Tradução: Josimar Teixeira
Este ensaio faz parte de Gramsci e il Novecento, obra publicada em 1999 na Itália e não traduzida entre nós. Trata-se da compilação dos anais do seminário de mesmo nome realizado em Cagliari em 1997, por ocasião do sexagésimo aniversário da morte do pensador italiano. Para uma visão global dos ensaios apresentados naquele seminário, recolhidos no livro mencionado e aqui traduzidos, o leitor deve partir da introdução escrita por Renato Zangheri.
Nos seminários gramscianos da última década, o tema da relação Gramsci-Rússia sempre despertou interesse. Pretendo tratar de um aspecto deste tema, que, embora particular, não é de modo algum secundário, dada a importância das lutas internas no PCUS dos anos vinte em relação ao advento do stalinismo.
A atitude de Gramsci diante dos acontecimentos do período 1923-1926, se se exclui o episódio da carta de outubro de 1926, é ainda pouco conhecida. Os arquivos do Komintern, que agora podem ser consultados, permitem ampliar a base de tal investigação (por ora, pelo menos é o que sei), mesmo sem revelar nada sensacional ou inesperado. Isso provavelmente porque a posição gramsciana emerge de modo bastante claro do material há tempos acessível, material que, no entanto, ainda não foi suficientemente elaborado.
O embate no PCUS, que tem como protagonistas Stalin e Trotski, estava amadurecendo através de todo o ano de 1923 (Lenin já estava ausente por causa da doença) e eclodiu justamente no momento da partida de Gramsci de Moscou para Viena. Stalin, então, era apoiado por Zinoviev, Kamenev e Bukharin como redator do Pravda.
Em Viena, Gramsci pôde seguir a discussão em curso no PCUS através das publicações do Inprekorr. Além disso, podia recorrer à experiência direta feita em Moscou com as personalidades políticas envolvidas no conflito.
Antes dos outros e mais de perto, Gramsci conheceu Trotski. À parte o fato conhecido da troca de cartas relativas ao futurismo italiano, eles se encontraram diversas vezes nas várias reuniões do Komintern a partir da segunda reunião ampliada da Executiva (no IV Congresso e na terceira reunião ampliada da Executiva Trotski fez parte da comissão italiana). Certamente, Gramsci ficou impressionado com Trotski como orador, personalidade de ampla cultura e múltiplos interesses (dão prova disso algumas notas dos Cadernos) [1].
Através do Komintern, Gramsci se aproximou também de Zinoviev e Bukharin, envolvidos, também eles, em todas as discussões de 1922-1923 em torno da “questão italiana”. De Bukharin não deixou juízos que nos fornecessem o caráter das suas relações pessoais. Ao contrário, Zinoviev lhe devia ser vivamente antipático. Na terceira reunião da Executiva ampliada, este desfechou contra Gramsci um ataque duríssimo, acusando-o de duplicidade política [2]. Gramsci não quis lhe responder publicamente, mas replicou com uma carta indignada (o rascunho da carta foi encontrado e publicado por Giovanni Somai) [3].
Quanto a Stalin, parece que Gramsci, durante a primeira estada em Moscou, não o viu nunca nem o ouviu falar. No entanto, houve um episódio que podia influenciar a atitude de Gramsci em relação a Stalin no início da discussão no PCUS.
Na primavera de 1923, foi acertada entre o Komintern e o PCI a formação junto ao PCUS de uma seção dos emigrados comunistas italianos. Também o CC do PCUS parecia ter aceitado a ideia. Apesar disso, no último momento, tudo evaporou: aos comunistas italianos se impôs que se inscrevessem a título pessoal nas células do PCUS no posto de trabalho. A hipótese mais verossímil é que o responsável por isso foi Stalin. Precisamente a ele, com efeito, está endereçada a carta assinada por Gramsci e Armando Cocchi (com cópia no arquivo do Komintern), na qual se contesta o modo equívoco de formular o problema e o fato de se proceder sem consultar Gramsci na qualidade de representante oficial do PCI em Moscou [4]. Para Gramsci, esta poderia ser a primeira oportunidade de conhecer o verdadeiro papel de Stalin dentro da direção do PCUS, além dos seus métodos autoritários de resolver problemas políticos.
Na aparência, a discussão no PCUS tinha como foco os problemas de democracia no partido, problemas que se destacavam nas publicações provenientes de ambas as partes. De tal modo permanecia oculta a substância real do conflito, isto é, o fato de que alinhamentos opostos disputavam, no âmbito do partido, posições exclusivas de comando.
Em Viena, Gramsci não podia conhecer este pano de fundo. Ele só dispunha da informação pública. Daquilo que emerge da sua correspondência vienense com os companheiros na Itália, no início da discussão no PCUS, ele simpatizava antes com a oposição liderada por Trotski. O grupo de Stalin-Zinoviev censurava aos opositores erros “de direita”, atribuía-lhes uma orientação pequeno-burguesa e social-democrata. Ao contrário, Gramsci considerava-os expoentes da esquerda preocupados em salvaguardar o espírito autêntico da Revolução: “Requerendo uma maior intervenção do elemento operário na vida do partido e uma diminuição dos poderes da burocracia, eles querem, no fundo, assegurar à revolução o seu caráter socialista e operário e impedir que lentamente se chegue àquela ditadura democrática, invólucro de um capitalismo em desenvolvimento, que era o programa de Zinoviev e cia. ainda em novembro de 1917” [5]. Além disso, Gramsci, então envolvido no combate ao bordiguismo no PCI, era muito sensível ao problema da democracia dentro do partido e podia considerar convergente com o próprio pensamento a formulação de Trotski, sobretudo aquela relativa ao documento intitulado Novo curso. Com base na própria experiência de não formação da seção italiana em Moscou, Gramsci poderia concordar com Trotski em relação à crítica deste último acerca dos métodos burocráticos utilizados no PCUS sob a direção staliniana. O PCUS e o Komintern estavam amplamente empenhados na preparação da tentativa revolucionária na Alemanha (outubro de 1923). A responsabilidade pelo fracasso desta tentativa foi lançada sobre Trotski e Radek, líderes da oposição. Em janeiro de 1924, a XIII Conferência do PCUS e o Komintern (o presidium da Executiva) intimaram a oposição a reconhecer os erros que ela teria cometido, sob pena da aplicação de medidas disciplinares graves, inclusive expulsão. Gramsci, preocupado, escreve em 27 de março a Terracini, que o substituíra em Moscou junto ao Komintern: “Ficaria agradecido se me informasse sobre o estado atual da questão Trotski-Zinoviev. Ela, parece-me, terá reflexos no V Congresso, e talvez seja preciso assumir uma atitude em relação a ela. [...] A questão me parece sumamente interessante e plena de imprevistos” [6].
Há pouco de volta à Itália, Gramsci está à frente do PCI no auge da crise Matteotti. A situação política italiana o impede de ir a Moscou para o V Congresso do Komintern. Enquanto isso, no PCUS, depois da morte de Lenin, a luta entre Stalin e a oposição se torna cada vez mais encarniçada. Coadjuvado por Zinoviev, presidente do Komintern, Stalin tenta envolver outros partidos comunistas. O V Congresso condena a oposição no tocante à “questão russa”. A partir deste congresso Stalin intensifica a própria atividade no âmbito do Komintern.
A linha do V Congresso acerca da situação do PCUS é adotada por Gramsci. A imprensa comunista italiana abre suas colunas para as publicações de proveniência russa voltadas para atingir Trotski. Em 19 de novembro de 1924, L’Unità começou a republicar o artigo do Pravda intitulado “Como não se deve escrever a história da revolução bolchevique” (que saiu também no Inprekorr) e publicado em resposta ao ensaio de Trotski Lições de Outubro (prefácio ao volume dos escritos de Trotski de 1917) [7]. L’Ordine Nuovo, ressurgido por iniciativa de Gramsci, publica escritos de Stalin [8]. No início de janeiro de 1925, a Executiva do PCI declara sua adesão à orientação da maioria do CC russo em relação a Trotski [9]. A Livraria Editora do PCUS anuncia a publicação do opúsculo de Stalin, O leninismo, além de uma coletânea, Leninismo ou trotskismo, que contém seja as Lições de Outubro, de Trotski, seja as reações polêmicas a este escrito por parte de vários expoentes do PCUS e do Komintern [10]. Por fim, às vésperas da quinta reunião ampliada da Executiva do Komintern (21 de março-6 de abril de 1925), o CC do PCI, mediante proposta de Gramsci (prestes a partir para Moscou), desaprova o juízo de Trotski sobre a situação internacional, bem como sobre as perspectivas da URSS e do movimento comunista [11].
Portanto, em relação ao período inicial da discussão no PCUS a orientação de Gramsci mostra-se substancialmente alterada. Na base desta mudança existem razões de princípio. Por volta da metade dos anos vinte já se revelam os problemas que estariam no centro da sua teoria política elaborada nos Cadernos (hegemonia, sociedade civil, guerra de posição e guerra de movimento, etc.). Tomando este caminho, afasta-se necessariamente cada vez mais de Trotski até chegar enfim a defini-lo “o teórico político do ataque frontal num período em que este é apenas causa de derrotas” [12]. Naturalmente, isso não comporta afinidade no plano da teoria política com a parte oposta, isto é, com Stalin. Mas, posto diante de uma escolha política, Gramsci escolheu em favor da maioria do CC russo contra Trotski. Esta escolha é confirmada também nos Cadernos (deve-se lembrar a célebre nota sobre “a divergência fundamental entre Leão Davidovitch e Bessarione como intérprete do movimento majoritário”) [13].
Durante a V Executiva ampliada, Gramsci não tomou parte na discussão sobre a “questão russa” explicada por Bukharin. No entanto, teve a oportunidade de encontrar Stalin eleito para a presidência e para várias comissões. Sem dúvida estava presente por ocasião do discurso de Stalin na comissão iugoslava (sendo ele mesmo membro desta comissão, falou na mesma sessão) [14]. Ao que parece, um contato pessoal entre Gramsci e Stalin não aconteceu. Todavia, a impressão imediata poderia contribuir para modificar em alguma coisa (em sentido positivo) aquela imagem de Stalin que Gramsci havia formado durante a primeira estada em Moscou.
Enquanto isso, na comissão italiana da Executiva ampliada, o PCI foi censurado (por parte de Manuilski e Humbert-Droz) por um certo atraso na tomada de posição sobre o problema ideológico do trotskismo [15]. A mesma coisa aconteceria na fase seguinte, caracterizada por um alinhamento já diverso das forças em luta no PCUS (Zinoviev, que passara à oposição, forma um bloco com Trotski contra Stalin).
Desde o início de 1926 a direção do PCI está sob pressão crescente exercida por Moscou, que pretende do partido a condenação das oposições não só por causa do fracionismo, mas também da substância do conflito (todos estes episódios foram amplamente comentados por Aldo Natoli) [16]. Nesta fase, parte muito ativa teve Togliatti, representante do PCI junto à Executiva do Komintern. Gramsci insiste em que o PCI não se pronuncie antes de ter todas as informações necessárias. De resto, esta era sua atitude mesmo antes da quinta reunião ampliada da Executiva (é o que se entrevê nos argumentos de Grieco e Scoccimarro aduzidos para explicar o “atraso” censurado ao PCI) [17].
Parece que, pouco antes da prisão de Gramsci, o PCI recebeu através do Komintern algumas informações mais detalhadas sobre a situação do PCUS. De fato, em setembro de 1926, foi enviada à Itália a primeira parte do sumário (em francês) da sessão de julho do CC russo que procedeu a medidas disciplinares contra os oposicionistas, excluindo Zinoviev do birô político. Desde logo, atribuía-se a Gramsci a obrigação de providenciar que os membros do CC italiano tomassem conhecimento dos fatos com todas as cautelas conspirativas [18].
São estes os antecedentes da famosa carta de Gramsci ao CC do PCUS. Portanto, esta carta deve ser relacionada a todo o percurso ideal por ele feito entre 1923-1926 acerca da “questão russa”. Gramsci finalmente tomou posição quanto ao mérito do conflito, declarando “fundamentalmente justa” a linha política da maioria e criticando as oposições. É uma atitude amadurecida longamente através, entre outras coisas, do reexame crítico das concepções de Trotski. Por outro lado, é inteiramente lógica e coerente a preocupação de Gramsci acerca da vontade da maioria de “vencer de modo esmagador esta luta” e recorrer a medidas excessivas. De fato, ele não estava nunca disposto a concordar com certas escolhas apressadamente e às cegas: sua adesão era sempre crítica.
Notas
[1] Cf., por exemplo, A. Gramsci. Quaderni del carcere. Org. V. Gerratana. Turim: Einaudi, 1975 (daqui por diante Q), p. 893, 1.507, 2.164.
[2] Rossjskij Centr Chranenija i Izu?enija Dokumentov Novej?ej Istorii (RCChIDNI), f. 495, op. 161, d. 76.
[3] G. Somai. “Gramsci al Terzo Esecutivo Allargato (1923): i contrasti con l’Internazionale e una relazione inedita sul fascismo”. Storia contemporanea, out. 1989, p. 809.
[4] RCChIDNI, f. 508, op. 1, d. 99-a, ll. 2-4. A carta está escrita em russo, aliás titubeante e incorreto. A título de explicação também está anexada a carta precedente enviada ao CC do PCUS.
[5] P. Togliatti. La formazione del gruppo dirigente del Pci. Roma: Riuniti, 1962, p. 187-8 ([Gramsci] a Palmi, Urbani e C., Viena, 9 de fevereiro de 1924).
[6] Ib., p. 263.
[7] Cf. a “introdução” à tradução do artigo em A. Gramsci. La costruzione del Partito comunista (1923-1926) . Turim: Einaudi, 1971, p. 211-2. No entanto, o texto atribuído a Gramsci é dele somente em parte, a saber, a que contesta certas afirmações do Avanti! (o que vem antes é reproduzido do Inprekorr). Deve-se observar que o tom usado no tocante a Trotski pelo próprio Gramsci é inteiramente diferente daquele violentíssimo do Inprekorr:
[8] Cf. L’Ordine Nuovo, 1 nov. e 15 nov. 1924, 1 mar. 1925.
[9] Boletim do Partido Comunista da Itália (Seção da Internacional Comunista), jan. 1925, RCChIDNI, f. 495, op. 25, d. 629, l. 8 (verso).
[10] Ib., l. 11 (verso); L’Ordine Nuovo, 1 mar. 1925.
[11] Cf. Gramsci. La costruzione del Partito comunista, cit., p. 473.
[12] Q, p. 801-2.
[13] Q, p. 1.729.
[14] Cf. o discurso de Gramsci em RCChIDNI, f. 495, op. 163, d. 319, ll. 16-28.
[15] Ib., d. 325, ll. 2, 19.
[16] A. Natoli. “Il Pcd’I e il Komintern nel 1926. Appunti di storia e storiografia”. In: A. Natoli e S. Pons (Orgs.). L’età dello stalinismo. Roma: Riuniti, 1991.
[17] RCChIDNI, f. 495, op. 163, d. 319, ll. 7-8, 10-11.
[18] Ib., f. 495, op. 18, d. 465-b, l. 10.
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