22 de nov. de 2011

O Programa de Transição de Trotsky

Introdução

O texto em análise neste trabalho é não só um marco histórico para a IV Internacional Socialista, como é também um documento que expõe de forma sucinta os principais vectores do pensamento de Trotsky.

Redigido em 1938, este documento, entre outros, valeu ao seu autor o cognome de profeta, título dado à sua mais conhecida biografia da autoria de Isaac Deutscher, pois previu com alguma exactidão a II Grande Guerra e criou uma forma de intervenção politica que viria a ser útil no clima pós-guerra, sobretudo aos países da América Latina e outros subjugados ao colonialismo e/ou capitalismo periférico; previu ainda a queda da União Soviética e outros regimes comunistas altamente burocratizados. Contudo, tal como outros pensadores políticos marxistas, cometeria erros de análise que viriam a pôr em causa a sua teoria política, nas décadas posteriores à capitulação alemã e surgimento de uma nova ordem mundial.

Este trabalho pretende assim mostrar em que medida o “Programa de Transição” de Trotsky pode ser considerado um documento de interesse para os dias de hoje e identificar também o porquê de alguns críticos considerarem este documento como um conjunto de ideias políticas que não se aplica à situação política actual.

Objectivo do Programa de Transição

Trotsky em 1938, vésperas da II Guerra Mundial, escreve o panfleto “Programa de Transição” como documento de base para a fundação da IV Internacional; esta seria uma organização internacional à semelhança das anteriores.

Nessa obra Trotsky discorre sobre a natureza do fascismo e a resposta que os marxistas deveriam dar naquele contexto. Para Trotsky, com a eminência da II Guerra Mundial, estavam criadas as condições históricas para a queda do capitalismo e consequente despoletar de uma revolução socialista a nível internacional. O autor fazia assim ressurgir a discussão em torno de um programa revolucionário que estava dividido em “Programa mínimo” e “Programa Máximo” daí se chamar “Programa de Transição”, pois pretendia combinar reivindicações intermédias do “Programa Mínimo” com medidas de carácter duradouro que levariam à implantação de uma sociedade socialista consistente.

Para além disto, Trotsky aproveita também este texto, de carácter panfletário, para reiterar algumas das suas posições políticas e tecer algumas críticas aos seus adversários políticos dentro e fora do panorama marxista.
Há também neste texto um claro repúdio pela guerra que, segundo o autor, tem a sua raiz na política imperialista dos países capitalistas mais desenvolvidos.

Contribuição de Trotsky para o Marxismo

As ideias de Trotsky sobre um partido de vanguarda, o internacionalismo, uma frente única operária ou a revolução como processo de derrube do Estado burguês são nitidamente comuns às de Lenine.
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Contudo, ao longo da obra de Trotsky, em especial no programa de transição, surgem ideias que vão para além da tradição bolchevique. Estas ideias podem ser assim entendidas como contributos inovadores para o pensamento marxista no século XX. Desta forma destaco três que têm principal importância para a análise do “Programa de Transição”: a teoria da revolução permanente, a critica à burocratização do estado (em especial o soviético) e o método próprio do “Programa de Transição”, que como veremos mais adiante, tem em si uma forma específica de execução divergente da tradição social-democrata, esta última orientada para a separação entre um “Programa Mínimo” reformista e um “Programa Máximo” socialista até certo ponto.
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O pensamento de Trotsky, numa base dialéctica, assume o capitalismo como um sistema mundial, logo um país por si só não perderia levar por diante uma revolução socialista sem que esta se estendesse ao resto do mundo de forma gradual e organizada. Por outro lado, ao contrário de outros pensadores marxistas seus contemporâneos, Trotsky também julgava ser impossível para o proletariado russo, ou de qualquer outro país subdesenvolvido, levar a cabo a revolução sem o apoio do campesinato. São estas duas ideias que estão na base da sua teoria da Revolução Permanente.

Partindo de uma análise do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo periférico (capitalismo em países subdesenvolvidos, em que para além da indústria ainda subsistem sistemas feudais, ou em territórios coloniais) Trotsky conclui que nestes países também a revolução terá de ser combinada articulando medidas democráticas anti-feudais, medidas nacionalistas anti-imperiais e socialistas anti-capitalistas. Assim sendo, só uma revolução social contando com o apoio dos camponeses, sob a hegemonia do proletariado, poderia levar a cabo um conjunto de tarefas que passava pela abolição das ditaduras e regimes absolutistas, unificação e independência (no caso das colónias), reforma agrária, colectivização dos meios de produção, etc.
Assim se entende como é que a teoria da Revolução Permanente teve especial aceitação em países dependentes e subdesenvolvidos como os da América Latina na década de 1930.

Outra ideia relevante de Trotsky é a sua crítica à degeneração burocrática do Estado. Para Trotsky, o problema da burocracia não estava só na lentidão da administração pública ou no número de funcionários; para ele o problema era mais grave pois assumia o papel de classe, isto é, a teia de vínculos, amizades e privilégios criada pelos burocratas dava origem a uma “casta superior” desertora da classe operária. Esta nova classe já não tinha contacto com a classe operária e caminhava a passo largo para o restabelecimento do capitalismo. Esta ideia desenvolvida no livro “Revolução Traída” aparecia como que uma profecia para a queda do estado soviético em 1989.

O terceiro contributo para o pensamento marxista, como referi anteriormente, é o método de execução do “Programa de Transição”, que tem como ponto de partida a filosofia da praxis de Marx e a experiência da revolução de Outubro e das lutas sociais levadas a cabo nos anos seguintes.


O Programa de Transição e o Manifesto Comunista

Tal como o “Manifesto Comunista”, redigido em 1848 por Marx e Engels, serviu de texto base à I Internacional Socialista, o “Programa de Transição” surge como manifesto político da IV Internacional fundada em 1938.

Ambos são considerados documentos históricos que reflectem até certo ponto uma determinada conjuntura, ou seja, estão condicionados à realidade política da época em que foram escritos. Comum aos dois documentos é também o facto de exporem algumas ideias fundamentais do marxismo revolucionário. Existem muitos aspectos comuns entre os dois documentos; os dois procuram unidade entre a teoria e a prática, ambos fazem uma análise da realidade e perspectivam uma mudança revolucionária, definem um programa que parte de reivindicações imediatas para oferecer um projecto de luta contra o capitalismo, são também altamente marcados pelo internacionalismo e claro está, tanto um como outro almejam a realização de uma sociedade comunista.

No caso do “Manifesto Comunista”, no final do capítulo “Proletários e comunistas”, são expostas dez tarefas a serem levadas a cabo após a revolução. No caso do “Programa de Transição” são expostas tarefas da luta revolucionária para preparar o derrube do capitalismo. O “Programa de Transição” não dá nenhuma indicação sobre o que fazer após a revolução socialista, daí o facto do autor o considerar um texto inacabado.


Programa Mínimo e Programa de Transição

Para Trotsky a divisão social-democrata entre “Programa Mínimo” e “Programa Máximo” teria de ser abandonada. O autor considerava que o “Programa Mínimo” limitava-se a propor reformas que poderiam ser feitas no seio da sociedade burguesa sem a derrubar ou alterar profundamente. Já o “Programa Máximo” seria um esboço de programa socialista debilmente definido. Esta divisão escondia o problema da tendência defensiva dos sociais-democratas que os levava a só defender o “Programa Mínimo” fazendo do “Programa Máximo” um “programa para os dias de festa”.

É daí que surge, na óptica de Trotsky, a necessidade de elaborar um programa que combinasse as reivindicações imediatas do “Programa Mínimo” com reivindicações de transição, isto é revindicações que seriam formuladas para realmente combater o capitalismo passo a passo. O “Programa de Transição” surgiria assim como uma ponte para o socialismo. Este método é inovador para a época embora o conteúdo, ou seja, as reivindicações em si, não sejam de todo novas por entre os marxistas.

O “Programa de Transição” não se apresenta como uma forma de reformar o capitalismo, mas sim como uma forma de derrubar o capitalismo baseado numa luta revolucionária que passaria pela unificação de proletários, camponeses, pequenos burgueses, etc., em torno do ideal revolucionário.


Medidas do Programa de Transição para o proletariado

Trotsky neste documento aborda, entre outros, o tema da “escala móvel de salários e escala móvel de horas de trabalho”. Para o autor esta medida baseava-se na contratação colectiva e aumento automático dos salários correlativamente à subida dos preços dos bens de consumo (escala móvel de salários) e repartição do trabalho disponível pelos trabalhadores existentes para que assim todos pudessem auferir um salário condigno (escala móvel de horas de trabalho). Com esta forma de “repartição do mal pelas aldeias”, Trotsky tenta solucionar o problema da “decomposição do capitalismo” que ele considera eminente e que arrastaria consigo os trabalhadores para o desemprego e miséria extrema. No entanto, considera que esta medida pode não só reunir protestos dos agentes empregadores, assim como de alguns assalariados; para tal afirma que em caso de ruína do capitalismo esta seria o mal menor para a classe operária, que caso contrário estaria arruinada. Trotsky vê na luta e na propaganda a melhor maneira de levar os operários a compreender a necessidade desta proposta.

Sobre os sindicatos, é dito no texto que os novos sindicatos de França e EUA são a resposta eficaz às necessidades do proletariado, contrapondo a opinião de alguns ultra-esquerdistas que os viam como desnecessários. Defende-se aqui a criação de sindicatos de massas que organizem a luta dos trabalhadores tanto nos regimes democráticos como fascistas. De notar que Trotsky ao longo do texto refere sempre os dois tipos de regime no sentido de reforçar a ideia de que ambos são lesivos para os trabalhadores e para o socialismo.

Trotsky incita os sindicatos a abandonarem a veia reformista em detrimento da revolucionária, no entanto critica de forma dura os pequenos sindicatos revolucionários que se mantêm à margem dos grandes sindicatos de massas, considerando que estes pequenos grupos traem a revolução.

Neste ponto da obra é notória a vontade de Trotsky em separar o terreno de acção dos sindicatos e do partido, dando maior ênfase a este último. Considera também que devido às limitações dos sindicatos é de todo necessário criar organizações que dinamizem a luta, tais como comités de greve, comités de fábrica ou mesmo sovietes. A crítica à postura reformista dos sindicatos é muito forte no texto com o autor a afirmar que em tempo de crise aguda os sindicatos tentam “domesticar” os trabalhadores e que os seus dirigentes acabam em muitas situações por se aliar, em interesse próprio, ao regime burguês. Como solução para o problema, Trotsky sugere a renovação constante do aparelho dos sindicatos bem como a defesa de organizações autónomas, como as acima citadas, que possam contrastar com o carreirismo dos dirigentes sindicais e conservadorismo dos sindicatos em época de luta.

Em suma, tanto a fragmentação dos sindicatos como a criação de sindicatos de massas com tendências reformistas e com sindicalistas de carreira no seu seio, são nefastos à revolução. Assim a solução passa, para o autor, pela renovação interna dos grandes sindicatos e pela criação de estruturas pequenas mais próximas e conscientes dos problemas dos trabalhadores, bem como pela adopção de uma política verdadeiramente revolucionária no seio das organizações.

Por fim, e de acordo com o que foi dito acima, Trotsky dedica um capítulo inteiro aos comités de fábrica, que considera importantes, pois são eles que vão medir forças com os proprietários das fábricas, tomando assim uma posição verdadeiramente revolucionária, contrária à dos sindicatos reformistas ou dos burocratas estalinistas que temem ver o poder espalhado por grupos de trabalhadores que não controlam.

Nota ainda para um capítulo do texto que radicaliza a luta operária ao propor milícias operárias e armamento do proletariado, que contradiz seriamente outras partes do texto que repudiam a guerra e a violência. Esta posição não tem qualquer aceitação nos dias de hoje, em que a relação entre empregadores e assalariados não é a mesma que no texto em análise; contudo, não deixo de considerar exageradas as medidas propostas nesta parte do texto.

Medidas do Programa de Transição para o campesinato

Trotsky não vê diferença entre o camponês e o operário – considera-os “duas partes da mesma classe”. Insiste ao longo da obra, que a aliança entre os dois grupos é fundamental, em especial em países onde o desenvolvimento capitalista não chegou ainda ao seu apogeu. Esta ideia é exposta no capítulo 11 (“A aliança dos operários e dos camponeses”) e reforçada no capítulo 13 (“Governo operário e camponês”) bem como em algumas breves passagens de outros capítulos.

Apesar disso o campesinato continua, nesta obra, a ser alvo de desconfiança pois por entre aqueles camponeses detentores de terra, Trotsky afirma que há desde “semi-proletários até exploradores”. A grande estratégia de acção nas aldeias seria separar os pequenos proprietários, artesãos e comerciantes, também eles vítimas do capitalismo, dos grandes fazendeiros, cujo lucro era acumulado através da exploração de mão-de-obra de pobres trabalhadores ou sistemas semi-feudais.

No documento em análise são apontadas estratégias no sentido de satisfazer as necessidades dos pequenos rendeiros, dos pequenos comerciantes, produtores independentes e artesãos com propostas tais como: “Comités de pequenos rendeiros”, “Comités de vigilância dos preços”, nacionalização das terras dos grandes latifundiários, colectivização da agricultura ou numa fase mais avançada da revolução, a criação de Sovietes. Sensível à questão agrária, em especial nos países mais atrasados, Trotsky propõe que o pequeno camponês nunca deixe de ser dono do seu pedaço de terra e critica a reforma estalinista de colectivização. Reconhece na Rússia de 1917 uma realidade próxima da dos países subdesenvolvidos ou colonizados do final da década de 30 e, ao identificar os erros da política burocrática de Estaline, acaba por traçar outra estratégia de acção para a revolução agrária nesses países. Essa estratégia levanta algumas dúvidas, pois não define com exactidão a diferença entre o pequeno proprietário de terra e o latifundiário. Será que se avalia tal diferença pela área de terra possuída? Será pelos rendimentos auferidos e condições de vida? Pelo facto de ter assalariados na sua terra?

Explorar esta questão, da posse da terra e do estatuto dos camponeses, levanta muitas outras para as quais não encontramos resposta nesta obra. Enquanto na cidade industrial o meio de produção é grande, caro e propriedade de um só homem que emprega centenas, nos campos a realidade é bem mais confusa e passível de erros.

Tendo em conta que estas alterações no tecido económico das nações seriam radicais, o autor não perde tempo e arquitecta o que seria um novo sistema económico/financeiro mais aberto e flexível que o defendido pelos primeiros comunistas mas, no seu essencial, com os mesmo princípios orientadores. É sobre este sistema financeiro que irei dedicar o capítulo seguinte onde se voltará a analisar com mais detalhe a situação dos pequenos comerciantes e artesãos.

Medidas do Programa de Transição para o comércio, indústria e banca

Mesmo sendo este um “Programa de Transição” para a revolução socialista, a expropriação é referida como uma prioridade. “O programa socialista da expropriação, isto é, do derrube político da burguesia e liquidação do seu domínio económico, não deve em caso algum impedir, sob qualquer pretexto, no presente período de transição, a reivindicação da expropriação…” Como demonstra este excerto do texto, a expropriação da propriedade privada estava na base da revolução almejada, contudo e como já foi dito, Trotsky e os trotskistas não defendiam a expropriação total dos meios de produção. A proposta de expropriação era selectiva e progressiva, assim sendo, a prioridade seria a expropriação de “os mais importantes ramos da indústria para a existência nacional”. Depreendo que o autor se referia às ditas indústrias base de um país, recursos energéticos, principais fontes de matéria-prima, transportes, indústria pesada de transformação de ferro e aço (muito importante na altura) ou outras indústrias cujo produto era considerado necessário para o desenvolvimento do país. No alvo das nacionalizações estavam também “certos grupos da burguesia parasitários” e os maiores capitalistas cujo domínio fosse preponderante; Trotsky evoca aqui as 60 famílias americanas e as 200 famílias francesas como símbolos do poder do capitalismo e da concentração indecorosa de capital.

Na sequência da nacionalização da indústria de monta e dos grandes monopólios, surge a nacionalização dos bancos e a estatização do crédito. Com esta medida Trotsky pretende que o “banco único do Estado” crie condições mais favoráveis de crédito para camponeses, artesãos e pequenos comerciantes, isto em união com uma gestão estatal da indústria pesada, transportes e energia, que sirva o interesse dos trabalhadores. Desta forma, o objectivo aqui seria a nacionalização dos sectores base da economia, deixando nas mãos dos privados a quase totalidade do comércio, de alguns ramos da indústria ou da produção artesanal. Estas estruturas poderiam assim ser geridas por um proprietário (pequeno comércio, oficina de artesanato ou pequena exploração agrícola) ou por organizações de trabalhadores tais como cooperativas, (fábricas, grandes extensões de terra cultivável, etc.).

Partindo do princípio que as leis da concorrência deram lugar a monopólios e que estes são nocivos para a economia dos países e lesivos para os trabalhadores, Trotsky insiste no controle e na planificação da economia pelo Estado, criticando a posição social-democrata de não intervenção. Defende-se no texto a abolição do “segredo comercial” como a apresentação de contas aos trabalhadores e sociedade civil por parte dos capitalistas, bem como uma maior intervenção nas tomadas de decisão da firma por parte dos comités de fabrica, isto é, uma maior intervenção dos trabalhadores na gestão e opções estratégicas de rumo para as empresas ainda nas mãos dos capitalistas. Esta seria mais uma das medidas de transição para a revolução socialista em que estes capitais passariam para a mão do proletariado.

Política internacional do Programa de Transição – O internacionalismo em oposição ao socialismo num só país

Estaline dizia que era possível construir o socialismo na URSS sem levar em conta o curso da revolução europeia. Para justificar a sua posição afirmava que havia países maduros para o socialismo e outros que não estavam preparados para embarcar em tal empreitada, logo era a URSS o único que reunia as condições para fazer essa revolução socialista. Esta forma de pensar a revolução serviu para alimentar os interesses imediatos da burocracia soviética. A discussão desta teoria centrou-se com a crítica às políticas cada vez mais nacionalistas impulsionadas pelo aparelho soviético.

Dentro do estado soviético aumentavam as contradições sociais com a aplicação da NEP, que tinha como objectivo revitalizar a economia destruída pela guerra civil e contudo falhou. Em 1925, 37% dos camponeses não produziam excedentes e uma percentagem deles não conseguia sequer produzir para seu próprio consumo e, por isso, tinham de trabalhar para os Kulaks. Assim estes trabalhadores rurais voltavam a estar dependentes de um explorador, desta vez o estado. Os Kulaks, para além de submeterem o campesinato a uma nova forma de exploração, mostraram-se insuficientes para alimentar as cidades. Em suma, Estaline projectou um sistema socialista fechado que funcionava de dentro para dentro com resultados catastróficos para a população mais pobre dos campos. No entanto, à altura da morte de Trotsky, a imagem que a URSS dava ao mundo era bem diferente – parecia impossível a queda do colosso soviético e os indicadores económicos da URSS indicavam um crescimento de 10% a 15% ao ano em especial na indústria pesada. Assim, tornava-se difícil para Trotsky impor a ideia de que era preciso perceber que a Rússia se encontrava inserida no sistema político e económico do capitalismo mundial e que a verdadeira revolução socialista assentava no seu carácter universal defendido por Marx. É por meio desse internacionalismo metodológico que se tornaria possível compreender as diversas dinâmicas nacionais do capitalismo: “O marxismo procede a partir da economia mundial considerada não como a simples adição de suas unidades nacionais, mas como uma poderosa realidade independente criada pela divisão internacional do trabalho e pelo mercado mundial que na nossa época domina todos os mercados nacionais”. Contrapondo a teoria do “Socialismo num só país” Trotsky defende o internacionalismo como a “Revolução Permanente” que ganha forma e método de aplicação com as medidas do “Programa de Transição”.

Também na obra “A revolução traída”, Trotsky considera a URSS como um “Estado operário burocraticamente degenerado” e defende o derrube da ditadura burocrática pelos trabalhadores, através de uma “revolução política” que retome o caminho da democracia socialista e do poder dos sovietes. No entanto previu que o futuro da União Soviética poderia passar por uma “degeneração interna” do sistema burocrático que o levaria a tornar-se num sistema capitalista.

Este combate ideológico permaneceu após a morte dos seus protagonistas criando cisões e confusão generalizada nos meios marxistas. Os defensores de Trotsky afirmam que previu com genialidade a degeneração do estado burocrático da URSS e previu o seu colapso e a sua regeneração naquilo que é hoje. Já os seus opositores categorizam-no de traidor da revolução e cooperante da social-democracia. Têm-se esgrimido os mais variados argumentos em discussões inconclusivas.

Na impossibilidade de reverter a história, ficará sempre a dúvida de como teria sido a revolução socialista na Rússia pós Lenine se Trotsky tivesse ocupado o lugar que este lhe destinara.

O Programa de Transição e a IV Internacional Socialista

Como já foi dito, o texto em análise, “Programa de Transição”, é o documento base que define as orientações da IV Internacional. Fundada em 1938 em Paris, Trotsky por razões de segurança não compareceu, contudo o congresso aprovou o “Programa de Transição”, em torno do qual se desenvolveu toda a acção da recém criada organização.

Porém, a IV Internacional não foi criada como organização acabada. Assim, depois da sua fundação, a IV Internacional dirigiu-se a organizações que tinham rompido com o estalinismo ou a social-democracia propondo-lhes discussões programáticas e tarefas comuns para assim encararem juntos a construção da nova Internacional. Esta abertura partiu do próprio Trotsky; no entanto não salvou a nova organização de ser sempre pequena e sem influência na política mundial. Para além disso padeceu desde o início de um problema organizativo que advinha das contradições entre grupos membros da Internacional, que tinham posições divergentes. Era caso para dizer que após a morte de Trotsky os trotskistas nunca mais se viriam a entender gerando inúmeras dissidências de peso para o movimento e uma fragmentação invulgar dentro da mesma organização. Só no Reino Unido contam-se cerca de vinte organizações trotskistas que reivindicam ser os verdadeiros herdeiros da tradução da IV Internacional. Dentro da IV Internacional existem diversos grupos ou facções como a LIT-QI (Liga Internacional dos Trabalhadores da IV Internacional), LBI (Liga Bolchevique Internacionalista), FT (Fracção Trotskista) ou o PCI (Partido comunista internacionalista) entre outros. Tal divergência interna gerou comentários jocosos como “onde há dois trotskistas logo surgem duas facções distintas”. Ironicamente o combate à burocracia e à disciplina interna rígida da Internacional Comunista parece ter criado na IV Internacional um efeito perverso de inércia e inoperância devido à falta de unidade e de liderança que congregasse todos os envolvidos.

O “Programa de Transição” define o regime interno da IV Internacional: “Sem democracia interna não há educação revolucionária. Sem disciplina não há acção revolucionária. A estrutura da IV Internacional baseia-se nos princípios do centralismo democrático: plena liberdade de discussão, unidade na acção”.
Em suma, esta organização com luta declarada em duas frentes (social-democracia e estalinismo) nunca se afirmou internacionalmente de forma eficaz, em parte pela perda prematura do seu líder e pela sua incapacidade de se organizar e conciliar as divergências internas.

Críticas ao Programa de Transição

Se Trotsky não se enganou ao prever a II Guerra Mundial ou queda do regime Soviético (tão bem profetizada na “Revolução traída”), já o mesmo não se pode dizer quando concluiu que o fascismo seria a última fase do capitalismo, que se encontraria num “estado de profunda decomposição” e que as massas operárias estariam cada vez mais mobilizadas para lutar contra o fascismo. No seu entender, esta mobilização operária revestiria a forma de uma luta pela revolução socialista a curto/médio prazo.

Em primeiro lugar, o fascismo não era a derradeira fase do modo de produção capitalista, mas sim uma nova forma de organização política da grande burguesia sob a égide de um Estado de excepção. Não havia uma motivação revolucionária das massas, antes pelo contrário, o fascismo tinha do seu lado largas camadas da população, em especial a classe média e os desempregados. Quanto aos trabalhadores das fábricas, estes não estavam motivados para combatê-lo.

Também a crise dos anos 30 nos países democráticos, ao contrário do que Trotsky pensava, não foi o princípio do fim para a burguesia e seu sistema capitalista. Trotsky viu na II Guerra Mundial o fim da “pré-história” e pensou que estavam criadas as condições para uma revolução socialista – contudo não viveu tempo suficiente para reformular a sua teoria. No entanto, e segundo Ernest Mendel e outros dirigentes da IV Internacional, Trotsky estava consciente de que “o capitalismo não morreria de morte natural” e que para além da crise capitalista teria de haver “consciência e acção do sujeito histórico (o proletariado)”. Mesmo que nos últimos anos de vida Trotsky tenha de certa forma reestruturado a sua teoria política, no que toca ao texto em análise neste trabalho ele comete o mesmo erro dos escritos de Marx ao considerar que o capitalismo nunca traria um nível de vida ao proletariado melhor que aquele que se conhecia no inicio do século XX, ou seja, a realidade social em que vivemos hoje seria inimaginável, sob o jugo do capitalismo, para estes autores.

Trotsky, por diversas vezes na obra insurge-se contra o sectarismo (dedicando-lhe mesmo um capítulo); no entanto, ao longo da obra toma algumas posições sectárias, por exemplo no capítulo 18, onde declara “uma guerra implacável” a todas as outras correntes do movimento operário, desde a social-democracia até ao anarco-sindicalismo, que chega a categorizar de traidoras da revolução, por terem formas de luta divergentes da por si proposta.

Outra crítica de relevo é o facto de nas propostas apresentadas Trotsky não falar nem de reivindicações sobre saúde ou educação para além das questões ecológicas que hoje tanto mobilizam os grupos trotskistas de todo o mundo. Considero assim que o “Programa de Transição” apenas se debruça sobre questões de organização politica e económica deixando de fora um sem número de questões que podiam e deviam ser reivindicações de quem pretende criar uma sociedade socialista.



Conclusão

A reflexão sobre o “Programa de Transição”, elaborado por Trotsky, pode ser muito útil mesmo nos dias de hoje. Embora a nova ordem mundial e as condições de vida do proletariado não sejam as mesmas e as reivindicações do texto não tenham aplicação na actualidade, este texto vale sobretudo pelo seu método de intervenção política.

Sendo uma síntese das principais ideias politicas do autor este texto não deve ser visto como o catecismo. Por exemplo, quando Trotsky afirma que “as forças produtivas da humanidade deixaram de crescer”, ele está a dizê-lo olhando para a crise capitalista dos anos 30 – o mesmo não pode ser dito hoje. Este texto não é um catálogo de receitas já prontas para serem usadas em qualquer situação de crise ou de mudança politica.

O “Programa de Transição”, à semelhança do “Manifesto Comunista”, é um documento histórico que reflecte sobre uma determinada época da história e expõe algumas ideias fundamentais do marxismo revolucionário. O que o documento tem de importante é o seu método de intervenção política, a que os seus defensores chamam “Método do Programa de Transição”.

Mais do que esta ou aquela palavra de ordem, proposta ou reivindicação, este documento contém um método e a sua concepção dialéctica que permite recuperar a credibilidade do socialismo. Permite repensá-lo a partir das condições de vida e dos desafios do século XXI.

Esta necessidade de reconstrução política e teórica deve basear-se na experiência acumulada pelo movimento socialista e em especial na reflexão realizada sobre ela. Textos como o “Programa de Transição” representam essa experiência e essa reflexão e constituem por isso uma referência fundamental.
Não se trata de copiá-los ou aplicá-los hoje tal qual os lemos no passado, nem mesmo traduzi-los para as condições actuais. O que é necessário é saber o que podemos aprender com eles no sentido de elaborar novos programas actuais e preparados para os desafios do marxismo do século XXI.


Bibliografia

- Deutscher, Isaac. (2005). O profeta armado. 1º edição, Civilização brasileira Editora. São Paulo.
- Deutscher, Isaac. (2005). O profeta desarmado. 1º edição, Civilização brasileira Editora, São Paulo.
- Deutscher, Isaac. (2005). O profeta banido. 1º edição, Civilização brasileira Editora. São Paulo.
- Marx, Karl; Engels, Friedrich. (1997). Manifesto do Partido Comunista. 2º edição, Edições Avante!. Lisboa.
- Mendel, Ernest. (1979). Da comuna ao Maio de 68 – escritos políticos Vol. 1. 1º edição, Edições Antídoto. Lisboa.
- Sagra, Alicia. (2005). História das internacionais socialistas. Instituto José Luís e Rosa Sundermann editora. São Paulo.
- Trotsky, Leon. (1978). Programa de transição. 2º edição, Edições Antídoto. Lisboa.


- Trotsky, Leon. (1978). Revolução traída. 1º edição, Edições Antídoto. Lisboa.

- Trotsky, Leon. (1977). A Revolução permanente na Rússia. 1º edição, Edições Antídoto. Lisboa.


Fonte  http://carlos-faria.blog.com/2008/02/13/o-programa-de-transicao-de-trotsky/


* grifo meu [PK]

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