22 de abr. de 2013

IMPRENSA e DITADURA: trajetórias intelectuais e formação de consenso

 Carla Luciana SILVA  

 Professora da Graduação e do Mestrado em História da UNIOESTE, Campus de Marechal Candido Rondon. 

Esse artigo se insere na pesquisa que realizo sobre a atuação de jornalistas brasileiros no processo de criação de consenso sobre a Ditadura Civil-Militar instaurada em 1964 no Brasil. Mais especificamente, busco investigar a trajetória de jornalistas que possuem grande poder de divulgação nos meios de comunicação brasileiros, especialmente Alexandre Garcia, e Elio Gaspari. Buscamos investigar as contribuições dos mesmos para a consolidação de um consenso sobre o que foi a Ditadura Brasileira e as formas do processo de democratização. Também buscamos investigar suas trajetórias intelectuais para situar sua produção em um campo de atuação política, diretamente vinculada à criação de um consenso sobre a amenização do que foi a Ditadura, instituindo a concepção de Ditabranda. As obras analisadas têm uma característica em comum: foram publicadas após a Ditadura, e se inserem num contexto de reconstrução histórica, histográfica e memorialística sobre o que foi a Ditadura e o que seria o processo democrático brasileiro. Nesse artigo abordaremos a trajetória de Alexandre Garcia. 

Alexandre Garcia: democracia mesmo, só com o ditador 

O jornalista Alexandre Garcia é conhecido hoje em dia como um dos homens-referências do jornalismo da Rede Globo. Estar no Jornal Nacional sem dúvida transforma qualquer um em uma voz autorizada, seja de que idéias se tratar. Além disso, o jornalista tem programa de tv em canal pago da Globo, além de produzir artigos que são reproduzidos em inúmeros jornais impressos, e também fazer inserções em rádios na rede CBN. 

No dia 29/12/2009 publicou uma crônica, que foi reproduzida por inúmeros jornais que reproduzem seus textos, que se chamava: “Zelaya e Goulart”. Seu artigo principia dizendo que o que o Brasil estaria “na contramão, considerando Zelaya presidente de Honduras. Insiste em dizer que houve golpe”. E explica dessa forma: 

Ontem me caiu a ficha sobre que razões teriam levado o governo brasileiro à tão teimosa posição. E acho que as encontrei na História recente do Brasil, o presidente João Goulart, tal como Zelaya, estava influenciado por lideranças externas da esquerda revolucionária. Jango se deixava influenciar por Fidel Castro – que chegou a mandar milhões de dólares para a „revolução socialista‟ brasileira, inclusive para as mãos de Brizola, como ele próprio me confirmou. 

E segue seu argumento: “o mentor de Zelaya é o tenente-coronel paraquedista Hugo Chávez, que quer implantar a „revolução bolivariana‟ na América Latina. Tal como Goulart, Zelaya promoveu movimentos populistas visando a permanecer no poder, a cancelar eleições e a fechar o Congresso”. Assim, o golpe contra Goulart é absolutamente justificado, e a ele é atribuído o autoritarismo e a suposta ilegalidade das suas ações. Os militares seriam, portanto, legítimos representantes da vontade popular. Segundo Garcia, “No Brasil, o povo saiu às ruas e os jornais publicaram editoriais de primeira página, exigindo um basta no governo Jango; exigindo um corte numa revolução socialista e populista que estava em marcha. Aqui, os militares deram o „coup-de-grâce‟”. Os jornais aparecem como porta-vozes da vontade popular, e não como portadores de políticas golpistas, jamais como um lance na luta de classes. Os militares estariam, portanto, exercendo a vontade do povo. A tese é clara: “lá como cá houve, na verdade, um contragolpe. Aqui, por uma ação militar que deixou o Congresso diante de um fato consumado: a invacância da presidência, com a fuga de Goulart para o exterior. Lá, por uma ação totalmente dentro da legalidade”. Perfeito argumento, agora, de golpeado, Goulart passa a fugitivo, covarde que abandonou o cargo e deixou o país à deriva. E o jornalista usa de uma justificativa peculiar para o apoio brasileiro a Zelaya: 

É que aqui está a explicação: as frustrações com a queda de Goulart se projetam, emergem do inconsciente do principal conselheiro de política externa de Lula, com o contragolpe também dado em Zelaya. É como se, inconscientemente, estivessem segurando Goulart numa embaixada de Brasília, para que não fugisse para o Uruguai e continuasse „presidente‟ protegido pelos muros da imunidade diplomática do território estrangeiro (Idem). 

Jango, nessa versão, se torna um criminoso, afinal, além de abandonar seu cargo estaria fugindo pra se proteger, de que, não se sabe, mas fica no ar. O artigo é concluído com uma interpretação muito recorrente no texto de Garcia, que é a insistente recorrência a uma leitura muito particular que ele faz do pai da psicanálise: “o doutor Freud diria que o que não puderam fazer com Goulart, fazem agora, mesmo desesperados, com Zelaya”. Buscaremos na seqüência aprofundar a análise dos argumentos do jornalista com duas motivações: entender a leitura que está sendo feita sobre o que foi a Ditadura brasileira; compreender a visão de historia que está sendo construída, absolutamente anti-popular, anticomunista, antiesquerdista, e que tem na ideia de “ditabranda” um elemento importante do argumento. 

No mesmo ano, o jornalista já havia publicado um artigo em que clamava pela necessidade de “reescrever a história” recente do país. Segundo ele, “já está em tempo de se esquecer a propaganda, os rancores, as mentiras, e reescrever nossa Historia recente. Historia sem verdade não é ciência, é indecência”. (GARCIA, 2009b) o jornalista, remetendo-se diretamente à temática da Ditabranda, quando o jornal Folha de São Paulo usou o termo Ditabranda ao referir-se à Ditadura brasileira. Garcia diz: 

No dia 17 último, a insuspeita Folha de S Paulo, em editorial, chamou de ditabranda aquela época brasileira, em contraposição com ditaduras como de Fidel Castro e a disfarçada de Hugo Chavez. Houve gente que ficou furiosa com a Folha, por causado editorial. „Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de ditabranda? – perguntou uma professora da Faculdade de Educação da USP, segundo a Veja. Minha neta me fez a mesma pergunta, porque o professor dela contou que foram anos de chumbo, que ninguém tinha liberdade. Desconfiei que o professor nem havia nascido em 1964 e ela me confirmou isso. 

Vejamos os sujeitos envolvidos: o jornalista da Rede Globo elogia o jornal do Grupo Folha pela sua coragem de ter dito o que disse. A fala da oposição “de uma professora” vem trazida pela revista Veja, do grupo Abril. Ou seja, os três grandes gigantes da comunicação brasileira reunidos na sua fala, reforçam um mesmo sentido: de que não teria havido ditadura no Brasil. Do lado oposto aparecem dois professores, e o segundo dele sumariamente desqualificado em seu trabalho por não ter “nascido” em 1964, como se os historiadores apenas fossem autorizados a falar sobre o passado não vivido. As idéias de fundo presentes na “ditabranda” da Folha são também reforçadas: Fidel e Chavez seriam a prova das reais ditaduras. Garcia segue, explicitando sua diferença com relação ao professor: “Eu vivi aqueles tempos. Fui presidente de Centro Acadêmico em 1969. Fui jornalista do Jornal do Brasil de 1971 a 1979. Cobria política e nunca recebi qualquer tipo de ameaça, censura ou pressão. Sei que havia censura, comigo nunca houve”. Portanto, sua experiência, a que deve ser reforçada é essa, de que para quem fazia as coisas direito não havia censura. Voltaremos a essa sua militância, ou ausência dela no seu próprio relato. Mas antes disso, não podemos deixar passar o que ele diz sobre Médici, já que ele encerra o seu artigo exigindo que se pare de fazer propaganda e “história indecente”: “Lembro que o general Médici foi o mais duro entre os generais-presidentes. Mas ele entrava no Maracanã, de radinho no ouvido e cigarro no canto da boca, e quando aparecia na tribuna o estádio inteiro o aplaudia. E ele estava reprimindo os grupos armados de esquerda que seqüestravam e assaltavam bancos”. Interessante observar que Garcia diz, e nesse artigo mais de uma vez, saber que havia repressão e tortura, mas ainda assim, a ideia que quer fixar é a de que não teria havido ditadura. Até porque, ele diz textualmente: “os generais-presidentes foram todos eleitos pelo Congresso, onde havia oposição. O último deles, ao contrário de Fidel e Chavez que negam suas ditaduras, assumiu fazendo uma promessa: „Eu juro que vou fazer deste país uma democracia‟. Coisa rara, um suposto ditador reconhecer que não governava numa democracia”. Nem mesmo ao dizer que Figueiredo (sequer nomeado) reconhecia que não viva uma democracia o jornalista assume que se vivia numa Ditadura. Reforça seus princípios, e a institucionalidade da “autoridade” é um dos mais importantes”, e apoiando-se uma vez mais no suposto apoio popular à Ditadura expresso no suposto aplauso recebido por Médici. 

Para conseguirmos compreender mais a fundo essa incoerência discursiva de Alexandre Garcia vamos recorrer a nenhuma outra fonte que não seja o seu próprio relato. Vamos fazer uma leitura o mais detalhada possível sobre o seu livro Bastidores da Notícia, buscando ver qual o projeto social defendido pelo jornalista. Ficará claro desde o princípio que não se trata de um intelectual dissimulado, irônico, que usa de palavras de duplo sentido, como vemos muitas vezes na revista Veja. Não, Garcia deixa muito claras suas opiniões. É por isso que vamos problematizar sua atuação como um efetivo intelectual orgânico do projeto burguês da Ditadura brasileira. E isso não ocorre apenas pelo fato dele ter ocupado importante cargo de assessor de comunicação do governo do ditador Figueiredo2. Está presente no relato do jornalista em inúmeros momentos do seu livro, como pretendemos mostrar a seguir. 

2 Segundo o dado oficial, “Depois da eleição do presidente João Baptista Figueiredo, Alexandre Garcia foi ser secretario de imprensa do governo”. Memória Globo. Jornalistas. Alexandre Garcia. http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYP0-5271-259099,00.html. Consultado em 8/3/2011. Segundo a wikipedia: “por 18 meses, entre os anos de 1979 e 1980, foi porta-voz oficial da Presidência da República, no governo de João Batista Figueiredo”. Alexandre Garcia. http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Garcia . consultado em 8/3;2011. 

O livro Bastidores da notícia, publicado em 1990, faz uma narrativa pessoal, auto-biográfica de Alexandre Garcia até os primeiros meses do governo de Fernando Collor de Mello. O livro deixa claro que Garcia é um homem de muitos amigos. A julgar pela quantidade de vezes que o jornalista assinala essa palavra para caracterizar pessoas de seu convívio, suas fontes, suas relações, sobretudo nos meios militares. É também uma espécie de aficcionado pela ideia de civilização, vamos percebendo no livro suas incansáveis comparação com países “civilizados”, comparados com o Brasil “incivilizado”, a sujeira brasileira se opõe à limpeza canadense, e assim por diante. Ainda no campo dos amigos, o prefácio de seu livro é escrito por Raquel de Queiroz, embora não haja uma linha ao longo do livro que esclareça sua relação de amizade. Queiróz, uma ardorosa defensora do golpe de 1964 parece ser uma pessoa apropriada para apresentar livro de tal natureza. Também são bastante recorrentes no livro suas participações em jantares oficiais, desfrutando mais de uma vez de favores, caronas, etc. Um dos únicos relatos de tentativas de suborno sofridas indica que o jornalista defende uma postura não corrupta em relação a dinheiro. Sua moral, ademais, é bastante conservadora, como se expressa em vários momentos no livro. É também um homem de medalhas e condecorações, tendo recebido por exemplo, a Ordem do Império Britânico da rainha Elizabeth II por sua cobertura da Guerra das Malvinas (Garcia, 1990, 216), que é abertamente anti-argentina. 

Mas o objetivo aqui não é fazer qualquer tipo de julgamento, menos ainda debater suas idéias ou a qualidade do seu trabalho. O mais importante a ressaltar são suas ações como intelectual orgânico, formador de formadores, nos mais diversos âmbitos políticos. A partir daí, poder relacionar a questão que estamos buscando, de construção de uma visão amena da Ditadura brasileira. Um exemplo de sua atuação intelectual está no relato de uma palestra sua no curso de jornalismo da UnB: 

Falava sobre a clareza, objetividade e isenção que precisa ter o repórter. Isso é elementar em jornalismo. E citei como exemplo um episódio ocorrido em São Paulo, no qual o capitão Conte, da PM, matou dois seqüestradores que, com uma faca, ameaçavam cortar a garganta de uma menina. - Se fosse nos Estados Unidos, o capitão seria condecorado. Aqui, a imprensa o apresentou como bandido – argumentei. - Mas ele é bandido! Cortou um aluno – os policiais são bandidos. Eles ajudam a massacrar o povo! Os que a imprensa corrupta apresenta como bandidos são apenas vítimas da sociedade! Expliquei que ele estava defendendo tese sociológica ou fazendo editorial. Que o repórter deveria se limitar aos fatos. Aí, o professor me interrompeu: - Mas eu não estou ensinando meus alunos a serem repórteres isentos, neutros e objetivos. Eu os estou ensinando a serem, militantes ideológicos! (GARCIA, 1990, 313-14) 

Em primeiro lugar, ficamos com a impressão de que a suposta isenção, defendida no primeiro parágrafo, não seria abalada se o jornalista tivesse ficado do lado “certo”, segundo o argumento de Garcia. Ou seja, se o jornalista tivesse defendido a condecoração, não seria criticado por deixar de ser isento. Depois, percebemos que há um distanciamento, e esse é sempre cada vez mais demarcado por Garcia: ele, portador da verdade, e “os jornalistas” que não são isentos. Tanto não eram isentos que estariam defendendo “tese sociológica”, como se o jornalismo tivesse um campo próprio, imune à sociologia ou à história, fosse, nos parece, “a verdade”. Afinal, ele completa dizendo que o jornalista deve limitar-se aos fatos, como se os fatos falassem por si, fossem coisas. Interessante a fala do professor, ao invés de questionar o posicionamento de Garcia, afinal, ele está se posicionando e não sendo neutro como prega, o professor supostamente faz uma fala que reforça a tese de Garcia, de que seu ensino seria ideológico, e portanto, passível de desqualificação. Portanto, temos que aceitar como verdade que o Brasil viveu uma “Revolução” durante os anos de Ditadura. (Garcia, 1990, 106, 111, 133) 

Isso nos leva à forma com que o jornalista se relaciona com sua fonte, substancialmente distinta da forma que o historiador o faz. Varias vezes o jornalista deixa transparecer relações pessoais com suas fontes, relações que muitas vezes podem ser mantidas apenas tendo em vista a concessão de informações. Mas não é esse o problema que queremos ressaltar, e sim o fato de que suas fontes, quando depõem, recebem status de verdade, de informação, de dado. Ademais, no campo da metodologia de seu relato, é espantoso como escreveu o livro de mais de 350 páginas, sem citar fontes escritas, repleto de frases “entre aspas”. Segundo o autor, “não consultei fontes, jornais ou revistas. Só me vali do que vi, ouvi, senti, toquei e chorei”. (Garcia, 1990, 11) 

Fiz menção acima ao conservadorismo de Alexandre Garcia. Gostaria de desenvolver um de seus aspectos para tornar mais clara minha argumentação. Antes de entrarmos na relação de Garcia com o general Figueiredo, tema recorrente nas suas lembranças, gostaria de chamar atenção para um elemento no seu relato, a ojeriza à organização popular, às organizações de esquerda e às lutas dos trabalhadores. Seu posicionamento começa a ser esboçado na forma que trata manifestações ocorridas na Argentina, enquanto era correspondente do Jornal do Brasil, nos anos 1970. 

Durante o governo de Figueiredo o Brasil vivenciou um período de tensões enormes, com uma grande quantidade de greves e mudanças qualitativas nas formas de organização da classe trabalhadora. As formas de organização da classe se ampliaram, explodindo movimentos de greve e de manifestações contra a Ditadura. No texto de Garcia, os movimentos são claramente mostrados como empecilhos à democracia, não parte dela. Garcia narra uma viagem acompanhando o presidente a Belém na qual o SNI teria avisado que “poderíamos ter sérios problemas de manifestações contra o presidente”. O jornalista foi escolhido para que “dialogasse como os estudantes, tentando evitar uma solução policial. Eu aceitei e fui preparando os argumentos”. (Garcia, 1990, 141). Sua narrativa é clara sobre como via a organização trabalhadora: 

Logo percebi que metade deles estava ali porque defendia de verdade as idéias expostas nos cartazes que carregavam. E que a outra metade não queria diálogo. Queria pretexto para a bagunça e para um confronto com a polícia, que ampliasse o gesto deles. Eu já conhecia aquela velha tática. Meus três anos de Argentina foram um belo pós-graduação naquela cartilha. Meu trabalho foi apenas de provar que uma metade estava sendo usada pela outra. E que a metade idealista poderia conseguir coisas que a outra metade não poderia conseguir. Quando isso ficou bem claro, pedi que escolhessem dez representantes para conversarem com o presidente. A escolha sedimentou a divisão. E dez não-agitadores conseguiram do presidente respostas para o que queriam. (Garcia, 1990, 141) 

Garcia parece estar usando os ensinamentos de seus mestres, sobretudo de Golbery, citado várias vezes no livro por ensinar sobre a importância de “dividir” a esquerda para poder destruí-la. Usa de sua suposta superioridade sobre os manifestantes, afinal ele “prova” que o movimento estaria sendo manipulado até que consegue que “não-agitadores” consigam o que queriam que, segundo ele, seria ouvir o presidente. É insistente ainda nessa ideia de que os movimentos seriam idênticos, aqui, na Argentina ou em qualquer lugar, dando a impressão de que não faziam qualquer sentido: “na hora da confusão, eu fui para o meio dos manifestantes, para ouvir o que diziam e testemunhar a reação da polícia. As palavras de ordem eram idênticas às que já ouvira em espanhol, na Argentina” (142). 

O que chama a atenção no relato de Alexandre Garcia não é apenas a ausência dos movimentos sociais concretos, mas a ausência do debate sobre as formas de inserir no debate político essas parcelas significativas da população brasileira, e, inclusive, a ausência do debate que viria a seguir sobre a “sociedade civil organizada”. Seu posicionamento é seco e claro: os trabalhadores aparecem como empecilhos ao projeto de abertura e à bondade de Figueiredo que, como ele expressou no texto citado de 2009, é visto como aquele que “concede a democracia”. Vejamos mais um relato nesse sentido, narrando uma manifestação ocorrida em Brasília: 

Aí começaram a gritar palavras de ordem que eu conhecia da Argentina. Então, forçaram a entrada do palácio. À frente, vinham mulheres com crianças. A guarda, com baionetas, recolheu-se para não ferir ninguém. Eles estavam cantando o Hino Nacional de punhos erguidos e nós procurávamos o verdadeiro líder, para dialogar. Havíamos percebido que o deputado Aurélio Peres só estava ali para trazer a imunidade parlamentar e a presença do Legislativo. Mas não mandava nada. Apenas esbravejava, de vez em quando, com o segurança, a quem empurrava, para provocar uma agressão. (Garcia, 1990, 151). 

Os manifestantes, nesse relato, são os violentos contra a pacata e pacífica polícia. Sua estratégia está clara, entra no meio dos manifestantes para ouvir o que querem e também para buscar suas lideranças: 

Até que percebi, no meio daquela gente, alguém que recebia consultas e dava ordens, mas se mantinha distante de nós. Abri caminho e fui até ele: - o senhor é o líder? Ele ficou visivelmente contrafeito: - „Não. Todos nós somos líderes!‟ – Eu quero cumprimenta-lo – e estendi a mão – porque essa ideia de trazer crianças recém-nascidas, idosos, senhoras grávidas e homens doentes faria inveja ao Maquiavel. Ele me deu as costas e se afastou. Eu gritei: - um momentinho, o senhor não quer me ouvir? – não, não quero ouvir – e foi para o outro extremo da manifestação. Que só acabou quando a Polícia Militar, desarmada, colocou todos em três ônibus e os transportou até a rodoviária. (Garcia, 1990, 151). 

Além de autoritários, os manifestantes são mostrados como covardes, “maquiavélicos” e, uma vez mais, imunes ao diálogo. Por isso a estratégia de buscar o líder, e mostrá-lo como alguém covarde, que não corria riscos ao passo que estaria colocando bebês e grávidas para esse fim. Ainda bem que a polícia nada fez, parece ser o raciocínio do qual quer nos convencer. Esse argumento aparece em outros veículos de comunicação do período, e passa a ser uma espécie de esquema que mostra os manifestantes sempre sendo usados pelos seus líderes idealistas ou mal-intencionados. Não é a toa que, no relato de Garcia, na página seguinte ele mostra “um vice da Revolução passear numa rua movimentada e ser aplaudido” (Garcia, 1990, 152). Também com esse sentido, busca mostrar o suposto apoio popular a atividades como uma parada militar de 7 de setembro em que “explica” como se deve calcular multidões em que ele calculara 60 mil pessoas e teria ouvido 

Um grupo de jornalistas que discutia alguma coisa. – Vamos botar 25 mil pessoas? Sugeria um repórter. - Não! Esses milicos expulsaram o padre Miracapillo! Vamos dar 10 mil para eles! Interrompeu o outro. Por fim, todos concordaram em que 15 mil pessoas assistiram em Brasília, àquele desfile na capital do país. A minha estimativa de 60 mil deve ter sido considerada pelos leitores como uma mentira, porque era o único com aquele número. (Garcia, 1990, 200) 

Além do suposto apoio popular, Garcia se mostra empenhado em reiterar sua participação no processo de abertura. Sua fala sempre refere que “o objetivo de todo o nosso trabalho é a democracia, é entregar o poder para um civil” (Garcia, 1990, 171). Ou seja, os atrasos seriam culpa sempre dos movimentos, daqueles que de fato não queriam a democracia pois estavam fazendo baderna nas ruas. Após sua saída da Secretaria de comunicação, trabalhando na Manchete e depois na Globo, segue a mesma linha, usando sua relação com o presidente inúmeras vezes no seu trabalho. Inclusive, participando de “garantias morais” para a concessão da televisão Manchete. (188) Sua atuação seguiria sendo anti-mobilização popular. Em outra oportunidade, em 1984, ele relata a orientação que deu à sua repórter: “Procure um sem-terra típico, verdadeiro. Não um padre, nem um ativista do PT ou da Pastoral da Terra. Procure um sem-terra de verdade, e pergunte a ele se tivesse terra própria, escriturada, o que fazia se a terra dele fosse invadida por sem-terras”. (Garcia, 1990, 270). Uma vez mais, desqualifica lideranças e organizações para buscar o conservadorismo supostamente constituinte dos “manobrados” pelo movimento. 

Sua relação com Figueiredo traz inúmeras narrativas que comprovam a mútua admiração entre o jornalista e o ex-ditador. Um dos elementos que mais chama atenção é como a fala de Figueiredo toma status de verdade. É um elemento a perceber o quanto as entrevistas, que são portanto, opinião, são vistas como dados acabados, informação inquestionável. O exemplo a seguir nos mostra a relação dele com a fonte, no caso, Figueiredo, narrando uma conversa com ele em que “Figueiredo parecia me esperar, com um chimarrão”:

 - Sabe de uma coisa? – comentou Figueiredo. – uma vez eu e o Geisel pescávamos no lago Paranoá, e ele me recomendava: „Olha, Figueiredo, temos que acabar com esse negócio de tortura; você tem que me prometer que no seu governo vai fazer o que eu fiz em São Paulo‟. Nisso – continuou Figueiredo – um lambarizinho mordeu a minha isca e eu fisguei ele. Agarrei ele assim, dei dois tapas na cara dele e disse: „Vamos, conta onde estão os peixes maiores!‟ E aí eu me virei pro Geisel: „Pode deixar, presidente, no meu governo não vai haver tortura‟. “Um homem que faz esse tipo de brincadeira é um homem puro”, pensei. Ele falava de dentro, do coração. Era todo sentimento. Ele me convidou para voltar, e em outros sábados tomamos chimarrão juntos e rimos juntos das piadas dele sobre ele mesmo. (Garcia, 1990, 112) 

A tortura, supostamente comentada por dois generais-ditadores é absolutamente naturalizada. A conclusão ao relato, que incluiu inclusive simulação de tortura é vista por Garcia como expressão de “bom coração” e “sentimento”. Em outras passagens esse “sentimento” é reiterado pelo jornalista como num diálogo em que Figueiredo afirmava que “não ia gostar de ser presidente” ao que o jornalista refletia: “eu testemunhava esses encontros e lamentava que ninguém conhecesse realmente o „seu‟ João que estava dentro do general de cavalaria ex-chefe do SNI”. (Garcia, 1990, 121). Figueiredo era mostrado como portador de um “coração justiceiro” (133). 

Fica claro no relato que Figueiredo buscou uma relação de proximidade com outros jornalistas, chegando a discutir com eles em algumas ocasiões, inclusive em reuniões informais abastecidas de whisky (Garcia, 1990, 115). Outra ocasião, em que Garcia não tinha autorização para entrar numa cerimônia, Figueiredo sai: “Já que você não entra, eu saio. Tudo bem? E aí ficamos conversando sobre a evolução da democracia”. (Garcia, 1990, 124). Tanto assim que seu primeiro livro foi João presidente, “lançado no salão nobre do Senado. Figueiredo compareceu, e ficamos lado a lado, assinando autógrafos”. (Garcia, 1990, 125). 

A tese que parece clara em Garcia é de que se tratava da “institucionalização da democracia” (129), e seu papel teria sido de “ajudar” Figueiredo “a fazer a abertura” (130). E nesse sentido também narra a proximidade com Golbery: “era preciso sorver tudo o que fosse possível daquele homem genial. Ninguém imagine Golbery pedante ou orgulhoso. Ele era o retrato da simplicidade, como todo sábio” (Garcia, 1990, 131). Evidentemente que essas relações levam a atividades de maior contato e proximidade com suas fontes, narradas com muita tranqüilidade por Garcia como nesse exemplo: “na noite de 3 de setembro de 1979, por exemplo, encontrei-me secretamente com líder do MDB, deputado Freitas Nobre. (...) No dia seguinte, mandei o seguinte relatório ao presidente”. E percebemos como seus valores se misturam com os de suas fontes: 

Recordou que, quando líder, num 31 de março da legislatura passada, excluiu, por sua exclusiva responsabilidade, os nomes de cinco oradores que pretendiam „virar a mesa‟ em violentos discursos contra a Revolução. Disse que um deles estava disposto a bagunçar, que já tinha comprado passagem para o exterior, e dispunha de carro pronto, em frente ao edifício do Congresso, para ir embora após o pronunciamento. (Garcia, 1990, 137) 

Fica claro aqui seu serviço de arapongagem enquanto assessor de comunicação, embora não diga quem seria o envolvido na suposta “baderna”, diz quem é a fonte para ser investigado. Na avaliação de Garcia, expressa logo em seguida, “com aqueles encontros, ajudamos muito a desobstruir o difícil início da estrada que estava sendo desbravada em direção à democracia”. Essa expressão aparece em várias falas que são lembradas pelo jornalista como numa fala de Alceu Collares sobre o presidente: “o homem é macho mesmo e vai fazer democracia e eu vou fazer oposição, mas vamos fazer juntos essa democracia” (138). 

Um comentário final, sobre a afinidade de Garcia com as Forças Armadas. Além de várias medalhas e condecorações, essa simpatia é nutrida em vários momentos de seu relato. Um caso espantoso relata um episódio de guerra na Líbia em que ele “queria ter um fuzil para poder responder” (Garcia, 1990, 230). Outro caso mostra sua simpatia com a própria lide militar: 

Terminei o ano com um convite do comandante militar do planalto, general Mario Orlando Sampaio, para cobrir as manobras de seu comando, no Campo de Formosa. Aceitei, mas pedi para fazer uma atualização, como reservista. E gravei a reportagem com uniforme camuflado de combate, atirando com dois velhos conhecidos, o morteiro 60 mm e a metralhadora pesada Browning 50. E com uma arma que eu não conhecia, a metralhadora MAG 7,62 mm. Foi uma festa! (Garcia, 1990, 311) 

Essa citação busca mostrar sua relação com as Forças Armadas, mas é preciso relaciona-la com suas posições políticas que estamos analisando ao longo do texto. Não vamos explorar por ora a relação com Collor e sua eleição, tendo sido ele um dos mediadores do debate eleitoral na Rede Globo entre Collor e Lula, em 1989. O debate rendeu-lhe uma vaia de cinco minutos em evento público quando elogiou “os resultados de uma eleição democrática”, e ele mesmo relata: 

No intervalo, um jovem subiu ao palco e me perguntou: - Você é de esquerda ou de direita? - Sou jovem o suficiente pra não ter essas diferenças antigas, e democrata o suficiente para não perguntar a ninguém uma coisa dessas. (Garcia, 1990, 356) 

Enuncia-se, portanto, um tempo distinto, em que as diferenças entre esquerda e direita passam a ser amenizadas e pulverizadas. E com isso se consolida um membro de um governo da Ditadura como sendo o verdadeiro democrata. Afinal, seu livro parece cumprir bem uma de suas funções, a de mostrar-se como um dos maiores jornalistas brasileiros, com maior influência no Congresso Nacional. Ao menos é o que nos parece pela forma que conclui seu livro relatando um debate no Congresso em que encontrou “um grupo de deputados, tendo a frente Afif Domingos”, e transcreve sua suposta fala: “nós saímos para ver o que você estava dizendo na Globo, para entender o que aconteceu aqui dentro”. (Garcia, 1990, 358). 

Referências Bibliográficas: GARCIA, Alexandre. (1990) Nos bastidores da notícia. 2ª ed. São Paulo, Globo. GARCIA, Alexandre. (2009 b) Reescrever a história. 10/6/2009. Disponível em: http://www.diariodemarilia.com.br/Noticias/67058/Reescrever-a-histria. Consultado em 7/3/2011 . 
GARCIA, Alexandre. (2009ª) Zelaya e Goulart. 29/12/2009. Disponível em: http://www.institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=1018 . Consultado em 7/3/2011.



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2 de abr. de 2013

Dez anos de governos de coalizão dirigidos pelo PT, uma análise em perspectiva histórica

Valério Arcary

"Quem a si próprio elogia não merece crédito" - Sabedoria popular chinesa.


A análise crítica do significado dos dez anos de governos dirigidos pelo PT em uma ampla coalizão que incorporou inúmeros partidos da classe dominante é complexa. Primeiro, antes de tudo, porque não se deve esquecer que a eleição de um líder de origem operária como Lula foi uma experiência inusitada na história do Brasil. Seu impacto é chave para contextualizar o prestígio dos governos destes dez anos. O governo Lula encerrou o mandato com elevada aprovação popular, acima de 80% nas pesquisas de opinião, mas este critério não é suficiente para um juízo em perspectiva histórica.

Segundo, porque ainda que o governo tenha sido presidido por um líder de origem operária, isso não é suficiente para provar que tenha governado para os trabalhadores. Na verdade, o governo Lula até 2010, e Dilma, desde então, admitem que não o fizeram, e insistem em que governam, indiscriminadamente, para todos. Mas isso tampouco é correto. Lula foi mais honesto que seus publicitários quando confessou, em tom de rancor, que os grandes capitalistas nunca ganharam tanto dinheiro quanto durante os seus dois mandatos e, por isso, eram uns ingratos. Uma análise marxista não pode escapar às caracterizações sociais, ou seja, de classe, dos governos. De resto, qualquer análise histórica séria precisa enfrentar este desafio. Os governos do PT foram governos a serviço da preservação da ordem capitalista no Brasil. Embora tenham sido governos de colaboração de classe na forma, foram governos burgueses no conteúdo. Não surpreende que não tenham enfrentado senão uma oposição retórica dos partidos orgânicos do grande capital, como o PSDB.

A luta pela emancipação dos trabalhadores tem sido a maior das forças de impulso da lutas de classes contemporânea. O projeto socialista foi o seu programa, com todas as vicissitudes do estalinismo e da adaptação da socialdemocracia à gestão do capitalismo. No Brasil do início dos anos 80, o PT abraçou esta simpatia quase intuitiva da classe trabalhadora pelo igualitarismo social. Lula foi o porta-voz desta esperança.

Um presidente com origem social na classe trabalhadora em um país capitalista periférico, apenas uma década e meia depois da restauração capitalista no Leste Europeu, foi um acontecimento atípico. Em outras palavras: do ponto de vista da dominação capitalista foi uma anomalia. Mas não foi uma surpresa. A trajetória do Partido dos Trabalhadores como partido de oposição eleitoral, em pouco mais de duas décadas, credenciava Lula diante do povo.

Mais importante, todavia, Lula conquistou a confiança da imensa maioria da vanguarda operária e popular, e dos trabalhadores dos setores mais organizados: uma força militante de algumas centenas de milhares de ativistas motivados. A proeminência de Lula foi uma expressão da imponência social do proletariado brasileiro e, paradoxalmente, ao mesmo tempo, de sua impressionante inocência política. O proletariado o projetou quando assumiu o protagonismo da luta final contra a ditadura, deslocou a velha burocracia dos sindicatos e apoiou a construção do PT e da CUT.

Mas a classe trabalhadora, apesar de uma vanguarda ativa que pressionou seriamente o PT e a CUT durante uma década de ascensão nos anos 1980, não foi capaz de manter o controle sobre as suas organizações e os seus líderes, depois da inversão da correlação de forças entre as classes, em 1995.
A derrota da greve dos petroleiros em 1995, um dos setores mais fortes do proletariado, incidiu na consciência de forma devastadora. Na hora do refluxo das lutas sindicais, o impacto da estabilização da moeda e da vitória eleitoral burguesa, com a posse de Fernando Henrique Cardoso, abriu uma etapa de estabilização do regime democrático, dez anos depois do fim da ditadura. Sem vigilância, o aparato burocrático dos sindicatos agigantou-se e se deformou de forma irreconhecível, e o aparelho do PT se adaptou ao regime.

Carismático, Lula uniu um dom excepcional de oratória ao gênio político. Líder intuitivo, demonstrou surpreendente capacidade de improvisação em situações adversas. É verdade que Lula conquistou a sua liderança assumindo o papel de principal porta-voz das reivindicações populares nos anos 1980/90. Sua ascendência foi uma das refrações da acelerada urbanização e industrialização. Foi, também, expressão de proletariado jovem, concentrado, sem experiência política, recém-deslocado dos confins miseráveis das regiões mais pobres e semi-letrado (1).

Não obstante, seria superficial concluir que o lugar que Lula ocupou nos últimos trinta anos foi resultado somente de seus talentos ou da sorte. A posição privilegiada de porta-voz das aspirações populares foi produto, também, do reforço de sua figura pela própria burguesia, quando ficou claro, durante a Constituinte de 1986/88, que não era uma ameaça ao regime democrático em formação. Foi favorecido pela mídia burguesa em alternativa a Prestes e Brizola, por um lado e, também, talvez, sobretudo, pelo perigo da influência das tendências revolucionárias internas do PT, muito ativas nos anos 80.

A classe dominante brasileira contribuiu para o reforço de sua autoridade oferecendo-lhe uma visibilidade política crescente diante de seus potenciais rivais. A burguesia brasileira confirmou a sua habilidade política assimilando Lula e o PT como a oposição eleitoral que o regime democrático necessitava como válvula de escape.

Lula foi, portanto, conscientemente poupado, sobretudo depois de chegar ao poder, de ataques diretos mais contundentes, o que reforçou sua imagem. O seu amadurecimento foi elogiado pelas lideranças burguesas mais lúcidas que confessaram respeito, e até gratidão, pela função que cumpriu como garantia da segurança do regime democrático. Já tinha demonstrado nas prefeituras, governos estaduais e no Congresso Nacional que era uma oposição ao governo de plantão, mas não era inimigo do regime democrático-liberal de tipo presidencialista que vingou depois de 1985.

Não era sequer inimigo irreconciliável do estatuto da reeleição, uma deformação anti-republicana e, especialmente, reacionária. A burguesia já admitia, desde 1994 pelo menos, que o PT pudesse ser um partido de alternância disponível para exercer o governo em um momento de crise econômica e social mais séria. Lula e Zé Dirceu assumiram, publicamente, mais de uma vez, compromissos com a governabilidade das instituições, exercendo pressões controladoras sobre os movimentos sociais sob sua influência. Lula não foi um improviso como Kirchner. Lula não foi uma surpresa como Evo Morales. Lula não foi considerado um inimigo como Hugo Chávez.

Se considerarmos a evolução política da América Latina, na primeira metade da última década, parece incontroverso que os regimes democráticos viram as suas instituições questionadas pelas mobilizações de massas, seriamente, pelo menos em alguns dos mais importantes países vizinhos. Dez presidentes não completaram seus mandatos. Entre 2001 e 2005, quatro países da América do Sul estiveram em situações revolucionárias. Os governos cúmplices do ajuste recolonizador na América Latina dos anos 90 se desgastaram até a queda, ao ponto de vários ex-presidentes – Salinas do México, Menem da Argentina, Cubas do Paraguai, Fujimori do Peru e Gonzalo de Losada da Bolívia, além dos golpistas da Venezuela – terem sido presos, se encontrem foragidos ou à espera de julgamento.

O governo Lula dobrou-se diante do imperialismo e da burguesia brasileira como produto de uma estratégia política consciente. Lula foi um interlocutor do governo norte-americano para os governos venezuelano, boliviano e equatoriano, elogiado pela sua responsabilidade por ninguém menos do que Bush. Sua influência moderadora sobre Chávez, Evo Morales e Correa foi reconhecida por Washington, pelos governos europeus e até pelas burguesias locais. O PT beneficiou-se, em 2002, de um crescente mal estar social que vinha se acumulando desde o início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.

O governo Lula é história do tempo presente. É preciso distinguir, portanto, o que foi o governo Lula das percepções que ele deixou. O crescimento econômico entre 2004 e 2008, interrompido em 2009, porém, recuperado com exuberância em 2010, foi inferior à média do crescimento dos países vizinhos, mas a inflação foi, também, menor. A média do crescimento do PIB durante os anos do governo Lula foi de 4% ao ano, inferior ao crescimento da Argentina ou da Venezuela no mesmo período, mas a inflação abaixo dos 5% ao ano foi, também, menor (2).

Desde 2011, com Dilma, o Brasil entrou em fase de estagnação econômica e reprimarização produtiva. As concessões à grande burguesia aumentaram, não diminuíram, ao contrário do que afirmam os defensores das teses desenvolvimentistas. Isenções fiscais, novas e ambiciosas parcerias público-privadas, favorecimento e garantias redobradas aos investimentos estrangeiros, além de sinalização de novas reformas trabalhistas e previdenciárias.

O mais importante, no entanto foi a manutenção do tripé da política econômica herdada do governo de Fernando Henrique Cardoso e supervisionada pelo FMI: a garantia do superávit primário acima de 3% do PIB, o câmbio flutuante em torno dos R$2 por dólar e a meta de controle da inflação abaixo de 6,5% ao ano. Não deveria surpreender o silêncio da oposição burguesa, e o apoio público indisfarçável de banqueiros, industriais, latifundiários e dos investidores estrangeiros.

Eis a chave de explicação do sucesso popular dos governos do PT: reduziu o desemprego a taxas menores que a metade daquelas que o país conheceu ao longo dos anos 90; permitiu a recuperação do salário médio que atingiu em 2011 o valor de 1990; aumentou a mobilidade social, tanto a distribuição pessoal quanto a distribuição funcional da renda, ainda que recuperando somente os patamares de 1990, que eram, escandalosamente, injustos; garantiu uma elevação real do salário mínimo acima da inflação; e permitiu a ampliação dos benefícios do Bolsa-Família.

Os grandes capitalistas nunca ganharam tanto dinheiro como nos oito anos de Lula na presidência, uma façanha que ele próprio, despudoradamente, reivindicou. Basta lembrar que os bancos bateram todos os recordes de rentabilidade. Ou seja, Lula fez pelo capitalismo brasileiro aquilo que na Argentina a coligação de radicais e peronistas dissidentes em torno a De La Rua tentaram fazer e fracassaram, estrondosamente, ao manter a política econômica de Menem e Caballo, precipitando a insurreição de dezembro de 2001 que os derrubou. No Brasil, ao contrário, o governo do PT reforçou a estabilidade institucional do regime político presidencialista.

Desde 2003, Lula fez o ajuste do superávit primário, levando Meirelles para o Banco Central, fez a reforma da previdência que Fernando Henrique ambicionava fazer e não conseguiu, e ainda se reelegeu. Quando da crise mundial de 2008, Lula protegeu o capitalismo dos capitalistas: o BNDES foi acionado para favorecer a formação de grandes corporações nacionais, financiando aquisições e fusões.

Foi um governo quase sem reformas progressivas e muitas reformas reacionárias, porém, com uma governabilidade maior que seus antecessores. Mas estes dez anos não passaram em vão. Uma reorganização sindical e política pela esquerda do governo, e das velhas organizações, como a CUT e o PT, já começou, ainda que o processo de experiência tenha sido e permaneça, relativamente, lento. A influência do lulismo não irá diminuir, todavia, sozinha. Será necessária uma luta política corajosa e lúcida para construir novos instrumentos de representação e organização do proletariado.

Esse foi o sentido da fundação da CSP/Conlutas e de outras articulações. Será das lutas dos trabalhadores e da juventude, na resistência inflexível aos governos liderados pelo PT, que surgirá uma alternativa. Ela é mais necessária do que nunca. A esquerda revolucionária marxista deve ser um ponto de apoio firme, porque a ela pertence o futuro.

Notas:
1) O censo de 2010 informou que o Brasil tinha 190 milhões de habitantes, dos quais 30 milhões nas áreas rurais, portanto, cerca de 85% da população urbanizada. O nível de instrução da população aumentou: a escolaridade média subiu de três anos de escola em 1980 para 7,3 anos em 2010. Ainda assim, diversas pesquisas sugerem que algo próximo de 50% da população com 15 anos ou mais não atribui sentido ao texto escrito. O percentual de pessoas com pelo menos o curso superior completo aumentou somente de 4,4% para 7,9%. A dinâmica interna da migração do campo para a cidade foi especialmente intensa entre 1950/80. A população economicamente ativa foi estimada em 95 milhões e a classe operária representa algo em torno de 15 milhões. A taxa de fecundidade no Brasil caiu, aceleradamente, de 2,38 filhos por mulher em 2000 para 1,90 em 2010, mas era de mais de 6 filhos por mulher em 1950. Dados disponíveis:http://www.ibge.gov.br/home/ Consulta em novembro de 2012

2) Os dados mais significativos tanto econômicos como sociais estão disponíveis no site do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: http://www.ibge.gov.br/home/ Informações sobre o censo de 2010 podem ser encontrados no site:y
http://www.ibge.gov.br/censo2010/primeiros_dados_divulgados/index.php

Consulta em novembro 2012


FONTE: Diário Liberdade



29 de mar. de 2013

Marxismo e religião: ópio do povo?

Michael Löwy

SERÁ AINDA A RELIGIÃO, tal como a viram Marx e Engels no século XIX, uma trincheira da reacção, obscurantismo e conservadorismo? Em larga medida, a resposta é afirmativa. O olhar deles aplica‑se a muitas instituições católicas, às correntes fundamentalistas das principais confissões religiosas (cristã, judaica ou muçulmana), à maioria dos grupos evangélicos e das novas seitas, algumas das quais ‑ como a conhecida Igreja Moon, não passam de engenhosas combinações de manipulações financeiras, lavagem ao cérebro e anticomunismo fanático. No entanto, o aparecimento de um Cristianismo revolucionário e da Teologia da Libertação na América Latina abriu um novo capítulo histórico e levanta questões novas e empolgantes às quais não podemos dar resposta sem uma renovação da análise marxista da religião, o assunto deste artigo‑Partidários e adversários do marxismo parecem concordar num ponto: a célebre frase "a religião é o ópio do povo" representa a quinta‑essência da concepção marxista do fenómeno religioso. Ora, esta fórmula nada tem de especificamente marxista. Podemos encontrá‑la, antes de Marx, com algumas nuances, em Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer e muitos outros. Tomemos dois exemplos de autores próximos de Marx.

No seu livro sobre Ludwig Borne, de 1840, Heine refere‑se ao papel narcótico da religião de forma bastante positiva ‑ com uma certa dose de ironia: "Bendita seja uma religião, que derrama no amargo cálice da humanidade sofredora algumas doces e soporíferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e esperança". Moses Hess, nos seus ensaios publicados na Suíça, em 1843, adopta uma posição mais crítica ‑ mas não desprovida de ambiguidade: "A religião pode tornar suportável... a consciência lastimável da servidão... do mesmo modo que o ópio é uma grande ajuda nas doenças dolorosas".

A expressão aparecia pouco depois num artigo de Marx "Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" (1844). Uma leitura atenta do parágrafo inteiro mostra que o seu pensamento é muito mais complexo do que aquilo que se pensa habitualmente. Realmente, rejeitando totalmente a religião, Marx não toma menos em conta o seu duplo carácter: "A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da verdadeira angústia e o protesto contra esta verdadeira angústia. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como ela é o espírito de uma situação sem espiritualidade. Ela é o ópio do povo".

Uma leitura do ensaio, no seu conjunto, mostra claramente que o ponto de vista de Marx, em 1844, deriva mais do neo‑hegelianismo de esquerda, que vê na religião a alienação da essência humana, do que da filosofia das Luzes, que a denúncia simplesmente como uma conspiração clerical (o "modelo egípcio"). De facto, quando Marx escreveu a passagem acima, era ainda um discípulo de Feuerbach, um neo‑hegeliano. A sua análise da religião era por conseguinte "pré‑marxista", sem referência às classes sociais e sobretudo a‑histórica. Mas não era menos dialéctica, porque apreendia o carácter contraditório da "aflição" religiosa: por vezes, legitimação da sociedade existente, por vezes, protesto contra esta.

É apenas mais tarde, em particular na Ideologia alemã (1846), que o estudo propriamente marxista da religião, como realidade social e histórica, começou. O elemento central deste novo método de análise dos factos religiosos é considerá‑los ‑ juntamente com o direito, a moral, a metafísica, as ideias políticas, etc. ‑ como uma das múltiplas formas da ideologia ou seja da produção espiritual (geistige Produktion) de um povo, a produção de ideias, de representações e formas de consciência,  necessariamente condicionada pela produção material e pelas relações sociais correspondentes.

Poder‑se‑ia resumir esta diligência por uma passagem "programática" que aparece num artigo redigido alguns anos mais tarde: "é claro que qualquer perturbação histórica das condições sociais provoca ao mesmo tempo a perturbação das concepções e das representações dos homens e por conseguinte das suas representações religiosas". Este método de análise macro‑social terá uma influência duradoura sobre a sociologia das religiões, mesmo para além do movimento marxista.

A partir de 1846, Marx prestou apenas uma atenção desatenta à religião, em tanto que tal, como universo cultural/ideológico específico. Não se encontra praticamente na sua obra nenhum estudo mais desenvolvido de um fenómeno religioso qualquer. Convencido, como o afirma no artigo de 1844, que a crítica da religião se deve transformar em crítica deste vale de lágrimas e a crítica da teologia em crítica da política, parece desviar a sua atenção do domínio religioso.

O contributo de Engels

Será talvez devido à sua educação pietista que Friedrich Engels mostrou um interesse bem mais sustentado que Marx para os fenómenos religiosos e o seu papel histórico – partilhando ao mesmo tempo, naturalmente, as opções decididamente materialistas e ateias do seu amigo. A sua principal contribuição para a sociologia marxista das religiões é sem dúvida a sua análise da relação entre as representações religiosas e as classes sociais. O cristianismo, por exemplo, não aparece nos seus escritos (como em Feuerbach) como "essência" a‑histórica, mas como uma forma cultural ("ideológica") que se transforma durante a história e como um espaço simbólico, desafio de forças sociais antagónicas.

Graças ao seu método fundado na luta de classes, Engels compreendeu ‑ contrariamente aos filósofos das Luzes ‑ que o conflito entre materialismo e religião não se identifica sempre com aquele que existe entre revolução e reacção. Na Inglaterra, por exemplo, no século XVII, o materialismo na pessoa de Hobbes, defendeu a monarquia enquanto as seitas protestantes fizeram da religião a sua bandeira na luta revolucionária contra os Stuarts. Do mesmo modo, longe de conceber a Igreja como uma entidade social homogénea, ele esboça uma notável análise mostrando que em certas conjunturas históricas, ela se divide de acordo com as suas componentes de classe. É assim que, na época da Reforma, se tinha, por um lado, o alto clero ‑ cimeira feudal da hierarquia ‑ e do outro, o baixo clero, que fornece os ideólogos da Reforma e do movimento campesino revolucionário.

Continuando a ser ao mesmo tempo materialista, ateu e adversário irreconciliável da religião, Engels compreendia, como o jovem Marx, a dualidade de natureza deste fenómeno: o seu papel na legitimação da ordem estabelecida e, em determinadas circunstâncias sociais, o seu papel crítico, contestatário e mesmo revolucionário. Mais ainda, é este segundo aspecto que se encontrou no centro da maior parte dos seus estudos concretos. Com efeito, debruçou‑se primeiro sobre o cristianismo primitivo, religião dos pobres, excluídos, malditos, perseguidos e oprimidos. Os primeiros cristãos eram originários das últimas fileiras da sociedade: escravos, homens livres privados dos seus direitos e pequenos camponeses sobrecarregados de dívidas.

Engels chegou mesmo a estabelecer um paralelo surpreendente entre este cristianismo primitivo e o socialismo moderno. A diferença essencial entre os dois movimentos residia em que os cristãos primitivos empurravam a libertação para o além, enquanto o socialismo a colocava neste mundo.

Mas esta diferença é também acentuada no que aparece à primeira vista? No seu estudo sobre um segundo grande movimento cristão ‑ a guerra dos camponeses na Alemanha – ela parece perder a sua clareza: Thomas Munzer, teólogo e líder dos camponeses revolucionários e plebeus heréticos do século XVI, queria o estabelecimento imediato do Reino de Deus, esse reino milenarista dos profetas, sobre a terra. De acordo com Engels, o Reino de Deus era para Munzer uma sociedade sem diferenças de classe, sem propriedade privada e sem autoridade do Estado independente ou estrangeiro para os membros dessa sociedade.

Pela sua análise dos fenómenos religiosos, face à luta das classes, Engels revelou o potencial contestatário da religião e abriu o caminho para uma nova abordagem das relações entre religião e sociedade, distinto ao mesmo tempo da filosofia das Luzes e do neo‑hegelianismo alemão.

A maior parte dos estudos marxistas da religião, escritos no séc. XX, limitou‑se a comentar ou a desenvolver as ideias esboçadas por Marx e Engels ou a aplicá‑las a uma realidade específica. São assim, por exemplo, os estudos históricos de Karl Kautsky sobre o cristianismo primitivo, as heresias medievais, Thomas More e Thomas Munzer.

Paraíso na terra ou nos céus?

No movimento operário europeu, eram muitos os marxistas radicalmente hostis em relação à religião, mas pensavam ao mesmo tempo que o combate do ateísmo contra a ideologia religiosa devia ser subordinado às necessidades concretas da luta de classes, que exige a unidade dos trabalhadores que crêem em Deus e dos que não crêem. O próprio Lenine ‑ que denunciava frequentemente a religião como "nevoeiro místico" ‑ insiste no seu artigo de 1905 "AQUI", "o socialismo e a religião" sobre o facto que o ateísmo não devia fazer parte do programa do partido porque "a unidade na luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação de um paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade da opinião proletária sobre o paraíso nos céus".

Rosa Luxemburgo tinha a mesma opinião, mas elaborou uma diligência diferente e mais flexível. Embora ateia, ela atacou menos, nos seus escritos, a religião enquanto tal do que a política reaccionária da Igreja, em nome da tradição limpa desta. Num opúsculo de 1905, "a igreja e o socialismo- AQUI ", afirmou que os socialistas modernos eram mais fiéis aos preceitos originais do cristianismo do que o clero conservador de hoje. Dado que os socialistas lutam por uma ordem social de igualdade, liberdade e fraternidade, os padres deveriam acolher favoravelmente o seu movimento, se quisessem honestamente aplicar na vida da humanidade o preceito cristão "amai o próximo, como a ti".

Quando o clero apoia os ricos, que exploram e oprimem os pobres, ele está em contradição explícita com os ensinamentos cristãos: não serve Cristo, mas o dinheiro de um argentário. Os primeiros apóstolos do cristianismo eram comunistas apaixonados e os pais e primeiros doutores da Igreja (como Basílio, o Grande e João Crisóstomo) denunciavam a injustiça social. Hoje esta causa foi tomada em força pelo movimento socialista que traz aos pobres o Evangelho da fraternidade e da igualdade, apelando ao povo para estabelecer na terra o Reino da liberdade e do amor pelo próximo. Mais do que comprometer uma batalha filosófica, em nome do materialismo, Rosa Luxemburgo procura salvar a dimensão social da tradição cristã para a transmitir ao movimento operário.

Na Internacional comunista não se prestava muita atenção à religião. Um número significativo de cristãos juntou‑se ao movimento e o antigo pastor protestante suíço, Jules Humbert‑Droz, tornou‑se mesmo, nos anos 1920, um dos principais dirigentes do Komintern. Na época, a ideia mais espalhada nos marxistas era que um cristão que se tornasse socialista ou comunista abandonava necessariamente as suas crenças religiosas anteriores "anti‑científicas" e "idealistas".

A maravilhosa peça de teatro de Bertold Brecht, Santa Joana dos Matadouros (1932), é um bom exemplo deste tipo de diligência simplista em relação à conversão dos cristãos para a luta pela emancipação proletária. Brecht descreve, com grande talento, o processo que conduz Joana, dirigente do exército de salvação, a descobrir a verdade sobre a exploração e a injustiça social, denunciando as suas antigas crenças, no momento de morrer. Mas, para ele, deve haver uma ruptura absoluta e total entre a sua antiga fé cristã e o seu novo credo da luta revolucionária. Exatamente antes de morrer, Joana diz aos seus amigos:

"Se por acaso alguém vier dizer baixinho,
Que existe um Deus, invisível é verdade,
Do qual, portanto, podeis esperar por socorro,
Batei‑lhe o crânio na pedra,
Até que ele rebente."

A intuição de Rosa Luxemburgo, segundo a qual se podia lutar pelo socialismo em nome dos verdadeiros valores do cristianismo original, perdeu‑se neste tipo de perspectiva "materialista" grosseira – e, sobretudo, intolerante. Efectivamente, alguns anos depois de Brecht ter escrito esta peça, apareceu em França, entre 1936 e 1938, um movimento de cristãos revolucionários que reunia vários milhares de militantes, que apoiavam activamente o movimento operário, em especial a sua ala mais radical (os socialistas de esquerda de Marceau Pivert). A sua palavra de ordem principal era: "Somos socialistas, porque somos cristãos"...

Entre os dirigentes e pensadores do movimento comunista, Gramsci é provavelmente aquele que manifestou o maior interesse pelas questões religiosas. É também um dos primeiros marxistas a procurar compreender o papel contemporâneo da Igreja católica e o peso da cultura religiosa nas massas populares. Estas observações sobre a religião, nos seus Cadernos de prisão são fragmentárias, não‑sistemáticas e alusivas, mas no entanto muito perspicazes. A sua crítica destapada e irónica das formas conservadoras da religião ‑ nomeadamente a versão jesuítica do catolicismo, que ele detestava alegremente ‑ não o impedia de perceber também a dimensão utópica das ideias religiosas.

Os estudos de Gramsci são ricos e estimulantes, mas em última análise, não inovam no seu método de apreender a religião. Ernst Bloch é o primeiro autor marxista a ter alterado este quadro teórico ‑ sem abandonar a perspectiva marxista e revolucionária. Numa diligência similar à de Engels, distingue duas correntes sociais opostas: por um lado, a religião teocrática das igrejas oficiais, ópio do povo, aparelho de mistificação ao serviço dos poderosos; do outro, a religião clandestina, subversiva e herética dos Cátaros, Hussitas, Joaquim de Flora, Thomas Munzer, Franz von Baader, Wilhelm Weitling e Leão Tolstoi.. Nas suas formas contestatárias e rebeldes, a religião é uma das modos mais significativos da consciência utópica, uma das mais ricas expressões do princípio da esperança e uma das mais poderosas representações imaginárias do ainda‑não‑existente.

Bloch, tal como o jovem Marx da famosa citação de 1844, reconhece evidentemente o duplo carácter do fenómeno religioso, o seu aspecto opressivo, ao mesmo tempo que o seu potencial de revolta. É necessário, para apreender o primeiro, a que ele chama "a corrente fria do marxismo": a análise materialista impiedosa das ideologias, dos ídolos e dos idólatras. Para o segundo, em contrapartida, é "a corrente quente do marxismo" que lhe é aposta, procurando salvaguardar o excesso cultural utópico da religião, a sua força crítica e antecipadora. Para lá de qualquer "diálogo", Bloch sonhava com uma verdadeira união entre Cristianismo e revolução como aconteceu nas Guerras Camponesas do século XVI.

Fé marxista e fé religiosa

As opiniões de Bloch eram partilhadas em certa medida por alguns intelectuais alemães da ala mais radical, que ficou conhecida como a Escola de Frankfurt. Max Horkheimer afirmava que a religião seria "o registo dos desejos, nostalgias e acusações de infinitas gerações". Erich Fromm, no seu livro "Dogma de Cristo" (1930), usou o marxismo e a psicanálise para demonstrar a essência messiânica, plebeia, igualitária e anti‑autoritária do Cristianismo primitivo. E o escritor Walter Benjamin tentou combinar numa única síntese teologia e marxismo, messianismo judeu e materialismo histórico, luta de classes e redenção.

O trabalho "O Deus Escondido" (1955) de Lucien Goldmann é outra tentativa de abrir caminho na renovação dos estudos marxistas sobre a religião. Embora de inspiração diferente da de Bloch, ele estava igualmente interessado em resgatar os valores moral e humano da tradição religiosa. A parte mais original e surpreendente do seu livro é quando ele tenta comparar (sem no entanto assimilá‑los) a fé religiosa com a fé marxista: ambas partilham da recusa do individualismo (racional ou empírico) e a crença em valores trans‑individuais: Deus para a religião; a comunidade humana para o socialismo. Nos dois casos a fé assenta numa aposta ‑ a aposta na existência de Deus e a aposta marxista na libertação humana pressupõe o risco, o perigo de fracassar e a esperança do sucesso. Ambas implicam uma crença fundamental que não é demonstrável exclusivamente ao nível dos argumentos factuais.

O que as separa é certamente o caráter suprahistórico da transcendência religiosa: "A fé marxista é a fé no futuro histórico construído pelos próprios seres humanos, ou melhor, que devemos fazer, através da nossa actividade, uma "aposta"  no sucesso das nossas acções; a transcendência que é o objecto desta fé não é nem sobrenatural nem transhistórica, mas sim supra‑individual, nada mais e nada menos." Sem querer de alguma maneira "cristianizar o marxismo", Lucien Golmann introduziu, graças ao conceito de fé, um novo olhar para a relação conflitiva entre a crença religiosa e o ateísmo marxista.

Marx e Engels pensavam que o papel subversivo da religião era um fenómeno do passado, sem significado para a época da luta de classes moderna. Esta previsão revelou‑se exacta historicamente durante um século ‑ com algumas importantes excepções, nomeadamente em França, onde se conheceram os socialistas cristãos dos anos 1930, os padres operários dos anos 1940, a esquerda dos sindicatos cristãos (CFTC) nos anos 1950, etc. Mas, para compreender o que se passa, desde há trinta anos na América Latina ‑ a teologia da libertação, os cristãos pelo socialismo ‑ é necessário ter em conta as intuições de Bloch e Goldmann sobre o potencial utópico das tradições religiosas judaico‑cristãs.

O que infelizmente faz falta nestes debates marxistas "clássicos" acerca da religião é a discussão das implicações da doutrina e práticas religiosas em relação às mulheres. O patriarcado, o tratamento discriminatório das mulheres e a negação dos direitos reprodutivos prevalecem nas principais correntes religiosas ‑ em particular no Judaísmo, Cristianismo e Islão ‑ e apresentam formas particularmente opressoras nas respectivas facções fundamentalistas. De facto, um dos critérios‑chave para avaliar o carácter progressivo ou regressivo dos movimentos religiosos é a sua atitude em relação às mulheres, e em especial ao seu direito de controlar os seus corpos: divórcio, contracepção ou aborto. Uma análise marxista renovada das religiões no século XXI obriga‑nos a colocar o tema dos direitos das mulheres no centro da análise.

Michael Löwy é membro da Liga Comunista Revolucionária (LCR) em França e director de pesquisa em sociologia no CNRS (National Center for Scientific Research) em Paris, é autor de muitos livros, entre os quais: "The Marxism of Che Guevara", "Marxism and Liberation Theology", "Fatherland or Mother Earth?" e "The War of Gods: Religion and Politics in Latin America".

Tradução de António José André.

Original em: http://combate.info/index.php?option=com_content&task=view&id=25
Fonte:Diário Liberdade

7 de dez. de 2012

O comunismo ético de Oscar Niemeyer

Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital


Não tive muitos encontros com Oscar Niemeyer. Mas os que tive foram longos e densos. Que falaria um arquiteto com um teólogo senão sobre Deus, sobre religião, sobre a injustiça dos pobres e sobre o sentido da vida?

Nas nossas conversas, sentia alguém com uma profunda saudade de Deus. Invejava-me que, me tendo por inteligente (na opinião dele) ainda assim acreditava em Deus, coisa que ele não conseguia. Mas eu o tranquilizava ao dizer: o importante não é crer ou não crer em Deus. Mas viver com ética, amor, solidariedade e compaixão pelos que mais sofrem. Pois, na tarde da vida, o que conta mesmo são tais coisas. E nesse ponto ele estava muito bem colocado. Seu olhar se perdia ao longe, com leve brilho.

Impressionou-se sobremaneira, certa feita, quando lhe disse a frase de um teólogo medieval: "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. E ele retrucou: "mas que significa isso?” Eu respondi: "Deus não é um objeto que pode ser encontrado por ai; se assim fosse, ele seria uma parte do mundo e não Deus”. Mas então, perguntou ele: "que raio é esse Deus?” E eu, quase sussurrando, disse-lhe: "É uma espécie de Energia poderosa e amorosa que cria as condições para que as coisas possam existir; é mais ou menos como o olho: ele vê tudo mas não pode ver a si mesmo; ou como o pensamento: a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada”. E ele ficou pensativo. Mas continuou: "a teologia cristã diz isso?” Eu respondi: "diz mas tem vergonha de dizê-lo, porque então deveria antes calar que falar; e vive falando, especialmente os Papas”. Mas consolei-o com uma frase atribuída a Jorge Luis Borges, o grande argentino:”A teologia é uma ciência curiosa: nela tudo é verdadeiro, porque tudo é inventado”. Achou muita graça. Mais graça achou com uma bela trouvaille de um gari do Rio, o famoso "Gari Sorriso: "Deus é o vento e a lua; é a dinâmica do crescer; é aplaudir quem sobe e aparar quem desce”. Desconfio que Oscar não teria dificuldade de aceitar esse Deus tão humano e tão próximo a nós.

Mas sorriu com suavidade. E eu aproveitei para dizer: "Não é a mesma coisa com sua arquitetura? Nela tudo é bonito e simples, não porque é racional mas porque tudo é inventado e fruto da imaginação”. Nisso ele concordou adiantando que na arquitetura se inspira mais lendo poesia, romance e ficção do que se entregando a elucubrações intelectuais. E eu ponderei: "na religião é mais ou menos a mesma coisa: a grandeza da religião é a fantasia, a capacidade utópica de projetar reinos de justiça e céus de felicidade. E grande pensadores modernos da religião como Bloch, Goldman, Durkheim, Rubem Alves e outros não dizem outra coisa: o nosso equívoco foi colocar a religião na razão quando o seu nicho natural se encontra no imaginário e no princípio esperança. Ai ela mostra a sua verdade. E nos pode inspirar um sentido de vida.”

Para mim a grandeza de Oscar Niemeyer não reside apenas na sua genialidade, reconhecida e louvada no mundo inteiro. Mas na sua concepção da vida e da profundidade de seu comunismo. Para ele "a vida é um sopro”, leve e passageiro. Mas um sopro vivido com plena inteireza. Antes de mais nada, a vida para ele não era puro desfrute, mas criatividade e trabalho. Trabalhou até o fim, como Picazzo, produzindo mais de 600 obras. Mas como era inteiro, cultivava as artes, a literatura e as ciências. Ultimamente se pôs a estudar cosmologia e física quântica. Enchia-se de admiração e de espanto diante da grandeur do universo.

Mas mais que tudo cultivou a amizade, a solidariedade e a benquerença para com todos. "O importante não é a arquitetura” repetia muitas vezes, "o importante é a vida”. Mas não qualquer vida; a vida vivida na busca da transformação necessária que supere as injustiças contra os pobres, que melhore esse mundo perverso, vida que se traduza em solidariedade e amizade. No JB de 21/04/2007 confessou: ”O fundamental é reconhecer que a vida é injusta e só de mãos dadas, como irmãos e irmãs, podemos vive-la melhor”.

Seu comunismo está muito próximo daquele dos primeiros cristãos, referido nos Atos dos Apóstolos nos capítulos 2 e 4. Ai se diz que "os cristãos colocavam tudo em comum e que não havia pobres entre eles”. Portanto, não era um comunismo ideológico, mas ético e humanitário: compartilhar, viver com sobriedade, como sempre viveu, despojar-se do dinheiro e ajudar a quem precisasse. Tudo deveria ser comum. Perguntado por um jornalista se aceitaria a pílula da eterna juventude, respondeu coerentemente: "aceitaria se fosse para todo mundo; não quero a imortalidade só para mim”.

Um fato ficou-me inesquecível. Ocorreu nos inícios dos anos 80 do século passado. Estando Oscar em Petrópolis, me convidou para almoçar com ele. Eu havia chegado naquele dia de Cuba, onde, com Frei Betto, durante anos dialogávamos com os vários escalões do governo (sempre vigiados pelo SNI), a pedido de Fidel Castro, para ver se os tirávamos da concepção dogmática e rígida do marxismo soviético. Eram tempos tranquilos em Cuba que, com o apoio da União Soviética, podia levar avante seus esplêndidos projetos de saúde, de educação e de cultura. Contei que, por todos os lados que tinha ido em Cuba, nunca encontrei favelas mas uma pobreza digna e operosa. Contei mil coisas de Cuba que, segundo frei Betto, na época era "uma Bahia que deu certo”. Seus olhos brilhavam. Quase não comia. Enchia-se de entusiasmo ao ver que, em algum lugar do mundo, seu sonho de comunismo poderia, pelo menos em parte, ganhar corpo e ser bom para as maiorias.

Qual não foi o meu espanto quando, dois dias após, apareceu na Folha de São Paulo, um artigo dele com um belo desenho de três montanhas, com uma cruz em cima. Em certa altura dizia: "Descendo a serra de Petrópolis ao Rio, eu que sou ateu, rezava para o Deus de Frei Boff para que aquela situação do povo cubano pudesse um dia se realizar no Brasil”. Essa era a generosidade cálida, suave e radicalmente humana de Oscar Niemeyer.

Guardo uma memória perene dele. Adquiri de Darcy Ribeiro, de quem Oscar era amigo-irmão, uma pequeno apartamento no bairro do Alto da Boa-Vista, no Vale Encantando. De lá se avista toda a Barra da Tijuca até o fim do Recreio dos Bandeirantes. Oscar reformou aquele apartamento para o seu amigo, de tal forma que de qualquer lugar que estivesse, Darcy (que era pequeno de estatura), pudesse ver sempre o mar. Fez um estrado de uns 50 centímetros de altura E como não podia deixar de ser, com uma bela curva de canto, qual onda do mar ou corpo da mulher amada. Aí me recolho quando quero escrever e meditar um pouco, pois um teólogo deve cuidar também de salvar a sua alma.

Por duas vezes se ofereceu para fazer uma maquete de igrejinha para o sítio onde moro em Araras em Petrópolis. Relutei, pois considerava injusto valorizar minha propriedade com uma peça de um gênio como Oscar. Finalmente, Deus não está nem no céu nem na terra, está lá onde as portas da casa estão abertas.

A vida não está destinada a desaparecer na morte, mas a se transfigurar alquimicamente através da morte. Oscar Niemeyer apenas passou para o outro lado da vida, para o lado invisível. Mas o invisível faz parte do visível. Por isso ele não está ausente, mas está presente, apenas invisível. Mas sempre com a mesma doçura, suavidade, amizade, solidariedade e amorosidade que permanentemente o caracterizou. E de lá onde estiver, estará fantasiando, projetando e criando mundos belos, curvos e cheios de leveza.

2 de dez. de 2012

MODO DE PRODUÇÃO E EDUCAÇÃO QUESTÕES DO MODO DE VIDA: UMA CONTRIBUIÇÃO DE LEON TROTSKY

                                                   Celi Zulke Taffarel

Faculdade de Educação - UFBA [1]

Cláudio de Lira Santos Júnior

Faculdade de Educação - UFBA [2]

Resumo:


O texto trata da importância da consideração da contribuição de Leon Trotsky - ao se debruçar sobre a questão do modo de vida decorrente do modo geral de produção da existência – para pensar uma proposta educacional articulada claramente à construção do projeto histórico socialista. A necessidade premente de se pensar a formação humana tendo como referencia a questão do militantismo cultural, base da luta por uma política cultural de formação.

A tarefa principal da educação e da auto-educação no domínio da economia é a de despertar, desenvolver e reforçar esta atenção perante as exigências particulares, e insignificantes e cotidianas da economia; nada se deve neglicenciar, tudo se deve anotar, agir em tempo oportuno e exigir o mesmo dos outros. Esta tarefa impo-se –nos em todos os domínios da vida política e da construção economica. (TROTSKY: S/D, p. 31)

Para contribuir com a reflexão promovida no debate sobre Modo de produção e educação vamos nos reportar a um clássico da literatura marxista Questões do modo de vida[3], escrito em 1923 por Leon Trotsky[4], então Comissário do Povo para o Exército e a Marinha da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Trotsky participou ativamente das revoluções de 1905 e 1917 no Leste Europeu e preocupou-se com os acontecimentos de seu tempo. Após a Revolução de Outubro de 1917, frente as enormes dificuldades enfrentadas na economia e a necessidade de adotar o NEP - Nova Política Econômica - implantada em 1923 e que perdurou até 1928, oferecia um modelo de vida onde o enriquecimento pessoal e o gosto pelo lucro eram motivados. Isto significou um recuo dos revolucionários porque os serviços gratuitos foram extintos e novamente a população voltou a pagar taxas pelo abastecimento de luz e água, resgatando temporariamente algumas das características de um modelo econômico capitalista. A intenção ao propor tais medidas, era possibilitar a retomada do crescimento da economia russa e estabilizar o país que vinha de uma guerra mundial avassaladora que impôs o comunismo de guerra, para, em seguida, consolidar o sistema socialista. Nesse contexto, ficou célebre a frase de Lênin[5] que sintetizou os objetivos da NEP: "É preciso voltar um passo atrás para depois avançar dois à frente". Com a criação da NEP além dos serviços públicos deixarem de ser gratuitos, ocorre uma intensificação da utilização das técnicas estrangeiras, principalmente Alemãs e Americanas. Foram criadas as cooperativas agrícolas (Kolkozes) e as fazendas estatais (Soukoz) como modelo, desnacionalizaram-se as empresas com menos de vinte trabalhadores priorizando-se os investimentos estrangeiros e à formação de sociedades mistas. Enfim, esta situação econômica significou anos muito difíceis.

Esta é uma das grandes preocupações de Trotsky – como as mudanças econômicas afetam a consciência das massas? Outra preocupação de Trotsky foi com a agonia do capitalismo e as tarefas da IV Internacional, organização proletária fundada por ele em 1938 em Paris na França.

Trotsky reconheceu a defasagem entre o que a história permitiu politicamente - a tomada do poder político pelo proletariado, condição preliminar e primeira etapa da transformação revolucionária da sociedade capitalista e instalação do primeiro estado operário do planeta e o atraso cultural e das tradições conservadoras nas relações sociais das massas. Decidiu incidir sobre esta situação investigando cientificamente o modo de vida e defendendo o que passou a se chamar “militantismo cultural”. Escreveu uma brochura intitulada Questões do Modo de Vida que, apesar de já terem-se passados 85 anos, seu conteúdo é dramaticamente atual. Para Trotsky a revolução é um marco histórico da humanidade e não significa um salto do proletariado, mas, sim, a transformação do país sob sua direção. A tomada do poder político pelo proletariado à escala mundial é a condição preliminar e primeira etapa da transformação revolucionária da sociedade capitalista, significa, em primeiro lugar, a destruição total do Estado Capitalista.

Para conhecer o modo de vida contraditório das massas em pleno período de transformações sociais, Trotsky vai diretamente a fonte, ou seja, aos operários e os entrevista[6]. A partir deste material colhido em discussões e entrevistas com grupos de agitadores e propagandistas de Moscou que responderam a uma série de perguntas sobre o modo de vida das massas pós-revolucionárias escreveu a brochura Questões do Modo de Vida que contém textos sobre o trabalho, a política, o jornal, a bebida alcoólica, a igreja, o cinema, a família, os ritos, a linguagem, os hábitos de vida, os costumes.

Ao coletar e analisar material em discussões e entrevistas com agitadores e propagandistas de Moscou, Trotsky concluiu que o trabalho para o fortalecimento das bases econômicas planificadas do Estado, para beneficio de toda a população, exigia também um trabalho simultâneo e complementar, numa relação dialética, para mudar a forma de pensar e agir da classe trabalhadora, sem precisar opor uma tarefa contra a outra, como se fossem excludentes. Sustentava que era necessário conhecer o modo de vida das massas para poder contribuir na transformação, por meio do militantismo cultural, dedicado a formação política a partir de pequenas coisas, como a elaboração de manuais técnicos, as noções de higiene, a alfabetização, a aproximação com as artes e a cultura em geral produzida pela humanidade. Defendia, por exemplo, que para escrever um manual de trabalho técnico é preciso reunir um grupo de três pessoas, formado por um escritor especialista, por um operário altamente especializado, tecnicamente informado, que conheça o assunto, ou seja, capaz de conhecer o estado do ramo correspondente da produção, um operário de espírito inventivo, criativo e por um escritor marxista, com formação política e com conhecimentos da técnica e da produção. Tratava-se de por em marcha uma biblioteca exemplar de obras técnicas destinadas às oficinas, convenientemente encadernadas, de formato prático e pouco dispendioso. O papel destas bibliotecas era duplo: por um lado favorecia a elevação da qualificação do trabalho e o êxito da construção socialista e por outro ajudava a reunir um grupo de operários produtores extremamente válidos para a economia soviética no conjunto. Opunha-se a posição estalinista de criação, em laboratório, de uma cultura proletária. Defendia a necessidade de desenvolver uma cultura do trabalho, a qualificação dos trabalhadores para uma economia planificada, a cultura da vida, a cultura do modo de vida.

Trotsky ao denunciar que a revolução estava sendo traída e ao levantar questões sobre o modo de vida dos operários em Moscou chamava a atenção sobre o que significa negligenciar os detalhes práticos de um problema porque se ignora que projetos grandiosos exigem atenção aos pequenos detalhes. Chama a atenção que um pequeno arranhão pode levar a gangrena e que o abandono do marxismo, por exemplo, pode nos levar a incompreensões e a proceder mal porque não dispomos de instrumentos teóricos que sustentam a prática que se quer revolucionária. À medida que se altera a organização do trabalho é preciso avançar na consciência política da classe, o que não se dá fora da organização revolucionária.

É necessário conhecer e combater o modo do capital organizar a produção e a reprodução dos meios de vida. É preciso conhecer o modo de vida para poder transformá-lo por meio do militantismo cultural dedicado à educação política, a partir de pequenas coisas e, é preciso combater a influência da burguesia, das igrejas reacionárias e anticomunistas, que agem sobre as famílias, as crianças e a juventude, combater as drogas, a prostituição, a pornografia, a submissão da mulher como simples acessório masculino, a personalidade egoísta, mesquinha, individualista, enfim tudo que embota a consciência de classe e assegura o caráter pequeno burguês e que fazem a classe trabalhadora assumir valores que não são os seus, mas, sim, da classe dominante que assegura a produção e reprodução da vida na base do modelo do capital, com sua ditadura e absolutismo. Trotsky propunha o militantismo cultural dentro de um estado revolucionário onde a classe operaria imprimia a direção ao Estado socialista.

Para Trotsky o atributo básico da juventude socialista, a juventude genuína e não os velhos de 20 anos, reside na disposição de entregar-se total e completamente à causa socialista. Defendia também que sem sacrifícios heróicos, sem valores, sem decisão e convicção política, a história em geral não se move para frente. Porém, somente o sacrifício não é o suficiente ressaltava Trotsky. É necessário ter uma clara compreensão do curso dos acontecimentos e dos métodos apropriados para a ação. Isso somente pode ser obtido por meio da teoria e da experiência vivida. O mais contagiante entusiasmo rapidamente esfria-se ou evapora se não encontra uma clara compreensão das leis do desenvolvimento histórico. Freqüentemente observamos como os jovens entusiastas, ao dar uma “cabeçada na parede” convertem-se em sábios oportunistas; como ultra-esquerdistas desenganados passam em curto tempo a ser burocratas conservadores, assim como pessoas fora da lei se corrigem e se convertem em excelentes policiais. Adquirir conhecimento e experiência e ao mesmo tempo não dissipar o espírito lutador, o auto-sacrifício revolucionário e a disposição de ir até o final, esta é a tarefa da educação e da auto-educação da juventude revolucionária.

O militantismo cultural de Trotsky está ainda colocado como uma experiência cientifica relevante e por inteiro, porque a revolução mundial exige uma direção para a educação e a auto-educação, quando a meta é a união dos trabalhadores da cidade e do campo, a união internacional dos trabalhadores. Tal como antes, somos, e continuaremos sendo, militantes da causa da classe trabalhadora, sujeitos históricos revolucionários e não “protagonistas de organizações não governamentais (ONGs) ” que servem aos interesses do capital. A nossa época não é, ainda, a da nova cultura socialista, porque ainda não conseguimos construí-la mundialmente, apesar das inegáveis lutas dos povos, por exemplo, no leste europeu – a extinta União das republicas Socialistas Soviética - e na América Central com Cuba. Continuamos vivendo sob a influência, hegemônica, da cultura burguesa, do Estado burguês, da família burguesa, enfim da sociedade capitalista. Engels (1987) já nos demonstrou isto ao descrever a origem do Estado, da propriedade privada e da família. Mas, a nossa época, como bem definiu Trotsky, em 09 de setembro de 1923, é a antecâmara para uma nova cultura. O velho não responde mais e o novo tem dificuldade de nascer e nós precisamos compreender o porquê e incidir no modo de vida, assim como Trotsky em seu militantismo cultural.





Discussão



Os fatos e os estudos demonstram que o trabalho pedagógico é limitadíssimo quando desprovido da referência de um projeto histórico (FREITAS, 1987) explicito, superador do modo do capital organizar a produção – uso e troca de mercadorias. É limitadíssimo e altamente alienante, principalmente quando desprovido de uma teoria Pedagógica e da Teoria do Conhecimento que permite avançar na construção da atitude cientifica, na consolidação da base teórica para agir no modo de produção da vida, na elevação da consciência de classe, na formação política e na construção da organização revolucionária. Os fatos demonstram a necessidade histórica das práticas pedagógicas e da produção do conhecimento estarem sintonizadas com processos revolucionários no campo da economia política onde pode ser identificada a possibilidade concreta de construção de uma outra cultura, construção esta que depende sobretudo das alterações na base econômica, ou seja, no modo de produzir a vida, nas formas de produção e troca. Necessidade de uma teoria do conhecimento e teoria pedagógica correspondente a necessidade da revolução, bases de ações vitais, elementos de coordenação e de ordem intelectual e moral para construção do projeto histórico socialista.

Agimos no dia-a-dia de forma alienada, não porque nascemos assim, mas porque isto é uma construção social nas relações de produção da vida (VIGOTSKY, 1987). Quebrar com estas construções exige, sim, o desenvolvimento, intencional, da mente em outra perspectiva. Trotsky em sua militância recorre a filosofia e a ciência para propor o militantismo cultural.

Esta posição encontra respaldo na compreensão de que a essência construída historicamente se manifesta no fenômeno, e que por isso a existência da “coisa em si” que não se manifesta imediatamente - é considerada pelo homem ao iniciar qualquer investigação. Isto assegura a razão de existir da ciência e da filosofia. Se a aparência fenomênica e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis. Para demonstrar essa afirmação, por exemplo, Kosik (1976) destaca que a filosofia é um esforço sistemático e crítico que visa captar a coisa em si, a estrutura oculta da coisa e descobrir o modo de ser do existente. O que acontece no mundo da pseudoconcreticidade é que os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade, pois é produto natural da práxis cotidiana. O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias. A representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas. É com esse modo de operar com a realidade que muitas das vezes procedemos no dia-a-dia. Agimos a partir de representações do real.

Vale destacar estes elementos da teoria do conhecimento porque eles nos permitem entender a distinção entre práxis utilitária cotidiana e práxis revolucionária, considerada o modo pelo qual o pensamento capta a coisa em si, o que somente pode ser feito a partir da dialética – o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade; que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade, assim realizando o processo no curso do qual sob o mundo da aparência se desvenda o mundo real. Para que o mundo possa ser explicado “criticamente”, cumpre que a explicação mesma se coloque no terreno da “práxis” revolucionária. Portanto, a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque, e só na medida em que, nós mesmos produzimos a realidade, na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós. O mundo real, oculto pela pseudoconcreticidade, é o mundo da práxis humana. É a compreensão da realidade humano-social como unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura que permitirá a práxis revolucionária. É um mundo em que as coisas, as relações e os significados são considerados como produtos do homem social, e o próprio homem se revela como sujeito real do mundo social. A destruição da pseudoconcreticidade significa, portanto, que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz, logo, se desenvolve e se realiza a partir:

a) da critica revolucionaria da práxis da humanidade;

b) do pensamento dialético, que dissolve o mundo fetichizado da aparência para atingir a realidade e a “coisa em si”;

c) das realizações da verdade e criação da realidade humana em um processo ontogenético, visto que para cada indivíduo humano o mundo da verdade é, ao mesmo tempo, a criação própria, espiritual, como individuo social–histórico.

A pseudoconcreticidade se apresenta como uma construção histórica do sistema capitalista que investe na constituição do mundo fetichizado e na conseqüente destruição do homem histórico. Faz-se necessário, portanto, a apropriação de uma teoria crítica que nos permita discernir a práxis utilitária cotidiana da práxis revolucionaria, trazendo a tona o mundo da verdade.

A degeneração, destruição e decomposição da educação, enquanto prática social de interesse dos trabalhadores na busca da humanização e superação da alienação decorrente do trabalho assalariado, não poderá ser perceptível de imediato. Daí a necessidade imperiosa, segundo Kopnin (1978), da defesa do método de conhecimento. O tempo urge, a barbárie se avizinha e as possibilidades de elevação da consciência de classe – que se expressa na capacidade analítica crítica e na organização revolucionária em dadas condições objetivas - se fazem imprescindível.

Portanto, reconhecemos na atitude cientifica de Trotsky uma práxis revolucionária. A pergunta cientifica que formulamos constantemente é a seguinte: qual é a realidade, quais as contradições e as possibilidades da educação na perspectiva teleológica de formação para a emancipação, considerando o projeto histórico socialista no contexto altamente destrutivo do capitalismo? Qual a realidade, contradições e possibilidade da educação socialista no marco do imperialismo altamente destrutivo?

Para responder esta pergunta a exigência é a consideração de dados sobre economia política, sem o que não se compreendem as relações estabelecidas no âmbito da cultura e o processo atual de destruição, decomposição e degeneração das forças produtivas (FRIGOTTO, 2000; 1995).

O que sustenta tal hipótese são argumentos e dados históricos, comprováveis pelos fatos. Engels (s/d, p.49) já defendeu a tese de que:



A produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as socie­dades que desfilam pela história, a distribuição dos pro­dutos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a so­ciedade produz e como produz e pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na idéia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transfor­mações operadas no modo de produção e de troca; de­vem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a bênção em praga, isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas for­mas de distribuição produziram silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas ante­riores. E assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente que conter-se — mais ou menos desenvolvidos — os meios necessários para pôr fim aos males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobri-los nos fatos materiais da produção, tal e qual a realidade os oferece.



A educação não é algo mágico que paira sobre nossas cabeças. Algo místico, mítico. É algo concreto, situado, em construção, portanto, historicamente determinada. Os profissionais da educação ao construírem este campo de atividade humana não o fazem segundo suas próprias cabeças, mas segundo condições objetivas, determinadas ao longo da história, das relações de produção possíveis em dados momentos históricos e do grau de desenvolvimento da luta de classes.

O exemplo que aqui trazemos diz respeito a uma ação educativa a partir do militantismo cultural incidindo sobre uma situação concreta colocada no processo revolucionário na União Soviética em 1923 que nos serve de referencia no contexto da luta de classes, para a construção do socialismo.

Conclusões

As conclusões políticas que chegamos não podem desvanecer de nossa consciência as lições do passado. Após a experiência histórica nossas tarefas fundamentais continuam sendo a construção econômica e cultural na perspectiva do projeto histórico socialista, sendo isto, agora, mais complexo e com um caráter mais urgente. Isto porque, com a avassaladora força destrutiva do imperialismo, com suas guerras e sua política neoliberal, pouco restou de elemento constitutivo para a construção do socialismo a não ser o papel histórico das amplas massas em continuar reivindicando e exigindo que se alterem a economia, a política e a cultura em geral. Como bem destacaram Marx e Engels (2007) no Manifesto Comunista a ordem para que os trabalhadores do mundo se unam, para que se rompa com a subsunção do trabalho ao capital, a abolição da propriedade privada dos meios de produção, que se destrua o Estado burguês e se alterem todas as relações sociais, em todos os âmbitos, principalmente na família, ou seja, em todos os âmbitos de produção e reprodução dos bens materiais e imateriais e de seus meios de reprodução, ou seja no modo de vida. Com esta luta, que configura a luta do proletariado contra a burguesia, avançaremos na consciência sobre as relações nexos e determinações entre a produção da vida no dia-a-dia e os fins da construção da sociedade socialista em seu conjunto.

Pelo exposto é possível reconhecer que se coloca para o operariado e aos setores engajados na luta pela superação do modo do capital organizar a produção, aos setores populares da classe que busca a sobrevivência, a subsistência ou uma opção de vida anti-capitalista, uma tarefa essencial que tem quatro dimensões, concomitantes, simultâneas e interligadas:

d) desenvolvimento de uma consistente formação nas lutas e consistente base teórica;

e) a educação ideológica, de classe, das amplas massas que acessa a educação pela via do trabalho alienado, explorado, precarizado, terceirizado, desprovido de direitos e conquistas;

f) a conscientização política que se dá na ação concreta, na luta, na defesa de reivindicações, como, por exemplo, o direito de todos a educação, aos espaços públicos educativos, aos serviços públicos;

g) a organização revolucionária, auto-determinada, auto-organizada, auto-gerida, na defesa de conquistas históricas relacionadas a desalienação do trabalho humano e conseqüentemente do usufruto emancipatório dos espaços da vida.



Portanto, as atividades humanas relacionadas ao campo da educação necessitam ser compreendidas neste complexo. E não é qualquer teoria explicativa que permite com radicalidade, de conjunto e na totalidade a compreensão da educação, suas relações, contradições e possibilidades em um dado modo de produção.

O que deve ser questionado é o projeto histórico, a teoria do conhecimento e a teoria pedagógica que estão subjacentes às práticas e a produção do conhecimento sobre educação. O complexo econômico influencia ou não, determina ou não as teorias que são hegemônicas no campo da educação? Frigotto (2000) demonstra teoricamente no campo da educação que o modo de produção da vida determina sim, mas não diretamente, e sim através de mediações, por exemplo, das próprias teorias que são aplicadas no campo da educação. Enfim, a educação pode ser explicada enquanto fenômeno social fora do complexo das relações trabalho capital e política cultural? A resposta é NÃO. O exemplo que Trotsky nos dá em 1923 deixa evidente os nexos e relações entre a economia e a educação, principalmente quando a pretensão é elevar o padrão cultural dos operários.

Os fatos comprovam a necessidade vital de refletirmos sobre a educação considerando o complexo econômico existente e as possibilidades de um projeto histórico superador. A exigência de clareza quanto ao projeto histórico não é de hoje. Luiz Carlos de Freitas (1987) reclamava da necessidade da explicitação do projeto histórico claro para orientar a ciência pedagógica e nesta a teoria pedagógica.

Ao recuperar a experiência histórica de educar as massas através do militantismo cultural tendo como referencia a superação do projeto histórico hegemônico na União Soviética, Trotsky nos permite reconhecer que projeto histórico enuncia o tipo de sociedade ou organização social na qual se pretende transformar a atual organização social e os meios que devemos colocar em pratica para a sua consecução. Isto implica uma “cosmovisão”, mas é mais que isto, “É concreto, está amarrado às condições existentes e, a partir delas, postula fins e meios. Diferentes análises das condições presentes, diferentes fins e meios geram projetos históricos diversos” (FREITAS, 1987, p.123). Tais projetos fornecem bases para a organização de partidos políticos e demais organizações que chamam para si a responsabilidade de lutar contra a forma capitalista de organizar os meios de produzir e reproduzir a vida na sociedade.

Desta forma, frente ao descrito, coloca-se a necessidade imperiosa da unificação dos produtores livremente associados, auto-determinados, na construção de uma outra base de organização da vida e de princípios da vida. Mészáros (2002) reconhece como princípios de funcionamento da alternativa socialista:

1) a regulação, pelos produtores associados, do processo de trabalho orientada para a qualidade em lugar da superposição política ou econômica de meta de produção e consumo predeterminadas e mecanicamente quantificadas;

2) A instituição da contabilidade socialista e do legítimo planejamento de baixo para cima, em vez de pseudoplanos fictícios impostos à sociedade de cima para baixo, condenados a permanecer irrealizáveis por causa do caráter insuperavelmente conflitante deste tipo de sistema;

3) a mediação dos membros da sociedade por meio da troca planejada de atividades, em vez da direção e distribuição política arbitrárias tanto da força de trabalho, como de bens no sistema do capital pós-capitalista do tipo soviético ou da fetichista troca de mercadorias do capitalismo;

4) a motivação de cada produtor por intermédio de um sistema autodeterminado de incentivos morais e materiais, em vez de sua regulação pela cruel imposição de normas e pela tirania do mercado;

5) tornar significativa e realmente possível a responsabilidade voluntariamente assumida pelos membros da sociedade por meio do exercício dos seus poderes de tomada de decisão, em vez da irresponsabilidade institucionalizada que marca e vicia todas as variedades do sistema do capital.

A necessidade da implementação de novas experiências socialistas não resulta de ponderações teóricas abstratas, mas da crise estrutural cada vez mais profunda do sistema do capital mundializado que destrói trabalhador, trabalho e a cultura em geral.

Assim como Trotsky em seu tempo histórico, nas condições objetivas colocadas, incidia na educação das massas, através do militantismo cultural cabe aqui o que bem defendeu Gramsci sobre a construção da cultura em seu tempo histórico:

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais” significa, também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. (GRAMSCI, 1978. pp. 13-14)



Por fim, a questão do militante cultural, a nossa compreensão de formação humana não pode prescindir da luta por uma política cultural de formação. Isso no estágio atual das relações sociais capitalistas não acontecerá sem um profundo processo de organização política da classe trabalhadora e de luta pelas reivindicações históricas. Esse processo necessita de militantes, de quadros referenciados nos organismos, nas lutas e nas bandeiras históricas da classe trabalhadora. Diz respeito, portanto, à formação de homens e mulheres para a luta por uma educação emancipatória, que por sua vez não acontecerá sem mudanças significativas no padrão cultural acessado pela classe, na ampliação do padrão cultural dos trabalhadores. Isso será tarefa e obra da classe trabalhadora, única responsável pela sua emancipação. Os militantes culturais deverão, por isso, ser formados com profunda consciência de classe – formação política, em organizações revolucionárias com consistente base teórica e disposição para enfrentar as tarefas da construção do socialismo.

Referências Bibliográficas

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[1]Professora Doutora Titular. FACE/UFBA. Coordenadora do Grupo LEPEL/FACED/UFBA - Linha de Estudo e Pesquisa em Educação Física, Esporte e Lazer. Ex-presidente do CBCE – Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte . Ex-Secretaria geral do ANDES-SN. Subvenção: Pesquisadora 1D - Bolsista de Produtividade CNPQ.


[2] Professor Doutor Faculdade de Educação. Coordenador do Curso de Licenciatura em Educação Física, Coordenador do Curso de especialização em Metodologia do Ensino e da pesquisa em educação Física, esporte e Lazer e Coordenador do Grupo LEPEL/FACED/UFBA - Linha de Estudo e Pesquisa em Educação Física, Esporte e Lazer.


[3] Destacamos esta obra – Questões do modo de vida - do conjunto da produção de Trotsky por localizar nela um conceito com o qual trabalhamos e que buscamos contrapor a outras terminologias presentes no campo de formação de professores. Destacamos também que é muito difícil localizar a obra de Trotsky no Brasil. Álvaro Bianchi do Departamento de Ciência Política, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) realizou um estudo para constituir uma base de dados sobre Trotsky no Brasil e já reuniu 540 referencias. Em seus estudos nos relata que “A verdade é que a fortuna editorial de Trotsky não foi da melhores. Da lendária Sochineniia (Obras Completas) de Leon Trotsky editada pela Gosudarstvennoe Izdadel'stvo (Gosizdat – Casa Editora do Estado) apenas doze volumes vieram a luz antes de sua supressão pela ditadura stalinista em 1927, restando apenas alguns exemplares em bibliotecas estadunidenses e européias. Sua pesquisa Trotsky em Português teve como objetivo construir uma base de dados bibliográfica aglutinando todas as obras de e sobre Leon Trotsky e o trotskismo publicadas em Português. Bianchi destaca ainda que com propósitos e, principalmente dimensões muito diferentes, este trabalho foi inspirado na colossal Trotskyana de Wolfgang Lubitz (Lubitz, 1982 e 1999) e no trabalho de Antonella Marazzi (1980), bem como na Bibliografia gramsciana, de Cammet (1991).


[4] Leon Trotsky nasceu em Ianovka, Ucrânia, em 7 de novembro de 1879 e morreu assassinado em Coyoacán, México, em 21 de agosto de 1940. Intelectual marxista e revolucionário bolchevique, fundador do Exército Vermelho. Seu nome em ucraniano é Лев Давидович Троцький, que pode ser transliterado como Lev Davidóvitch Trótskii. Todavia, seu verdadeiro apelido de família era Bronstein (Бронштейн). Na União Soviética desempenhou um importante papel político, primeiro como Comissário do Povo (Ministro) para os Negócios Estrangeiros; posteriormente como criador e comandante do Exército Vermelho, e fundador e membro do Politburo do Partido Comunista da União Soviética. Expulso da União Soviética por Stalin refugiando-se no México, onde veio a ser assassinado por Ramón Mercader, um agente de Stalin em 21 de agosto de 1940. Fundou a IV Internacional em 1938 em Paris/França.


[5] Vladímir Ilich Uliánov nasceu em 10 de abril de 1870, em Simbirsk, atual Ulyanovsk, morreu em 21 de janeiro de 1924, em Gorki próximo de Moscou. Revolucionário russo, responsável pela direção, em grande medida, da Revolução Russa de 1917. Líder do Partido Comunista e primeiro presidente do Conselho dos Comissários do Povo da União Soviética. Influenciou teoricamente os partidos comunistas de todo o mundo. Sua teoria configurou a corrente teórica denominada leninismo.

[6] As perguntas formuladas por Trotsky aos operários eram agrupadas em itens e se desdobravam de forma a permitir o detalhamento, por exemplo: Lêem os operários obras literárias? Quais são os autores mais populares? Existem suficientes obras literárias disponíveis aos operários? Que gêneros de livros e de brochuras são mais particularmente procurados? Desta forma seguiam-se detalhadamente as perguntas formuladas aos operários.

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