Discutir o marxismo para o século XXI é algo tão fascinante que não resisti, e resolvi meter a minha coluna torta no meio. A minha colher, ou coluna, é a de beletrado. Isto é, olho o marxismo do ponto de vista da narrativa que ele encena. Isso nada tem de superficial, pois implica em ver como se conjugam teoria, a análise que ela deflagra, as ações que ambas as anteriores provocam, e como o resultado se volta para incorporação dialética (me permitam o palavrão) pelas primeiras, e assim por diante.
O marxismo, de início, apesar de sua pregação atéia, teve clara “inspiração” em três fontes, digamos, religiosas, e da tradição monoteísta semita-cristã. Coloquei “inspiração” assim, entre aspas, porque não creio que nem Marx nem Engels tenham construído essa pertença conscientemente, mas ela infiltrou-se de alguma maneira (talvez por formação, talvez por outra causa) nas suas formulações.
A primeira dessas fontes é o livro do Êxodo, primeiro livro, que eu conheça, de espírito revolucionário a ter sido escrito. Narra ele uma forma de revolução, em que os trabalhadores, os hebreus (que ainda não eram judeus) abandonam a classe dominante à sua própria sorte e saem em busca de um “outro mundo possível”, sem me permitem a heresia. Entretanto, é bom que se ressalte, no Êxodo se trata de reencontrar um “mundo perdido”, que ficara guardado no “passado” desse povo – o que depois foi repetido por muito movimento político-cultural de natureza messiânica, inclusive o nosso bem próximo sebastianismo, que de luso se fez luso-brasileiro.
A segunda fonte está nos livros proféticos da Bíblia, em particular, penso eu, nos livros de Isaías, que estão entre os momentos de mais vigorosa denúncia social do dito “Livro Sagrado”. Ao contrário do que supõe o lugar-comum, os profetas bíblicos não predizem coisa alguma. Isaías considera isso de prever o futuro uma charlatanice. Eles, na verdade, analisam e advertem. Mais ou menos assim: “olhem, se vocês continuarem a agir desse modo, isso vai acabar muito mal”. Como em geral o povo não ouve os profetas, as coisas acabam mesmo mal. Mas a análise do profeta tem um caráter anagógico, isto é, de arrebatamento, de anúncio, de convocação para uma mística, que é o casamento total entre uma crença e a ética que ela supõe e propõe – coisa que faz, por exemplo, o MST.
O profeta pode até (como faz Isaías) anunciar um Messias, mas dele, identitariamente, se aparta. Para o profeta é muito claro que ele (profeta) não é Ele (Messias, ou o enviado, ou o esperado, ou seja o que for). Ao contrário, o olhar profético e sua fala são analíticos e visionários ao mesmo tempo, pois desconstroem a aparência alienada e alienante e deixam ver o que todos já sabem, mas se recusam a ver: a estrutura narrativa que de fato governa o mundo das coisas e de suas relações, e por isso permitem que a práxis se abra para o mundo da liberdade, não repetindo nem buscando ciclicamente a restauração do passado. É o que, num outro diapasão, fazem ou fizeram Marx e Engels.
A terceira fonte de inspiração é o Novo Testamento, talvez com uma certa preponderância do Evangelho de Mateus, também o mais “social” dos evangelistas. O chamado Velho Testamento (na tradição cristã) guarda dentro de si uma estrutura cíclica, de libertação/prisão, busca/perda, encontro/desencontro, caminho/descaminho. No chamado Novo Testamento uma tradição particularizada (a do povo eleito) é recuperada, e traduzida para um novo contexto histórico e anagógico, em que “chegou a hora” em que todos e qualquer um (é claro que neste contexto, pela conversão) podem escolher “o caminho da eleição”. O tempo não é de espera, mas de ação, porque a construção do “caminho da escolha”, ou a “escolha do caminho”, do e para “o outro mundo possível” se dá sempre, em todo e qualquer aqui e agora da humanidade e para cada um de seus membros – inclusive (e nesse ponto o cristianismo primevo era muito radical) para as mulheres.
Como descortinar por entre as aparências o mundo das relações essenciais que, como são relações, são algo dinâmico, e como fazer dessa análise a anagogia de uma nova era possível, essas foram as ênfases do pensamento marxista em seu nascedouro. A essas ênfases o determinismo positivista, hegemônico no século XIX pela Europa e América afora, também “infiltrado” no mundo marxista, deu foro de “inevitabilidade”.
O marxismo nasceu na Europa. Depois migrou para o mundo inteiro (como a teogonia cristã), mas de certo modo permaneceu largamente com suas raízes neste continente que era o conteúdo de sua teoria e também, dialeticamente, a continha. Durante um século (se tomarmos o ano do lançamento do Manifesto Comunista), até a criação da China comunista, o marxismo viu e pagou tributo ao quadro cuja moldura apontava a Europa como modelar (não eticamente, mas como destino) da humanidade. De certo modo, tanto a revolução chinesa como a revolução cubana, sem falar na Guerra do Vietnã, foram “heresias” ou pelo menos “movimentos não ortodoxos” em relação, não necessariamente às teorias e análises de Marx, Engels e depois de outros “seguidores do caminho”, mas em relação a grande parte das “matrizes operacionais” que aquelas teorias e análises ajudaram a deflagrar. Foram “fugas narrativas”, para recuperar o tema inicial desta coluna que é, ela também, algo herética em relação às fontes que pretende debater.
Quer se queira quer se goste ou não, a “grande narrativa” marxista entrou em colapso em novembro de 1989, quase vinte anos atrás, quando caiu o muro de Berlim. Não que isso tenha jogado no lixo da história o pensamento marxista. Só um tolo ou um desavisado acredita nisso, embora haja muita gente que ficou tentando jogá-lo para debaixo do tapete. Mas o que trincou de vez foi a certeza (ilusória) que o “anúncio do novo mundo” era de realização inevitável. E mais ainda: além de perder a Guerra Fria, o mundo comunista real expôs, entre suas vísceras, que muito dessa perda vinha de suas próprias entranhas, do que se fizera de fato a partir daquelas teorias e análises que se contam entre as mais generosas e eticamente solidárias para a humanidade, que esta já gerou para si.
Esse impasse, dramaticamente instalado no coração do pensamento transformador, utópico, revolucionário, o que se queira, ameaçou transformar o marxismo, por exemplo, numa espécie de departamento ou nicho acadêmico. A partir de 89, poucas forças sociais reivindicaram o marxismo como fonte de inspiração para uma ação concreta. O marxismo em ação tornou-se uma espécie de “reserva ecológica”, ilhado literalmente numa ilha – Cuba. (Por favor, dou-me o direito de considerar que nem a Coréia do Norte nem a Moldávia sejam propriamente “regimes marxistas”. Quanto à China, nem falar). Por vezes brande-se o marxismo na palavra – e a ação decorrente é de natureza social-democrata: isso na melhor das hipóteses. Até porque a social-democracia deixou de ser social-democrata, para se tornar um papel carbono ou uma nota de rodapé das teorias e místicas neoliberais.
Assim vejo hoje (e vejo isso dentro de mim, também, não estou fugindo desse barco) o marxismo como uma teoria – no sentido tanto de um “legado histórico” como no sentido de uma narrativa que chegou ao ponto nodal de se perguntar por seu próprio destino – em busca de um continente, isto é, de uma “forma”, no sentido de um “feixe de relações” de causas e efeitos que, enovelando-se, permitam discernir qual o “novo enredo” (pode ser até um samba-enredo...) que se pode propor para a construção de uma humanidade mais solidária, menos propensa a assumir a guerra de todos contra todos como meio de vida e fonte de ação. O fato de que o capitalismo, também enquanto teoria e narrativa, não conseguiu sobreviver à própria vitória na Guerra Fria, entrando numa espécie de aporia espasmódica que pode durar décadas, senão adquirir uma dimensão secular, só aumenta a urgência dessa busca de uma nova anagogia marxista. Não sei muito bem – aliás, nada bem – como isso se dará, ou “se formará”, no sentido de adquirir uma forma, mas tenho certeza de que faz parte dessa busca a consciência da necessidade de promover o reencontro entre análise, ética, democracia e práxis – coisa que em seus melhores momentos o marxismo insuflou, e que em seus piores momentos os regimes comunistas terminaram por renegar e até espezinhar. Quanto ao capitalista, nem é bom falar: basta olhar à volta para ver o que sobrou (soçobrou) de análise, ética, democracia e práxis.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior.
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