Virou moeda corrente o emprego do termo "Estado policial" como forma de classificar um conjunto de ações que, como destacou Leandro Fortes, na revista Carta Capital ( edição nª 504, de 16 de julho de 2008) procurava desbaratar um esquema "que concentra a própria alma das relações entre política,altas finanças e interesses privados impublicáveis". O mundo dá voltas, mas não da forma como deseja o baronato midiático.
Pensar a realidade brasileira à luz da democracia é rever o passado, entender o presente e refletir sobre o futuro, tendo como referência o comportamento da imprensa ante os princípios que, unidos, formam o ordenamento democrático pleno: participação, igualdade, liberdade e solidariedade.
Em algum momento, no atual governo, a Polícia Federal sintetizou substancialmente uma nova ordem que se contrapusesse antiteticamente ao Estado de direito? Apresentou-se como dimensão não só mais limitada, mas também degenerativa em relação a ele? Onde, para justificar a grita, ocorreu revogação de direitos individuais ou supressão de direitos? A resposta é simples. No imaginário de um poder que nunca foi independente dos interesses corporativos e de classe.
Os que hoje se apresentam como fiadores do regime democrático, instâncias de fiscalização dos Poderes, têm uma folha corrida invejável. Sempre que o aparato estatal tentou se constituir como Estado Social, em resposta direta às necessidades substanciais das classes subalternas existentes, o apoio ao retrocesso institucional foi imediato.
Os que hoje se chocam com algemas e supostas pirotecnias nunca hesitaram em legitimar torturas, extermínios e supressões de direitos. Quando foi preciso, não negaram sustentação a que o diálogo democrático fosse substituído pela imposição autocrática. A história da Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Jornal do Brasil se confunde com golpes e “liberalizações sobre controle"
O “Clube da Lanterna”, criado por Carlos Lacerda, foi a matriz discursiva de uma imprensa que nunca deu tréguas a governos democraticamente eleitos. Os principais órgãos de imprensa, com honrosas exceções, atuaram de forma decisiva tanto na formação de consensos da inviabilidade moral e política da preservação dos mandatos, quanto nas soluções intra-elites para resolução dos impasses..
Sequer se deram ao trabalho de atualizar métodos. Em março de 1956, o Globo estamparia em manchete que ”A UDN abre fogo contra Juscelino", reproduzindo discurso proferido na tribuna da Câmara contra o presidente:
"A verdade é que graves escândalos se processam aos olhos do presidente da República, e, ao que tudo indica, com a sua conivência ou, pelo menos, complacência. Suas marchas e contramarchas, afirmações e negativas, estados alternados de euforia e depressão tornaram-no, muito cedo, o mais fraco, hesitante, omisso e desautorizado presidente da República.” *
Transformar intenções em gestos e declarações em fatos faz parte da tradição jornalística brasileira. Importante destacar que o trecho acima foi publicado há 52 anos. Qualquer semelhança com o que é visto nas primeiras páginas da grande imprensa hoje não é coincidência, é método.Uma aula de jornalismo comparado, no tempo e no espaço.
Não muito distinto é o noticiário editorializado do Estado de S. Paulo, em 7 de abril de 1964: "O ex-presidente João Goulart teria sido visto embarcando para o exílio carregando sacos de dinheiro". Expediente narrativo tão grotesco quanto surrado. O objetivo, como hoje, é claramente golpista. Trata-se de conquistar o apoio da classe média, tradicionalmente mais receptiva aos apelos moralizantes. **
Mas talvez os mais emblemáticos exemplos de como o jornalismo, que hoje se apresenta como ferramenta da soberania popular, “enfrentou" um Estado Policial, venha de O Globo, Folha e Estado, nos anos de chumbo. Defendendo o regime militar de acusações de tortura, o diário da família Marinho, destacou em editorial intitulados "Torturas?", publicado em 1969.
"'O Brasil está sendo apresentado em vários países da Europa Ocidental como sede de um regime que colocou a barbárie no Poder, jornais franceses, alemães, belgas, austríacos, ingleses, holandeses, italianos publicam freqüentemente matérias fantasiosas a respeito de 'banhos de sangue' que aqui ocorreriam de torturas etc. (...) 0 Governo está no dever de destruir todas as mentiras que se dizem no exterior contra o regime brasileiro, que, aliás, salvou o País dos mais terríveis torturadores'".
A Folha, da família Frias, no ano seguinte, mostraria toda sua "capacidade de resistência" à ditadura.
"'O país encontra-se em paz, em calma (...) A economia está revigorada (...) Planos de alto valor social e econômico estão em execução - a Transamazônica, o Programa de Integração Social, a campanha contra o analfabetismo etc. (...) Apesar disso, insiste-se lá fora em denegrir a imagem do Brasil (...) Não há outra explicação para essa campanha: má-fé mesmo, uma espécie de represália por não termos permitido que deitasse raízes aqui uma ideologia totalitária e materialista que acredita encontrar na América Latina campo propício para sua expansão'."
O Estadão também não negaria munição às práticas dos porões, transformadas em política de Estado.
"'A opção dos governos que se seguiram à Revolução de 1964 a favor do sistema econômico da livre iniciativa é responsável pelo que hoje já é considerado como o 'milagre econômico brasileiro', e o êxito da política econômica brasileira é a principal causa da campanha anti-Brasil, promovida nos países do Ocidente por elementos que, esquecidos das causas de seu progresso econômico e servindo, consciente ou inconscientemente, aos propósitos do comunismo internacional, remendou aos países do 'Terceiro Mundo' a receita moscovita do 'desenvolvimento não capitalista' tipo nasserista, peruano ou 'democrata cristão' chileno".
São esses mesmos veículos que hoje se apresentam como garantidores da titularidade dos nossos direitos constitucionais। São eles que vêem no governo uma inequívoca inflexão autoritária. Alguém acredita em bruscas rupturas com o passado? Conversões súbitas não merecem melhor análise. Ou, quem sabe, o problema não resida no Estado Policial. Mas em quem o presida.
Gilson Caroni Filho
Pensar a realidade brasileira à luz da democracia é rever o passado, entender o presente e refletir sobre o futuro, tendo como referência o comportamento da imprensa ante os princípios que, unidos, formam o ordenamento democrático pleno: participação, igualdade, liberdade e solidariedade.
Em algum momento, no atual governo, a Polícia Federal sintetizou substancialmente uma nova ordem que se contrapusesse antiteticamente ao Estado de direito? Apresentou-se como dimensão não só mais limitada, mas também degenerativa em relação a ele? Onde, para justificar a grita, ocorreu revogação de direitos individuais ou supressão de direitos? A resposta é simples. No imaginário de um poder que nunca foi independente dos interesses corporativos e de classe.
Os que hoje se apresentam como fiadores do regime democrático, instâncias de fiscalização dos Poderes, têm uma folha corrida invejável. Sempre que o aparato estatal tentou se constituir como Estado Social, em resposta direta às necessidades substanciais das classes subalternas existentes, o apoio ao retrocesso institucional foi imediato.
Os que hoje se chocam com algemas e supostas pirotecnias nunca hesitaram em legitimar torturas, extermínios e supressões de direitos. Quando foi preciso, não negaram sustentação a que o diálogo democrático fosse substituído pela imposição autocrática. A história da Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Jornal do Brasil se confunde com golpes e “liberalizações sobre controle"
O “Clube da Lanterna”, criado por Carlos Lacerda, foi a matriz discursiva de uma imprensa que nunca deu tréguas a governos democraticamente eleitos. Os principais órgãos de imprensa, com honrosas exceções, atuaram de forma decisiva tanto na formação de consensos da inviabilidade moral e política da preservação dos mandatos, quanto nas soluções intra-elites para resolução dos impasses..
Sequer se deram ao trabalho de atualizar métodos. Em março de 1956, o Globo estamparia em manchete que ”A UDN abre fogo contra Juscelino", reproduzindo discurso proferido na tribuna da Câmara contra o presidente:
"A verdade é que graves escândalos se processam aos olhos do presidente da República, e, ao que tudo indica, com a sua conivência ou, pelo menos, complacência. Suas marchas e contramarchas, afirmações e negativas, estados alternados de euforia e depressão tornaram-no, muito cedo, o mais fraco, hesitante, omisso e desautorizado presidente da República.” *
Transformar intenções em gestos e declarações em fatos faz parte da tradição jornalística brasileira. Importante destacar que o trecho acima foi publicado há 52 anos. Qualquer semelhança com o que é visto nas primeiras páginas da grande imprensa hoje não é coincidência, é método.Uma aula de jornalismo comparado, no tempo e no espaço.
Não muito distinto é o noticiário editorializado do Estado de S. Paulo, em 7 de abril de 1964: "O ex-presidente João Goulart teria sido visto embarcando para o exílio carregando sacos de dinheiro". Expediente narrativo tão grotesco quanto surrado. O objetivo, como hoje, é claramente golpista. Trata-se de conquistar o apoio da classe média, tradicionalmente mais receptiva aos apelos moralizantes. **
Mas talvez os mais emblemáticos exemplos de como o jornalismo, que hoje se apresenta como ferramenta da soberania popular, “enfrentou" um Estado Policial, venha de O Globo, Folha e Estado, nos anos de chumbo. Defendendo o regime militar de acusações de tortura, o diário da família Marinho, destacou em editorial intitulados "Torturas?", publicado em 1969.
"'O Brasil está sendo apresentado em vários países da Europa Ocidental como sede de um regime que colocou a barbárie no Poder, jornais franceses, alemães, belgas, austríacos, ingleses, holandeses, italianos publicam freqüentemente matérias fantasiosas a respeito de 'banhos de sangue' que aqui ocorreriam de torturas etc. (...) 0 Governo está no dever de destruir todas as mentiras que se dizem no exterior contra o regime brasileiro, que, aliás, salvou o País dos mais terríveis torturadores'".
A Folha, da família Frias, no ano seguinte, mostraria toda sua "capacidade de resistência" à ditadura.
"'O país encontra-se em paz, em calma (...) A economia está revigorada (...) Planos de alto valor social e econômico estão em execução - a Transamazônica, o Programa de Integração Social, a campanha contra o analfabetismo etc. (...) Apesar disso, insiste-se lá fora em denegrir a imagem do Brasil (...) Não há outra explicação para essa campanha: má-fé mesmo, uma espécie de represália por não termos permitido que deitasse raízes aqui uma ideologia totalitária e materialista que acredita encontrar na América Latina campo propício para sua expansão'."
O Estadão também não negaria munição às práticas dos porões, transformadas em política de Estado.
"'A opção dos governos que se seguiram à Revolução de 1964 a favor do sistema econômico da livre iniciativa é responsável pelo que hoje já é considerado como o 'milagre econômico brasileiro', e o êxito da política econômica brasileira é a principal causa da campanha anti-Brasil, promovida nos países do Ocidente por elementos que, esquecidos das causas de seu progresso econômico e servindo, consciente ou inconscientemente, aos propósitos do comunismo internacional, remendou aos países do 'Terceiro Mundo' a receita moscovita do 'desenvolvimento não capitalista' tipo nasserista, peruano ou 'democrata cristão' chileno".
São esses mesmos veículos que hoje se apresentam como garantidores da titularidade dos nossos direitos constitucionais। São eles que vêem no governo uma inequívoca inflexão autoritária. Alguém acredita em bruscas rupturas com o passado? Conversões súbitas não merecem melhor análise. Ou, quem sabe, o problema não resida no Estado Policial. Mas em quem o presida.
Gilson Caroni Filho
Um comentário:
Sim, provavelmente por isso e
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