econômica e politicamente no país, conta que nunca experimentou discriminação em sua carreira, porque vê as coisas de outra forma.

“Nunca sofri preconceito por ser mulher de maneira alguma. Acredito que isso se deve também porque nunca diferenciei homem de mulher, então nunca vi esse tipo de discriminação contra mim”, diz.

Segundo ela, a participação feminina na política é fundamental para a igualdade de gênero, uma vez que, historicamente, foram as mulheres que lutaram e melhoraram sua própria situação. Na economia, na sociedade e na política, “todas as conquistas das mulheres foram por méritos próprios”.

A Coordenação para a Mulher no Desenvolvimento do Fórum da Mulher, organização não-governamental muito respeitada no meio, por outro lado, afirma que é importante ter mulheres no poder, mas isso não é suficiente. Acima de tudo, segundo eles, as representantes femininas devem ter como pauta principal a questão de igualdade de gênero e devem “acima de tudo, lembrar-se de que são mulheres e, como tal, devem ser representantes das necessidades e das expectativas das outras mulheres que não tem oportunidade de se fazerem ouvir”.

Desigualdade de gênero

O grande paradoxo da intensa participação política feminina em Moçambique é a situação desprivilegiada em que se encontram grande parte das mulheres comuns no país em suas vidas cotidianas.

As maiores desigualdades de gênero são observadas nas zonas rurais mais afastadas da capital do país, Maputo. Entre as 7,5 milhões de mulheres morando nessas áreas, mais de seis milhões são analfabetas. Além disso, cerca de 90% dos trabalhadores agrícolas são mulheres, mas 85% das explorações agro-pecuárias são controladas por homens.  
O analfabetismo, que assola 52% da população de 22 milhões de moçambicanos, se faz muito maior entre as mulheres também, atingindo uma taxa de 67% entre elas, enquanto entre os homens a porcentagem é de 36%. Como consequência da falta de base educacional, 70% dos 11 milhões vivendo em extrema pobreza no país são do gênero feminino.

O vice-ministro da Educação Arlindo Chilundu explica que a desigualdade de gênero nos números em relação à educação se deve, principalmente, por fatores culturais e tradicionais, que influenciam na vida das famílias e na formação das meninas.

“A participação de meninos e meninas é igual na pré-escola, mas isso muda na puberdade. A partir daí, muitas meninas casam e têm filhos muito cedo, abdicando da educação para cuidar da família. Outras vezes, os próprios pais querem ter a menina dentro de casa para ajudar nas tarefas domésticas ou a coloca para trabalhar na agricultura”, esclarece.

No último caso, segundo ele, as meninas são vistas como força de trabalho. Pela tradição de pouca valorização da educação feminina, quem vai à escola são os rapazes, enquanto as filhas ficam ajudando dentro de casa e na agricultura.

Iniciativas

Por conta disso, muitas organizações não-governamentais buscam se voltar justamente à ideia básica de garantir a educação das meninas. A Fundação Lurdes Mutola, por exemplo, criada pela única atleta moçambicana campeã olímpica Lurdes Mutola, dá bolsas de estudos para aquelas estudantes que se destacam nos esportes e implementa programas nas zonas rurais para tentar amenizar o problema.

“É na educação onde começam as desigualdades. Dar acesso à escola traz uma força mais real à mulher moçambicana. É bem diferente da força falsa de um governo com grande representatividade feminina, o que tem um significado insignificante na realidade do país”, declara o diretor adjunto da ONG, Gabriel Fossati-Bellani.

Segundo ele, as meninas que completam a escola primária – o que corresponderia ao ensino fundamental brasileiro – se formam sem nenhuma perspectiva econômica e social, se voltando novamente à família. Por isso, aquelas que são tocadas pelo apoio de organizações da área passam a ter a escolha de se dedicar ao que a tradição demanda ou ir atrás de novas oportunidades de vida.

  

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