Quando centenas de milhares de pessoas se manifestaram no México, no ano passado, contra o aumento no preço da tortilla, muitos analistas culparam os biocombustíveis. Devido aos subsídios do governo norte-americano, os agricultores desse país estavam destinando mais hectares ao milho para etanol do que para alimentos, fazendo com que os preços disparassem. Esse desvio do uso do milho foi, sem dúvida, uma das causas do aumento dos preços, embora provavelmente a especulação dos atravessadores, com a demanda por biocombustíveis, teve uma influência maior. Contudo, muitos deixaram passar uma pergunta interessante: como foi que os mexicanos, que vivem na terra onde o milho foi domesticado, chegaram a depender do grão norte-americano?
A erosão da agricultura mexicana
Não é possível entender a crise alimentar mexicana sem considerar que nos anos anteriores à "crise da tortilla" a pátria do milho foi transformada em uma economia importadora desse grão pelas políticas de “livre mercado” promovidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial (BM) e por Washington. O processo começou com a crise da dívida, no início da década de 1980. O México, um dos maiores devedores do mundo em vias de desenvolvimento, foi obrigado a implorar dinheiro do BM e do FMI para pagar o serviço de sua dívida com bancos comerciais internacionais. O preço do resgate foi aquilo que um membro do conselho executivo do BM descreveu como um “intervencionismo sem precedentes”, projetado para eliminar tarifas, regulamentações estatais e instituições governamentais de apoio, que a doutrina neoliberal identificava como barreiras para a eficiência econômica.
O pagamento de juros aumentou de 19% do gasto federal total, em 1982, para 57%, em 1988, enquanto o gasto de capital desmoronou, caindo de 19,3% para 4,4%. A redução do gasto governamental significou acabar com o crédito estatal, com os insumos agrícolas subsidiados pelo governo, com os apoios aos preços, com os conselhos estatais de comercialização e com os serviços de extensão.
Este golpe contra a agricultura camponesa foi seguido por outro ainda maior, em 1994, quando entrou em vigor o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN). Apesar de que esse tratado considerava uma prorrogação de 15 anos para a proteção de produtos agrícolas, entre eles o milho, em pouco tempo começou chegar milho norte-americano altamente subsidiado, fazendo com que os preços caíssem pela metade e afundando o setor do milho em uma crise crônica. Em grande parte por causa desse acordo, o México acabou consolidando-se como importador de alimentos.
Com o fechamento da entidade governamental encarregada da comercialização de milho, a distribuição das importações desse grão vindas dos Estados Unidos, assim como a do milho nacional, foi monopolizada por umas poucas empresas transnacionais de comércio, como a Cargill. Isso deu-lhes um tal poder para especular com as tendências do mercado que podem manipular e magnificar, muitas vezes, os movimentos da demanda por biocombustíveis. Ao mesmo tempo, o controle monopólico do comércio doméstico garantiu que um aumento nos preços internacionais do milho não se traduza em preços significativamente mais altos para os pequenos produtores.
Cada vez é mais difícil para os produtores mexicanos de milho furtar-se do destino de muitos outros pequenos produtores em setores como arroz, carne de gado, frango e suíno, os quais faliram devido às vantagens concedidas pelo TLCAN aos produtos subsidiados norte-americanos. Segundo um relatório do Fundo Carnegie, de 2003, as importações agrícolas dos EUA deixaram sem trabalho 1,3 milhão de camponeses, muitos dos quais migraram para o país do norte.
As perspectivas não são boas, porque o governo mexicano continua nas mãos de neoliberais que desmantelam sistematicamente o sistema de apoio ao campo.
Fabricação da crise do arroz nas Filipinas
Que a crise global de alimentos tem sua origem na restruturação da agricultura feita pelo livre mercado fica ainda mais claro no caso do arroz. Diferentemente do milho, menos de 10% da produção mundial de arroz é comercializada. Além disso, no caso do arroz não houve desvio do consumo para os biocombustíveis. Contudo, apenas neste ano os preços já triplicaram, passando de 380 dólares por tonelada, em janeiro, para mais de mil dólares, em abril. Não há dúvida de que uma boa parte dessa inflação é conseqüência da especulação dos cartéis atacadistas em uma época em que a oferta é escassa. Contudo, o maior mistério é saber por que vários países consumidores de arroz que antes eram auto-suficientes tornaram-se severamente dependentes das importações.
As Filipinas constituem um triste exemplo de como a restruturação econômica neoliberal transforma um país exportador em importador de alimentos. Esse país é o maior importador mundial de arroz. O esforço de Manila para garantir o abastecimento a qualquer preço tem se tornado manchete de capa e as fotografias de soldados que dão proteção à distribuição desse cereal nas comunidades pobres passaram a ser emblemáticas da crise global.
Os aspectos gerais da história das Filipinas são semelhantes aos do México. O ditador Ferdinando Marcos foi culpado de muitos crimes e de erros de gestão, entre os quais não ter promovido a reforma agrária, mas não pode ser acusado de privar o setor agrícola de verbas governamentais. Para amenizar o descontentamento dos camponeses, o regime entregou fertilizantes e sementes subsidiados, promoveu mecanismos de crédito e construiu infra-estrutura rural. Durante os 14 anos da sua ditadura, em apenas um, 1973, foi necessário importar arroz, devido aos extensos prejuízos causados por furacões. Quando Marcos fugiu do país, em 1986, havia 900 mil toneladas métricas de arroz estocadas nos armazéns do governo.
Paradoxalmente, os anos seguintes, com um governo democrático, viram encolher a capacidade de investimento governamental. O BM e o FMI, atuando em representação de credores internacionais, pressionaram o governo de Corazón Aquino para que desse prioridade ao pagamento da dívida externa, que chegava a 26 bilhões de dólares. Aquino concordou, apesar de ter sido advertida pelos economistas de seu país de que seria “inútil procurar por um plano de recuperação que seja consistente com o pagamento da dívida estabelecido pelos nossos credores”.
Entre 1986 e 1993, entre 8 e 10% do PIB saiu das Filipinas cada ano para pagar o serviço da dívida. A proporção dos gastos governamentais com o pagamento de juros, aumentou de 7%, em 1980, para 28%, em 1994; os gastos de capital caíram de 26% para 16%. Em resumo, o serviço da dívida tornou-se prioridade do orçamento nacional.
O gasto com agricultura caiu para menos da metade. O BM e seus acólitos locais não estavam preocupados, porque um dos propósitos de estar apertando o cinto era deixar que o setor privado fizesse investimentos no campo. Mas a capacidade agrícola ruiu rapidamente, o regadio cessou e por volta do fim da década de 1990 apenas 19% da rede viária do país estava pavimentada, contra 82% na Tailândia e 75% na Malásia. As colheitas eram, em geral, anêmicas; o rendimento médio do arroz era de 2,8 toneladas por hectare, muito abaixo do conseguido na China, Vietnã e Tailândia, onde os governos promoviam ativamente a produção rural. A reforma agrária definhou na era posterior a Marcos, privada de recursos para serviços de apoio, que tinham sido a chave para as bem-sucedidas reformas de Taiwan e da Coréia do Sul.
Como no México, os camponeses filipinos enfrentaram a retirada em grande escala do Estado como fonte de apoio. E o corte em programas agrícolas foi seguido pela liberalização comercial; a entrada das Filipinas na Organização Mundial do Comércio (OMC) teve o mesmo efeito que o TLCAN para o México. Ser membro da OMC requeria eliminar quotas de importações agrícolas, exceto para o arroz, e permitir que uma certa quantidade de cada produto entrasse com taxas reduzidas. Apesar de que foi permitido ao país manter uma quota nas importações de arroz, teve que admitir uma quantidade equivalente a entre um e 4% do consumo doméstico nos 10 anos seguintes. De fato, como conseqüência da queda na produção derivada da falta de apoio oficial, o governo importou muito mais do que isso para compensar uma possível escassez. Essas importações, que aumentaram de 263 mil toneladas, em 1995 para 2,1 milhões em 1998, fizeram cair o preço do cereal, desalentando os produtores, e manteve a produção em um nível muito inferior ao dos principais provedores do país, Tailândia e Vietnã.
As conseqüências da entrada das Filipinas na OMC varreram o resto da agricultura como um furacão. Diante da invasão de importações baratas de milho, os camponeses reduziram a terra dedicada a essa cultura de 3,1 milhões de hectares, em 1993, para 2,5 milhões no ano 2000. A importação massiva de cortes de frango praticamente acabou com essa indústria e foi também o aumento de importações que afetou a produção de aves, suínos e vegetais.
Os economistas do governo prometeram que as perdas em milho e outras culturas tradicionais seriam mais do que compensadas pela nova indústria exportadora de cultivos “de alto valor agregado”, como flores, aspargos e brócolis. Pouco de tudo isso aconteceu. O emprego agrícola caiu de 11,2 milhões, em 1994, para 10,8 milhões, em 2001.
O duplo golpe do ajuste imposto pelo FMI e a liberalização comercial imposta pela OMC fez com que uma economia agrícola em grande medida auto-suficiente passasse a ser dependente das importações e marginalizou constantemente os agricultores. Tratou-se de um processo cujo sofrimento foi descrito por um negociador do governo filipino durante uma sessão da OMC em Genebra: “Nossos pequenos produtores agrícolas são massacrados pela brutal injustiça do entorno do comércio internacional”.
A grande transformação
A experiência do México e das Filipinas repetiu-se em um país após outro, todos sujeitos aos manejos do FMI e da OMC. Um estudo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) em 14 países descobriu que os níveis de importações agrícolas em 1995-98 excederam os de 1990-94. Não foi surpresa, visto que um dos principais objetivos do acordo agrícola da OMC era abrir mercados em países em vias de desenvolvimento, para que eles absorvessem a produção excedente do norte.
Os apóstolos do livre mercado e os defensores do dumping parecem estar em extremos opostos do espectro, mas as políticas que defendem produzem o mesmo resultado: uma agricultura capitalista industrial globalizada. Os países em desenvolvimento entram em um sistema em que a produção de carne e grãos para exportação está dominada por grandes fazendas industrializadas, como as administradas pela transnacional tailandesa CP, nas quais a tecnologia é melhorada continuamente por avanços em engenharia genética de companhias como a Monsanto. E a eliminação de barreiras tarifárias e não tarifárias facilita que surja um supermercado agrícola global de consumidores de elite e de classe média, atendidos por corporações de comércio de grãos, como Cargill e Archer Daniels Midland, e por varejistas transnacionais de alimentos, como a britânica Tesco e a francesa Carrefour.
Não se trata somente da perda progressiva da auto-suficiência alimentar nacional ou da segurança alimentar, mas daquilo que a africanista Deborah Bryceson, de Oxford, denomina “descamponesização”, ou seja, da supressão de um modo de produção para fazer do campo um lugar mais apropriado para a acumulação intensiva de capital. Esta transformação é traumática para centenas de milhões de pessoas, porque a produção camponesa não é somente uma atividade econômica: é um modo de vida milenar, uma cultura, o que é uma das razões de que na Índia os camponeses deslocados ou marginalizados tenham optado pelo suicídio. Calcula-se que uns 15 mil camponeses indianos acabaram com suas vidas.
A queda de preços, resultado da liberalização comercial, e a perda do controle sobre as sementes, agora em mãos das empresas de biotecnologia, fazem parte de um problema integral, assinala Vandana Shiva, ativista pela justiça global: “Na globalização, o camponês ou camponesa perde sua identidade social, cultural e econômica de produtor. Agora, um camponês é ‘consumidor’ das sementes e químicos caros vendidos pelas poderosas corporações transnacionais através de poderosos latifundiários e agiotas locais”.
* Versão reduzida do artigo que será publicado na edição do The Nation (Nova York) no dia 2 de junho. Reproduzido com autorização do autor.
** Walden Bello é analista e ex-diretor executivo do instituto de pesquisa e ativismo Enfoque no Sul Global, com sede em Bangkok.
Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores
Reproduzido da Agencia Carta Maior.
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