6 de out. de 2007

Livros didáticos distorcem história do país

Livros didáticos distorcem história do país
Antônio Gois

A história do Brasil ensinada para crianças e adolescentes nos bancos escolares e livros didáticos pode não ser a mesma que os principais historiadores contemporâneos conhecem.

Para historiadores ouvidos pela Folha, conteúdos desatualizados em relação em pesquisas acadêmicas e vícios como visões "engajadas" da história são comumente encontrados em livros didáticos e disseminados em sala de aula.

Para os historiador da UFRJ ( Universidade Federal do Rio de Janeiro) Manolo Garcia Florentino, autor de livros e pesquisas sobre o Brasil colonial, há uma praga do "politicamente correto" nos livros didáticos que, muitas vezes, acaba provocando efeito inverso ao pretendido pelo autor.

Florentino que ganhou prêmio do Arquivo Nacional de Pesquisa por suas pesquisas sobre escravidão no Brasil, cita como exemplo mais claro disso a forma como o negro é tratado em livros didáticos. Segundo ele, os livros, mesmo os mais politicamente corretos, acabam tratando o negro como objeto. "As figuras nos livros, salvo raríssimas exceções, mostram sempre o negro apanhando, em uma situação constrangedora em relação ao branco" diz.

Para Florentino, não se trata de "florear" a história da escravidão no Brasil. "O problema é que os livros ignoram os caso de ascensão social de negros. Há registros de negros que se tornaram livres e compravam escravos".

Apesar desses casos não serem regra no Brasil colonial, Florentino acha importante citá-los por uma questão de formação da identidade negra. "Que criança vai querer se identificar com uma figura que só apanha?"

O historiador Holien Gonçalves Beserra, coordenador da comissão técnica de avaliação dos livros didáticos de história do Ministério da Educação, concorda com Florentino, mas afirma que a situação vem melhorando. "Havia uma defasagem enorme, principalmente na história da escravidão brasileira, dos livros em relação às pesquisas acadêmicas. Os autores raramente tratavam o negro como agente social".

Para Luiz Felipe de Alencastro, professor-catedrático de história do Brasil na Universidade de Paris 4 ( Sorbonne ), na França, nem todos os defeitos dos livros didáticos são de responsabilidade de seus autores. "A sociedade é conservadora e antipobre e não se interessa em conhecer a situação de vida de um bóia-fria, por exemplo. Duvido que algum livro didático traga informações sobre empregadas domesticas exploradas em casas da classe média", diz.

Para Alencastro, o fato de livros didáticos não abordarem temas importantes - como a história da África, por exemplo - se deve ao desinteresse da academia por certos assuntos.

Vânia Leite Fróes, professora da UFF ( Universidade Federal Fluminense ) que presidiu o 21º Simpósio de História da Anpuh ( Associação Nacional de História ), afirma que, muitas vezes, a universidade falha na divulgação de suas pesquisas. "A universidade fica fechada como um gueto".

"Embora esteja tentando mudar, a universidade tem um processo de fechamento e de falha na divulgação de suas pesquisas para professores e autores de livros. Por políticas equivocadas, ela fica fechada como um gueto", afirma a Vânia.

Florentino cita também como explicação para esse fenômeno o preconceito dos pesquisadores: "Ele preferem publicar teses a trabalhar com livros didáticos".


A HISTÓRIA CONTADA NOS LIVROS DIDÁTICOS



Família Colonial

O que está nos livros:
Trecho de livro didático "História Integrada", da editora Scipione, para a 6º série do ensino fundamental:
"Durante o ciclo da cana-de-açúcar, (...) a autoridade do Senhor da casa-grande era absoluta, estando as mulheres submetidas a um papel subordinado"
Os fatos:
o modelo patriarcal, muito estudado pelo sociólogo Gilberto Freyre, não era regra, por exemplo, em São Paulo, onde há registros de mulheres que comandavam a família enquanto seus maridos, os bandeirantes, ficavam anos fora de casa.



Guerra do Paraguai


O que está nos livros:
Trecho do livro "História e Reflexão", da editora Saraiva, para a 7º série do ensino fundamental, sobre a guerra do Paraguai: "Desde sua independência, em 1811, o Paraguai começou a se desenvolver de um modo diferente. Para isso, distribuiu terra aos camponeses, combateu a oligarquia rural improdutiva, construiu inúmeras escolas para o povo. Francisco Solano Lopez prosseguiu a obra de seu pai de construir no Paraguai um país forte e soberanos, livre da exploração do capitalismo internacional"

Os fatos:
O texto coloca os presidentes paraguaios Antônio Carlos Lopez e Solano Lopez como heróis que lutavam contra o imperialismo inglês. Para muitos historiadores, inclusive paraguaios, eles eram caudilhos e ditadores



Escravos

O que está nos livros:
Na história do Brasil Colonial, o negro aparece nos livros, com raríssimas exceções, como escravos. Trecho do livro "História Integrada", da editora Scipione, para 6º série: "A vida do escravo é um inferno. Os africanos são arrancados de sua terra de origem e trazidos como gado em navios. Sua vida na colônia é ainda pior: têm uma existência amarga e penosa"

Os fatos:
Pesquisas mostram que havia negros que ascendiam socialmente e constituíam famílias estáveis mesmo no período da escravidão.



África

O que está nos livros:
Em geral, os livros tratam os negros vindos para o Brasil por meio do tráfico de escravos como "africanos", sem diferenciá-los culturalmente e com poucas referências aos seus hábitos e maios de vida

Os fatos:
O Brasil é considerado o segundo maior país negro do mundo, atrás apenas da Nigéria. No entanto, fala-se muito pouco da história da África e de sua influência no Brasil.


Autor afirma que não existe verdade absoluta
da sucursal do Rio

Para o autor do livro "História e Reflexão", Gilberto Contrim, não existe verdades absolutas, prontas e acabadas quando se trabalha com história.

"Mais do que falar em verdade, se fala em versões. Eu trouxe um versão da Guerra do Paraguai baseada em pesquisas acadêmicas como a do argentino León Poner, que mostra que o conflito foi fomentado pelo capitalismo inglês com o objetivo de destruir um país que buscava o desenvolvimento autônomo", diz Cotrim.

Ele dá um exemplo de outra versão da história do Paraguai, comum nos livros antes da década de 70, colocando o presidente paraguaio, Solano Lopez, como o vilão do conflito, e enaltecendo brasileiros como Duque de Caxias.

O autor afirma também que a maneira como os livros didáticos tratam da escravidão e da vida social do negro tem evoluído. "A inclusão de exemplos de revoltas negras já é uma prática comum nos livros. Os autores estão dando mais exemplos da vida social dos escravos", diz, citando como exemplo um livro produzido por ele, "Saber e Fazer".

De acordo com a autora Sônia Irene do Carmo, as críticas de pesquisadores aos livros didáticos nem sempre levam em conta que há um limite para a atualização das publicações.

"O livro didático tem um limite que é dado pela capacidade de ser trabalhado no período de um ano letivo, com "x" número de horas aulas semanais. Esse limite é incompatível com as exigências que se fazem", afirma.

A Folha entrou em contato com a assessoria de imprensa da editora Scipione, que publicou o livro "História Integrada", de Cláudio Vicentino, citado no quadro que acompanha esta reportagem. No entando, até o fechamento desta edição, Vicentino não havia procurado a redação.


Professora critica descontextualização
da sucursal do Rio

A praga do politicamente correto nos livros didáticos muitas vezes descontextualiza fatos e personagens históricos. Essa é a opinião da professora Vânia Leite Fróes, da UFF ( Universidade Federal Fluminense ).

Vânia pesquisa principalmente o período medieval e aponta como um dos erros mais comuns dos livros didáticos a interpretação anacrônica de fatos históricos. "Muitos livros tratam personagens históricos mulheres como precursoras de um feminismo. É absurdo você falar dessa visão na Idade Média. Essa é uma problemática que surge para o historiador nos anos 60", diz.

Um exemplo citado por Vânia é o tratamento dado para Heloísa, cuja história ficou conhecida como a de um amor proibido com Abelardo. "Dizer que Heloísa era feminista reflete uma concepção da história mascarada pelo politicamente correto", diz.

Além do politicamente correto, os historiadores citam casos em que a história é ensinada de maneira "engajada", como o da Guerra do Paraguai ( 1865-1870 ). "Em geral, o presidente paraguaio na guerra, Solano López, é tratado como herói progressista, portador de uma luta antiimperialista. Muitos historiadores paraguaios até acham graça dessa visão de um caudilho sul-americano ", afirma o pesquisador Manolo Florentino, da UFRJ.

A reportagem da Folha encontrou exemplo dessa visão da Guerra do Paraguai no livro "História e Reflexão", de Gilberto Cotrim, editado pela editora Saraiva.


África é ignorada, diz pesquisador
da sucursal do Rio

Para o historiador Luiz Felipe de Alencastro, a superficialidade com que os livros didáticos tratam da história da África, e suas influências sobre o Brasil, não pode ser creditada apenas aos autores dessas publicações.

"Recentemente, promovemos na USP ( Universidade de São Paulo ) dois concursos para interessados em pesquisar a história da África. Nos dois caso, apenas uma pessoa se apresentou. Há um desinteresse geral da academia pelo tema e isso acaba se refletindo nos livros didáticos".

Alencastro recebeu no mês passado um prêmio por seu livro "O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul", em que retrata a importância de fatos históricos ocorridos no continente africano para a formação econômica do Brasil.

Para ele, há uma tendência dos historiadores do país de limitar as pesquisas ao território colonial brasileiro. "É uma visão territorial e anacrônica da história do Brasil, como se a idéia de nação sempre existisse na colônia".


Abaixo estamos reproduzindo o texto-resposta de Cláudio Vicentino, um dos autores que teve seu livro citado na reportagem.

Quarta-feira, 5 de setembro de 2001

Estou recorrendo ao Ombudsman por um erro prejudicial ao meu nome na reportagem do jornalista Antônio Gois do dia 05/09/2001, página C 9. Na reportagem foi afirmado em seu final o seguinte: "A Folha entrou em contato com a assessoria de imprensa da editora Scipione, que publicou o livro História Integrada de Cláudio Vicentino, citado no quadro que acompanha esta reportagem. No entanto, até o fechamento desta edição, Vicentino não havia procurado a redação."

Como destaco abaixo, em texto igual ao enviado ao Painel do Leitor da Folha de São Paulo, não poderia ter procurado a redação da Folha pois nada sabia sobre a reportagem. Surpreendido ao ler a reportagem no dia 05/09/01, recorri à editora que, segundo ela, foi procurada para uma matéria sobre avaliação de livros didáticos de história. Como meus livros não tinham sido avaliados no último PNLD, foi encerrado o assunto tanto pela editora como pelo jornalista. Também telefonei para o jornalista responsável pela matéria, Antônio Gois, que, ao que pareceu, admitiu muito cordialmente que houveram desencontros, não permitindo que eu fosse contatado e participasse daquela reportagem. Dessa forma, acredito que tal citação em que me responsabilizou pela não participação constituiu não apenas um erro mas também uma afirmação comprometedora.

Antes de reproduzir o email enviado ao Painel do Leitor, gostaria ainda de acrescentar o descompasso entre a manchete (o título da reportagem: "Livros didáticos distorcem história do país") e a matéria em si. Segundo Antônio Gois, a manchete não era de sua responsabilidade, pois tinha sido elaborada em São Paulo, concordando com o exagero e sua falta de sentido (ao que pareceu). Ao contrário da matéria, bastante equilibrada, ouvindo vários lados e atendendo diversas posições polêmicas quanto ao assunto referente aos livros didáticos, a manchete resumia com uma simplificação rasteira. Mais do que isso, assumia uma posição quanto à possibilidade (ou existência) de uma única história (a não distorcida).

Texto enviado ao Painel do Leitor

Gostaria de desfazer um equívoco publicado na matéria do jornalista Antônio Gois no caderno Cotidiano do dia 05/09/2001, página C 9. Ali foi afirmado que eu deixei de atender uma solicitação da reportagem da Folha de São Paulo, não procurando a redação do jornal. De fato, não poderia fazê-lo, pois desconhecia completamente tal reportagem e a solicitação. Num assunto tão importante quanto polêmico sobre os livros didáticos, gostaria muito de ter opinado. Mesmo assim, reafirmo minha disposição para outras oportunidades. Certamente a matéria de Antônio Gois abre espaço importante de discussão sobre o ensino de história, ficando longe de esgotar o assunto. O tempo de uma única história, de uma história verdadeira, indiscutível e isenta não convence mais ninguém, muito menos os jovens que tantos ainda teimam em tratá-los como eternas crianças. Professores e estudantes há muito repudiam a idéia de um livro didático oficial, portador de certezas indiscutíveis. Sobre a História efetiva, aquela que se faz na realidade concreta em que todos somos agentes, a História com H maiúsculo, vale lembrar que as distorções das perspectivas do nosso país e das atuações afirmativas para o conjunto da população brasileira continuam vivas, fortes e se escondendo num relativismo maroto, nem isentas e nem convincentes. Assim, bem além daquela manchete da reportagem ("Livros didáticos distorcem história do país") estão elites e alguns intelectuais aliados que continuam distorcendo a História (com H maiúsculo) de todos nós brasileiros.


Abaixo apresentamos o editorial publicado no mesmo jornal, Folha de São Paulo, do dia 09 de setembro de 2001, por tanto, quatro dias depois da matéria ter sido publicada e três dias depois de terem recebido a resposta do autor.

História e Verdade

Embora muitos acreditem que a história seja a ciência dos fatos relativos à vida de um povo, é fenômeno relativamente comum que, de um mesmo evento, dois historiadores extraiam teses diametralmente opostos. Livros didáticos de história, como mostrou reportagem publicada pela Folha na semana passada, não escapam a essa tendência.

Atualmente, um livro brasileiro pode ser criticado seja por tratar Francisco Solano López como líder paraguaio que desejava construir um país forte e soberano seja por tratar todos os grupos étnicos de negros que aqui chegaram apenas com "africanos".

São críticas que, diga-se, fazem algum sentido. Quando se comenta a história da Guerra do Paraguai, é sem sombra de dúvida importante indicar que Solano López se opunha ao imperialismo inglês, mas não dá para deixar de mencionar que o homem era um caudilho.

Analogamente, é simplificação preconceituosa tratar como iguais todos os tipos de negros que vieram ao Brasil sem nem tentar mencionar que havia principalmente bantos e sudaneses, que, por sua vez, se subdividem em várias dezenas de etnias. É realmente desconcertante que o Brasil, a segunda maior nação negra do planeta, menor apenas do que a Nigéria, insista em ignorar tão olimpicamente a história africana.

Reparos à parte, convém registra que houve uma evolução importante. Não muitos anos atrás, os livros escolares ainda enalteciam o duque de Caxias como grande herói nacional. Embora o patrono do Exército brasileiro tenha cumprido a missão que lhe foi dada e possa ainda hoje ser considerado um herói, atualmente questiona-se o papel do Brasil num conflito com contornos genocidas como foi a Guerra do Paraguai.

Toda "verdade" histórica é antes de mais nada um versão para um conjunto de fatos. Essa é uma concepção de história bastante disseminada hoje, no que representou significativo avanço em relação aos tempos em que se acreditava numa história neutra, objetiva e baseada unicamente em fatos indisputáveis.

O risco da interpretação mais moderna é desembocar no desprezo pelo fato. Se tudo é uma questão de juízos, de ideologia, então por que o autor não fica apenas com sua tese e adapta os fatos a ela? De certo modo, isso ocorre. E não se pode afirmar que os historiadores que seguiram exclusivamente essa linha tenham trazido uma grande contribuição para a ciência histórica. O que trouxeram foi falsificação, às vezes consciente, às vezes não. Às vezes evidente, às vezes não.

Existe, obviamente, uma grande e interminável discussão teórica, que deveria, em algum grau, estar presente nos próprios livros didáticos. O fato ( se ainda é lícito falar em fato ) é que, pela diversidade de interpretação hoje à disposição de alunos e de professores, ficou mais fácil começar a entender história. Existe aqui um pouco do que Hegel chamou de dialética.

Sobenh (Sociedade Brasileira de Ensino de História), aqui.

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