27 de jan. de 2012

A sociedade prescisa de uma polícia cidadã e democrática

Diário Liberdade - [Antonio Carlos Mazzeo] "Não sei como", mas a PM tem meu endereço eletrônico ... e acreditem, me enviou um e-mail "explicativo" sobre a ação (desastrosa) daquela corporação no Pinheirinho ....

O e-mail, (noreply@policiamilitar.sp.gov.br) procurou justificar o injustificável, a partir de um conjunto de informações que misturaram, de modo quase infantil, o obviamente conhecido com distorções da realidade.

O mais incrível disso tudo, é que a PM/SP não admite sequer que possa ter havido excessos na sua ação. Nada, a não ser cínica autopromoção corporativa.

Objetivamente, a divulgação desse e-mail propagandístico reflete o desespero dessa corporação policial-militar diante do profundo desgaste e descrédito em relação à sociedade. Ainda que possam existir segmentos que apoiem e compartilhem a concepção de mundo existente na PM, a grande maioria da sociedade, de fato, não a vê com bons olhos.

A desconfiança da população é de tal monta que, surpreendentemente ouvi ontem, de uma apresentadora de um conhecido telejornal matutino, ao comentar mais uma das trapalhadas da PM/SP (na Marginal Pinheiros, em São Paulo, que acabou expondo a vida dos cidadãos em tiroteio irresponsável em meio ao trânsito e que provocou a morte de senhor aposentado) que quando a polícia chega "queremos chamar o ladrão"!

Tenho dito, em todas as vezes que me refiro às PMs, que essas corporações representam uma forma de organização policial obsoleta e decrépita, porque produto do período da ditadura militar-bonapartista, e em descompasso com um país que almeja a institucionalização da democracia em moldes clássico-burguês. Melhor dizendo, as PMs constituem uma uma herança da forma societal autocrática do período imperial, com formação das guardas nacionais, ou como foram designadas oficialmente, Corpo de Guardas Municipais Permanentes, criados no período regencial (1831 - 1840), momento de muitas revoltas populares, como a Cabanagem, no Pará, a Balaiada no Maranhão, a Sabinada na Bahia e a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, essa maior e mais longa, e com a participação da oligarquia dissidente do poder central. Todas essas revoltas foram afogadas em sangue, em brutais repressões para garantir tanto a unidade nacional ameaçada, como o poder das oligarquias hegemônicas e a autocracia de uma burguesia de caráter mercantil e agroexportadora.

De modo que esse corpo policial nasce para garantir não somente o poder central, como também os poderes regionais, sob comando dos latifundiários (no caso de São Paulo, o fazendeiro Tobias de Aguiar, não por acaso o patrono da PM/SP) todos promovidos a "coronéis" do Corpo de Guardas. Mais tarde, na República Velha, esse corpo de guardas transforma-se em Força Pública, mais uma vez a serviço das oligarquias autocráticas, com intuito de repressão dos movimentos populares, em especial, a Grave de 1917, em SP, Revolta dos Marinheiros e a revolta de Canudos, entre outras.

A ditadura militar-bonapartista, transformou essa força em Polícia Militar, ainda na perspectiva da autocracia burguesa, para reprimir os movimentos operário-populares e conter quaisquer possibilidades de oposição à ditadura.

Ora, o que podemos depreender desse sumaríssimo histórico, é que essa organização policial-militar, em seu núcleo genético, atua como corpo estranho à sociedade. Dizendo de outro modo, numa formação social de extração colonial, como a brasileira, onde a chamada "sociedade civil" (ou na definição de Marx, a sociedade civil burguesa -bürgerliche gesellschaft ) era "gelatinosa" e consequentemente fragmentada, utilizava-se desse tipo de força policial e, inclusive das forças armadas, para garantir a autocracia burguesa e a exclusão dos trabalhadores da vida e dos processos decisórios nacionais.

No momento histórico atual, onde a luta de classes aponta para um processo de democratização (aqui, no sentido das formulações lukacsianas) de longa-duração, uma das tarefas imediatas é reconstruir as instituições de poder do Estado e entre as prioridades, está a urgente restruturação das forças de segurança internas, quer dizer o conjunto da força de polícia. O que a sociedade deve discutir é o caráter de uma força policial, que obrigatoriamente deve ser cidadã e comprometida com a democracia, o que não encontra reverberação na atual conformação das arcaicas PMs. Não é mais possível deixar a segurança pública nas mãos de tecnocratas e de autocratas. A sociedade tem o direito e a obrigação de participar decisoriamente das políticas públicas de segurança.

Há que se afrontar urgentemente esse problema, há que se evitar que corpos policiais fiquem nas mãos de governadores despreparados e demagógicos, comprometidos com interesses locais ou de classe, que ignora de per si, os interesses gerais da sociedade.

Esta é uma tarefa que não pode ser adiada.

Antonio Carlos Mazzeo é professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e membro do Comitê Central do PCB.
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grifo meu [PK]

Fonte: Facebook do autor.

23 de jan. de 2012

Pinheirinhos, a verdade

Blog do Pachá - Minha posição quanto às questões sociais é bem clara; simplificando meu pensamento sempre serei favorável a uma distribuição justa de renda e condições dignas a toda a população. No entanto dizer isso já tornou-se um clichê e é nos momentos de confronto social que as posições ficam evidentes.

Algumas pessoas dizem não ter opinião formada e esperam alguém escrever uma crônica bonita falando mal da polêmica em torno do assunto. Aí caem de pau partilhando a crônica que definiu suas posições pelo Facebook ou em correntes de e-mails. Outros atacam agressivamente movimentos sociais sem sequer ouvir suas reivindicações. Criminalizam quaisquer revoltas populares. Não percebem que geralmente para haver quórum para um movimento organizado é porque há uma causa em comum àqueles cidadãos que se organizaram. E para chegarem a esse ponto, na maior parte das vezes, aquelas pessoas já tentaram e não conseguiram ter algum direito social atendido.

Mas seria muito errado generalizar as posições pessoais como se todas as pessoas seguissem cartilhas doutrinárias. Eu, por exemplo, não sou filiado a nenhum partido e não pretendo nunca me filiar, pois há uma necessidade em mim de liberdade para mudar de opinião sempre que achar justo. Por isso não quero aceitar cegamente opiniões alheias. Não posso negar, no entanto, que meu conceito de Justiça passa sim pelas reivindicações de muitos movimentos sociais e um deles é o dos trabalhadores sem teto.

Mais da metade das poucas pessoas que começaram a ler o post já abandonaram a leitura até aqui - tenho certeza. Uma pena, pois vou embasar meu texto em fatos para demonstrar minha posição. Primeiramente há no Brasil, de acordo com dados de 2011 da Câmara dos Deputados um déficit habitacional de 5,5 milhões de habitações. Considerando 4 a 5 pessoas em cada habitação a necessidade é para entre 22 e 27,5 milhões de pessoas de acordo com os dados oficiais.

O site Transparência São Paulo diz que neste estado há uma carência de habitação para 5 milhões de habitantes e, além disso 6,2 milhões vivem em áreas ainda não regularizadas e sem as mínimas condições de habitabilidade. Seriam necessários 60 anos de políticas públicas adequadas para zerar esse déficit no estado.

Na cidade de São José dos Campos em 2004 uma área de 1 milhão e 300 mil metros quadrados completamente vazia foi ocupada por pessoas que faziam parte das estatísticas do governo. Gente que não tinha condições dignas de moradia ou que moravam longe demais dos grandes centros e por isso perdia oportunidades de trabalho, além de dinheiro e tempo com os transportes públicos.

Uniram-se aos ocupantes 300 moradores que haviam sido despejados de outra ocupação ali perto, a do Campo dos Alemães. Outra ocupação que teve seus moradores despejados com a promessa do governo de uma moradia digna em outro lugar.

Cerca de 7 mil pessoas de acordo com a Polícia Militar e mais de 10 mil de acordo com os militantes habitaram o lugar. Lá se estabeleceram, construíram e ampliaram suas casas, tiveram filhos, montaram comércios, trabalharam. Nos últimos 8 anos deram ao lugar uma função social prevista na Constituição Federal.

O enorme terreno, no entanto, pertence à massa falida de uma das empresas fantasmas de Naji Nahas; a Selecta S/A, que deve R$15 milhões só em impostos à prefeitura de São José dos Campos e nunca teve sequer 1 funcionário, de acordo com O Observador Político.

Naji Nahas, que não é permitido de pisar em nada mais nada menos do que 40 países por conta de seus crimes internacionais, ficou conhecido no Brasil depois de quebrar a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Ele captava empréstimos em bancos para suas empresas fantasmas e investia os empréstimos na Bolsa através de laranjas que recebiam um percentual do lucro. É uma forma de fazer negócios consigo mesmo e se blindar de prejuízos. Lucro certo que foi parar entre outros na conta do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta.

Depois descobriu-se o envolvimento de outras figuras públicas nas negociatas de Nahas. Pitta, Daniel Dantas, Salvatore Cacciola e outros bandidos foram desvelados através da Operação Satiagraha da Polícia Federal, que atualmente é também tema de investigação por ter vazado dados para a Rede Globo ainda durante a apuração. Para entender mais das negociatas mencionadas veja o infográfico feito pela equipe UOL.

Pois bem, no final de dezembro a decisão judicial saiu e foi favorável ao despejo. Desde então começou uma guerra entre entidades judiciais favoráveis ao despejo das famílias e destruição de tudo que foi construído no terreno e entidades favoráveis ao uso constitucional das terras. Depois de alguns atos de violência policial e muito terror psicológico às famílias chegou a ordem que parecia definitiva.

Uma ordem suspendendo a reintegração de posse foi assinada por um juíz federal, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo disse que é independente. Por isso a OAB disse haver uma quebra do pacto federativo e o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo revelou ter sido surpreendido pela decisão unilateral paulista.

De acordo com o portal R7, o juiz Rodrigo Capez, que responde pela presidência do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) afirmou neste domingo que o Tribunal de São Paulo e o Tribunal Regional Federal são hierarquicamente equivalentes e a decisão de um não pode se sobrepor à do outro. Rodrigo Capez é irmão do Deputado Estadual pelo PSDB Fernando Capez.

Por volta das 6h da manhã de domingo cerca de 2 mil policiais militares chegaram enquanto a maioria da população dormia à região para, com força desproporcional desalojarem as 1600 famílias. Sindicatos próximos também foram cercados para não mandarem apoio, líderes comunitários sumiram temporariamente e deputados e vereadores simpatizantes à causa foram isolados pela polícia de acordo com o Vírus Planetário. Além dos policiais guardas municipais de São José dos Campos foram à batalha com armas de fogo e usando luvas de borracha (para no caso de uma eventualidade não ser identificado o autor do disparo).

Celulares e máquinas fotográficas foram apreendidos também. Os relatos são de espancamentos e até mortes. Polícias de 33 municípios foram convocadas para esta barbárie, de acordo com o Diário Liberdade. Militantes falam em até 8 mortos. Nenhuma morte foi noticiada até agora na grande mídia.

Há informações contraditórias de que políticos como o deputado Ivan Valante (PSOL), o senador Eduardo Suplicy (PT) e o líder socialista Zé Maria (PSTU) foram isolados pelas forças de repressão na Escola Edgar, que posteriormente foram desmentidas pelas assessorias de imprensa dos parlamentares que afirmaram que estavam em negociação na escola. Parte da imprensa afirma que o senador Suplicy não esteve no Pinheirinho domingo, e sim no sábado, mas o UOL confirma a detenção. Há jornalistas que confirmam que os políticos e os professores Almir Bento Freitas e Lourdes Quadros Alves também foram detidos na Escola Edgar. Almir e Lourdes são diretores do Sinpeem (Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo). Os deputados federais Paulo Teixeira (PT) e Carlinhos Almeida (PT) também foram ao local tentar uma negociação.

A Folha de SP mostra as condições deploráveis dos "abrigos" para onde foram mandados os desalojados. Duas tendas sem parede. Uma delas com chão de terra. Como choveu na cidade esse domingo a terra virou lama. Policiais jogam bombas de gás com frequência nas pessoas que estão dentro das lonas. Os depoimentos dados ao Estadão são lamentáveis e bastante reais. A reportagem parecia boa, mas o Estadão quis fazer juz à fama e terminou falando do trânsito causado pelos manifestantes.

O ministro Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral da Presidência) disse neste domingo que a ação "atropelou" as negociações para a desocupação pacífica do local. Um dos assessores do ministro, inclusive, que estava no terreno, foi atingido com uma bala de borracha na perna, de acordo com a Folha. E o governador Alkmin elogiou a ação policial para a CBN.

Isso aqui descrito são os fatos ocorridos, recolhidos de diversas fontes. A maior parte da grande mídia, que foi de onde eu tirei minhas informações, prefere dar ênfase ao carro da afiliada da Globo pegando fogo. Mesmo supondo que foram os moradores da ocupação que tacaram o fogo nos carros é difícil condenar quem não tem direitos no dia-a-dia e que a mídia só mostra como bandidos. Esse vídeo mostra quem são os grandes bandidos de Pinheirinhos:

O Estado é quem decide o que fazer com o terreno que pertence à massa falida de uma corporação. Seria mais barato e, incontestavelmente mais fácil ao Estado investir na região ocupada, que até asfaltada e com áreas de lazer e para a prática de esportes já estava. Seria melhor investir no desenvolvimento da região e das pessoas que ali moravam e trabalhavam do que procurar agora reduzir as taxas de desemprego e o déficit habitacional que vão aumentar por conta do despejo. Seria mais humano promover a ordem a Pinheirinhos e a seus moradores que já tinham ali uma vida construída do que implantar o terror de Estado com a truculência a essas famílias sem deixar sequer que retirassem seus pertences civilizadamente como pode ser visto nos vídeos. Depois ninguém sabe porque a população não se sente representada pelo Estado.

"Estávamos junto à população de Pinheirinho refugiados numa Igreja, a polícia pela rua da frente inúmeras vezes atacando bomba e muitos tiros para intimidar ainda mais a população. Eis que chega a Polícia Federal com o Secretário Nacional de Direitos Humanos. Pelo menos por algumas horas a população respirará sem tanto medo. Triste história." (Nathalie Drumond, do Pinheirinho)

"Em São José dos Campos. Um dos dias dias mais revoltantes (se não o mais) da minha vida. Milhares de pessoas andando a esmo no entorno do Pinheirinho, com suas malas, pertences, filhos, bichos de estimação... para onde vão?

Como aceitar que suas casas (já de alvenaria, nas quais investiram cada pouquinho que podiam para construir), seus lotes (com flores, árvores) vão ser completamente destruídos para que aquele terreno volte a ser o que era: NADA. Um buraco vazio no meio de uma cidade, para favorecer a especulação imobiliária. é muito importante que façamos a pergunta: a quem essa atrocidade favorece?

A quem favorece a política de terrorismo da PM de São Paulo? Não se poder andar na rua do seu próprio bairro porque a qualquer momento uma viatura (de quem supostamente te protege) vai virar a esquina e te meter uma saraivada de balas de borracha.

Acabamos de voltar da igreja próxima ao Pinheirinho. São milhares de pessoas lá... pergunto de novo. Para onde elas vão? Elas estão paradas no meio da rua e não têm a quem recorrer."

(Maia Fortes, do Pinheirinho)

Fonte: Diário Liberdade

22 de jan. de 2012

À memória de Antonio Gramsci

Prestes a Ressurgir - [Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro] Em 22 de janeiro de 1891 nascia, em Ales (Cagliari, Sardenha, Itália), Antonio Gramsci, um dos mais importantes pensadores marxistas e valoroso combatente comunista, uma dupla condição que não podemos esquecer.

"Alguns me consideram um demônio, outros quase um santo. Não quero ser mártir nem herói. Acredito ser simplesmente um homem médio, que tem suas convicções profundas e não as troca por nada no mundo." Carta de Gramsci, do cárcere, a seu irmão Carlo, em 12 de setembro de 1927.

Morreu em 1937, vítima do ditador fascista Benito Mussolini. Em 1926, Gramsci foi condenado por um tribunal fascista, em 1926, a vinte anos de detenção, num processo no qual o promotor, com a brutalidade típica dos fascistas, mencionava a necessidade de "evitar que esse cérebro continue funcionando". Apesar das duras condições da prisão, Gramsci deixou ao morrer uma obra de grande importância escrita no cárcere: 33 cadernos manuscritos, totalizando 2.848 páginas, conhecidos como os Cadernos do cárcere. Coube ao dirigente revolucionário italiano um papel extraordinário no que diz respeito à teorização do Estado, do poder e da política. Tendo por base o conceito de hegemonia, elaborado e amplamente utilizado por Lênin, em particular em sua obra O Estado e a Revolução, Gramsci o viria a desenvolver de forma criativa. As reflexões de Gramsci se inscrevem como um capítulo fecundo na tradição marxista, estabelecendo uma perspectiva crítica capaz de entender o mundo e, o que é mais importante, transformá-lo. Contudo, a leitura dos escritos de Gramsci não é uma tarefa fácil. Indiscutivelmente, nas reflexões dos Cadernos do cárcere está presente a proposição básica de que as classes sociais, o conflito de classes e a consciência de classe existem e desempenham um papel na história.

Para entender Gramsci

Para compreender um autor, é necessário conhecer profundamente o contexto histórico-político-cultural com o qual está envolvido. Um pensador da envergadura de Antonio Gramsci requer entender o processo de formação da sua personalidade política e intelectual. A vivência dos momentos mais dramáticos das lutas que agitaram a Europa e, particularmente, das mobilizações sociais, políticas e econômicas que levaram, ao menos na Rússia, à vitória da Revolução em 1917. O progressivo deslocamento de Gramsci da esfera de influência do neo-idealismo, destacando o distanciamento crítico e a superação em relação ao pensamento de Benedetto Croce e Giovanni Gentile. Seu referencial marxista assumido, que o leva a formular propostas interpretativas voltadas para a explicação de modos de dominação social em meio à dinâmica do conflito, da luta de classes. A espinhosa interlocução crítica de Gramsci no interior do próprio marxismo e os embates travados com as correntes mecanicistas, dogmáticas e messiânicas [1]. A problemática gramsciana de "explicar a dominação de classes, recusando determinismos de cunho mecanicistas e procurando explicitar mecanismos culturais (sem reivindicar-lhes exclusividade ou determinismo de pólo inverso) que alimentam a dominação, bem como espaços de resistência a esta dominação que se constroem em meio às lutas de classes" [2].

Tanto os leitores já familiarizados com Antonio Gramsci quanto os novos, a meu ver, dispõem da necessidade de contato com os chamados "especialistas" ou intérpretes dos escritos gramscianos. Justamente por apresentar-se – nas palavras do próprio autor – como um conjunto de notas "escritas ao correr da pena, como rápidos apontamentos para ajudar a memória" [3], a obra da maturidade de Antonio Gramsci – os Cadernos do cárcere – tem proporcionado as mais variadas interpretações teóricas e políticas da mesma – e até contrastantes leituras [4]. Decerto, as condições peculiares nas quais os Cadernos foram escritos parecem corroborar para que muitos leitores acentuem além da conta o caráter fragmentário da obra, acarretando um instrumental gramsciano distorcido e, de todo, retirado do contexto em que faz sentido. Acaba-se, em muitos casos, contando menos o que Gramsci disse do que aquilo que os seus leitores julgam encontrar em sua obra – o anacronismo é freqüente. Daí a necessidade de uma correta contextualização e um estudo filológico dos textos, ou seja, uma leitura "genética" dos Cadernos do cárcere, considerando a riqueza de seus contrastes, de suas ambigüidades e até de seus limites [5]. Isso permite aos leitores de Gramsci, veteranos ou novatos, encontrar o trajeto unitário e coerente do seu pensamento, possibilitando ler os Cadernos como resultado de uma concepção de mundo orgânica e unitária.

O conjunto de categorias desenvolvidas por Antonio Gramsci constitui um campo aberto de criação histórica, apesar dos limites inerentes a qualquer conceito. Mas o que explica essa "adoção" de Gramsci é a análise da validade operatória de muitas de suas categorias para formular interpretações mais aprofundadas da realidade concreta no âmbito nacional ou internacional.

Notas

[1] Para compreender o processo de formação política e intelectual de Gramsci ver: LOSURDO, Domenico. Antonio Gramsci: do liberalismo ao "comunismo crítico". Rio de Janeiro: Revan, 2006; MAESTRI, Mário e CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

[2] MATTOS, Marcelo Badaró. "Os historiadores e os operários: um balanço". In: ____ . (coord.). Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca: 1945-1964. Rio de Janeiro: APERJ / FAPERJ, 2003, p. 33.

[3] GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. V. 1. Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 85.

[4] Por exemplo, há muita polêmica em torno das interpretações dos usos de "sociedade civil", "sociedade política" e Estado em Gramsci.

[5] Muitos estudos atendem a esse propósito, entre eles: BARATTA, Giorgio. As rosas e os Cadernos: o pensamento dialógico de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004; BIANCHI, Álvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008; COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007; SEMERARO, Giovanni. Gramsci e a sociedade civil: cultura e educação para a democracia. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro é historiador e professor de história no Rio de Janeiro.

GRIFO MEU [PK]


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8 de jan. de 2012

A contradição política da Teoria Crítica de Adorno

Hans-Jürgen Krahl    

A biografia intelectual de Adorno está, até em suas próprias abstrações estéticas, marcada pela experiência do fascismo. O modo de refletir sobre essa experiência, que reproduz nas criações artísticas a indissolúvel conexão entre crítica e sofrimento, fixa a insustentabilidade da pretensão de negação do tempo, que assinala os limites de tal pretensão. Na reflexão sobre a violência fascista impulsionada pelas catástrofes econômicas naturais da produção capitalista, sabe a "vida estragada" que, por assim dizer, não pode subtrair-se ao torvelinho das contradições ideológicas da individualidade burguesa, cuja inexorável decomposição chegou a reconhecer. O terror fascista não só produz a inteligência do hermético caráter coercitivo das sociedades de classe altamente industrializadas; fere também a subjetividade do teórico e enrijece as barreiras de classe em sua capacidade cognitiva. Consciência disso é o que expressa Adorno na introdução às minima moralia: "O poder violento que me desterrou, impediu-me ao mesmo tempo seu cabal conhecimento. Todavia, não me atribuía eu a culpa, em cujo círculo cai quem, à vista do indizível que aconteceu de forma coletiva, se avilana a falar do individual". 

Hans-Jürgen Krahl em uma assembleia
de estudantes socialistas revolucionários
em 1968 (o segundo a partir da
esquerda)
Dir-se-ia que Adorno, através da taxante crítica da existência ideológica do individuo burguês foi irresistivelmente transportado às ruínas deste.  Mas, então, Adorno não deixaria nunca para trás a solidão da emigração. O destino monadológico do individuo isolado pelas leis de produção do trabalho abstrato se reflete em sua subjetividade intelectual. Daí que não lograra Adorno traduzir sua paixão privada pelo sofrimento dos condenados dessa terra num partidarismo organizado da teoria emancipadora dos oprimidos.

A inteligência teórico-social de Adorno, conforme à qual "a sobrevivência do nacional-socialismo na democracia" haveria que se ver como "muito mais perigosa potencialmente que a sobrevivência de tendências fascistas hostis à democracia", faz com que seu progressivo medo ante uma estabilização fascista do capital monopolista restaurado se troque em pânico regressivo ante as formas de resistência prática contra essa tendência do sistema.

Compartilhava essa ambivalência da consciência política com muitos intelectuais alemães críticos, para os quais uma ação socialista de esquerda, o que conseguiria é liberar o potencial do terror fascista de direita. Com isso, entretanto, fica qualquer práxis denunciada a priori como cego ativismo, e a possibilidade de crítica política, definitivamente, boicotada: apaga-se a diferença entre uma práxis em principio corretamente pré-revolucionária e suas patológicas formas pueris nos incipientes movimentos revolucionários.

À diferença do proletariado francês e de seus intelectuais políticos, falta na Alemanha uma tradição ininterrupta de résistance violenta, e, por isso, não se dão as premissas históricas para uma discussão, livre de irracionalidades, sobre a legitimidade histórica da violência. O poder violento dominante, que, conforme a própria análise de Adorno, seguiria tendendo, também depois de Auschwitz, a uma renovada fascistização, não seria tal se a marxiana "arma da crítica" não devesse ser complementada com a proletária "crítica das armas". Só então a vida teórica da Revolução é a crítica.

Essa contradição objetiva na teoria de Adorno transformou-se em aberto conflito e terminou fazendo de seus discípulos socialistas inimigos políticos de seu mestre filosófico. Por muito que Adorno visse na ideologia burguesa da busca desinteressada da verdade um reflexo do intercâmbio de mercadorias, não podia menos que desconfiar de qualquer indício de luta de tendências políticas no diálogo científico.

Mas sua opção política, um pensamento que deve chegar à verdade pela via de se orientar por si próprio para a transformação prática da realidade social, perde força imperativa se não logra determinar-se também em categorias organizativas. Cada vez mais se distanciou Adorno do conceito dialético da negação, da necessidade histórica de um partidarismo objetivo do pensamento, conceito que, na determinação por diferenças específicas que fizera Horkheimer entre a teoria crítica e a teoria tradicional, se mantinha ao menos nas linhas programáticas da "unidade dinâmica" do teórico com a classe dominada.

A abstração desses critérios acabou levando Adorno, em seu conflito com o movimento de protesto estudantil, a uma cumplicidade fatal, e apenas entrevista por ele mesmo, com os poderes dominantes.  A controvérsia não se reduziu de modo algum ao problema da privada abstinência de práxis, senão que a incapacidade para responder à questão organizativa é indício de uma insuficiência objetiva da teoria de Adorno, a qual, entretanto, fixava a práxis social como uma categoria cognitivo-crítica e teórico-social central.

Não obstante, a reflexão de Adorno transmitiu aos estudantes politicamente conscientes as categorias emancipadoras, desveladoras do poder, que tacitamente se correspondem com as mudadas condições históricas das situações revolucionárias nas metrópoles, as quais já não se podem seguir determinando a partir de experiências denegridoras diretas.

A micrológica força expositiva de Adorno colocava em dia, a partir da dialética da produção de mercadorias e de seu intercâmbio, a enterrada dimensão emancipadora da crítica marxiana da economia política, a autoconsciência que, enquanto teoria revolucionária, quer dizer, como uma doutrina cujos assertos constroem a sociedade do ponto de vista da transformação radical, perdeu-se entre o grosso dos economistas teóricos marxistas atuais.  A reflexão lógico-essencial de Adorno sobre as categorias da coisificação e do fetichismo, da mistificação e da segunda natureza, transmitiu a consciência emancipadora do marxismo ocidental dos anos vinte e trinta, de Korsch e Lukács, de Horkheimer e Marcuse, tal como este se constituiu em oposição ao marxismo soviético oficial.

Adorno decifrou a origem e a identidade em sua crítica filosófica da ideologia ontológico-fundamental do Ser e da ideologia positivista da faticidade como categorias de dominação da esfera da circulação, de cuja liberal dialética legitimadora da moralidade burguesa - a aparência do intercâmbio justo entre proprietários de mercadorias em pé de igualdade  -  fazia tempo que se desprendera.

Mas o próprio instrumental teórico que permitiu a Adorno pôr em obra esse saber da sociedade em seu conjunto, obscureceu a visão das possibilidades históricas de uma práxis liberadora.

Em sua crítica da ideologia da morte do indivíduo burguês há um vacilante momento de duelo. Mas Adorno não pode superar imanentemente, no sentido hegeliano do conceito, esse último resto de radicalismo burguês de seu pensamento.  No que ficou ancorado, fixada a aterrada visão no terrível passado: a consciência tardígrada, que só começa a compreender chegado o ocaso.

A negação adorniana da sociedade capitalista tardia manteve-se abstrata e se fechou à exigência de determinação da negação determinada, aquela categoria dialética da tradição de Hegel e de Marx com a qual ele sempre se sentiu em dívida. Em sua última obra sobre a Dialética negativa, o conceito de práxis do materialismo histórico já não se questiona em relação à transformação social de suas determinações formais históricas, as formas do tráfico burguês de mercadorias e da organização proletária. Em sua teoria crítica se reflete a extinção da luta de classes como atrofia da compreensão materialista da história.

É verdade que em outro tempo a alienação da teoria em relasção à práxis liberadora do proletariado foi para Horkheimer programática; mas a forma burguesa de organização da teoria crítica já então não permitiu cobiçar conjuntamente programa e realização.  A destruição do movimento operário pelo fascismo e a aparentemente irrevogável integração do mesmo na reconstrução do capitalismo alemão ocidental do pós-guerra alteraram o sentido dos conceitos da teoria crítica. Necessariamente tiveram que perder em determinação, mas esse processo de abstração cumpriu-se às cegas.

A história concreta e material, que Adorno contrapunha criticamente ao "conceito a-histórico da história", à historicidade de Heidegger, migrou cada vez mais de seu conceito de práxis social, até terminar, em seu último livro sobre a Dialética negativa, a tal ponto esgotado, que se diria assimilado à miséria transcendental da categoria heideggeriana.

É verdade que Adorno insistiu com razão no último Congresso alemão de sociologia na validade da ortodoxia marxista: as forças produtivas industriais continuariam sendo organizadas em relações capitalistas de produção e a dominação política fundar-se-ia, antes como agora, na exploração econômica do trabalho assalariado. Por muito, todavia, que sua ortodoxia andasse naquele Congresso em choque com a sociologia alemã ocidental dominante, continuava sendo inconsequente, pois as formas categoriais já não guardavam relação com a história material.

Esse crescente processo de abstração com respeito à práxis histórica resultou numa transformação regressiva da teoria crítica de Adorno, reduzindo-a às formas contemplativas, a duras penas ainda legitimáveis, da teoria tradicional.
O processo de tradicionalização sofrido por seu pensamento converte sua teoria numa figura tresnoitada da razão na história. A dialética materialista das forças produtivas encadeadas se reflete nos planos de seu pensamento na representação da teoria que se encadeia a si própria, inextricavelmente atada à imanência de seus conceitos. "Passaram-se os tempos da interpretação do mundo e do que se trata é de transformá-lo, então a filosofia tem que despedir-se...  o que está à altura dos tempos não é a Primeira Filosofia, mas uma última". Essa última filosofia de Adorno não quis nem pôde despedir-se de sua despedida.

Hans-Jürgen Krahl (17 de janeiro de 1943 - 13 de fevereiro de 1970) foi o assistente de Adorno na Universidade de Francfort del Meno e, junto com Rudi Dutschke, o principal dirigente do movimento estudantil socialista na República Federal Alemã dos anos 60. 

Tradução para www.sinpermiso.info: María Julia Bertomeu
Tradução para o português: Sergio Granja

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